Excelentíssimo Senhor Presidente, diante da dor profunda que nos assolou com a perda irreparável da nossa filha, poderíamos, legitimamente, recolher-nos no silêncio do sofrimento. No entanto, escolhemos transformar essa dor em voz e em apelo coletivo, por acreditarmos, com firmeza e esperança, que é possível mudar esta realidade. Acreditamos que a saúde na ilha do Maio pode e deve tornar-se um verdadeiro exemplo de inclusão, dignidade e progresso. Confiamos que esta carta aberta será recebida com a atenção que a gravidade da situação exige e que dela advirão ações concretas e estruturantes em benefício da população maiense. Renovando os protestos da mais elevada consideração e estima,
Porto Inglês, Ilha do Maio
25 de abril de 2025
Assunto: Apelo urgente à melhoria das condições de saúde na ilha do Maio
Excelentíssimo Senhor Presidente da República,
Dr. José Maria Pereira Neves,
Com o mais elevado respeito e consideração, servimo-nos da presente para, em nome da nossa família e em representação da população da ilha do Maio, expressar a nossa profunda preocupação face ao estado crítico do setor da saúde nesta ilha, cujas fragilidades comprometem o bem-estar, a dignidade e, em muitos casos, a própria vida dos cidadãos.
Excelência, a motivação que nos leva à redação desta carta não se alicerça em quaisquer pretensões políticas, nem tampouco em interesses mesquinhos ou egoístas. Trata-se, sim, de um apelo que nasce de uma dor profunda e de uma consciência despertada por uma perda irreparável: a morte da nossa filha de apenas um ano de idade, ocorrida em novembro de 2024. Uma tragédia que acreditamos, com amargura e convicção, que poderia ter sido evitada, caso a abordagem clínica ao seu quadro de saúde tivesse sido mais assertiva, atempada e eficaz. A ausência de um sistema de evacuação funcional, a demora nos procedimentos e a total falta de logística — inclusive para a simples administração de soro para garantir a hidratação da criança — ilustram, de forma dolorosa, as graves falhas do sistema de saúde que hoje vimos denunciar.
Volvidos quase cinquenta anos desde a independência nacional, é com grande pesar que constatamos que as condições de saúde em Cabo Verde, no geral, carecem de reformas profundas e estruturantes, capazes de garantir um sistema equitativo, eficiente e verdadeiramente centrado nas necessidades da população.
É notório o déficit de políticas públicas eficazes voltadas para a resolução estrutural e sustentável dos problemas de saúde no nosso país. A ausência de estratégias integradas, contínuas e territorialmente sensíveis, tem contribuído para a perpetuação das desigualdades no acesso aos cuidados e para a fragilidade do sistema, especialmente nas ilhas mais isoladas como o Maio.
A ilha do Maio, na área de saúde tem sido sistematicamente relegada ao abandono por parte dos decisores centrais no que concerne à área da saúde. Tal desatenção é evidenciada, entre outros aspetos, pela ausência de visitas regulares de inspeção ou acompanhamento por parte dos responsáveis máximos do setor. De facto, a última visita ministerial à ilha remonta à gestão do então Ministro da Saúde, Dr. Arlindo do Rosário, o que demonstra um preocupante afastamento institucional face às necessidades reais da população.
É notório que a confiança da maioria da população meiense no sistema público de saúde tem vindo a deteriorar-se consideravelmente. Em face das fragilidades persistentes, muitos utentes têm optado por aguardar pelos fins de semana para recorrer aos serviços prestados por uma clínica privada instalada na ilha, que disponibiliza, com alguma regularidade, consultas em diversas especialidades médicas. Ou ainda, a vindas periódicas de especialistas ligadas a outra clínica, igualmente privada. Estas alternativas têm funcionado como válvula de escape, permitindo a redução das deslocações à ilha vizinha em busca de cuidados médicos. No entanto, é evidente que tais soluções permanecem inacessíveis a uma parte significativa da população, que, por limitações económicas, não consegue custear serviços que, em princípio, deveriam ser assegurados pelo Estado — de forma gratuita, digna e com qualidade.
Infelizmente, a ilha do Maio tem evidenciado carências graves ao nível dos recursos humanos, materiais e organizacionais no setor da saúde, refletindo uma profunda desigualdade no acesso a cuidados de saúde de qualidade — um direito fundamental de todos os cidadãos. Esta realidade revela não apenas uma falha estrutural, mas também uma desatenção histórica às legítimas necessidades da população maiense.
A realidade concreta vivida pela população maiense a nível da saúde reflete graves limitações que carecem de resposta urgente e eficaz, dos quais destacam-se:
I. Insuficiência de Recursos Humanos e Sobrecarga dos Profissionais de saúde
A ilha conta com apenas um único técnico de laboratório de análises clínicas, sobrecarregado com todas as funções inerentes ao serviço, sem apoio nem qualquer sistema de substituição em caso de ausência.
Acresce a esta realidade a inexistência de um técnico de radiologia, o que inviabiliza a realização adequada de exames fundamentais, como radiografias. Na tentativa de colmatar esta lacuna, tais exames têm sido realizados por um profissional de enfermagem que, embora não detenha formação específica na área de imagiologia, desempenha esta função com elevado sentido de responsabilidade, dedicação e espírito de colaboração. Contudo, esta solução improvisada, não substitui a necessidade urgente de um técnico qualificado, sendo essencial garantir a segurança, a qualidade e a fiabilidade dos diagnósticos realizados.
Verifica-se, igualmente, uma preocupante insuficiência de profissionais de enfermagem, o que compromete não só a adequada cobertura dos turnos, como também a capacidade de resposta eficiente em situações críticas. Esta limitação torna-se particularmente evidente durante os processos de evacuação médica, em que o reduzido número de enfermeiros dificulta o acompanhamento adequado dos pacientes e fragiliza ainda mais o já precário sistema de resposta a emergências.
Constata-se ausência de especialidades médicas essenciais, nomeadamente:
Pediatria – É, no mínimo, paradoxal que se proclame amplamente, em discursos e campanhas institucionais, o slogan 'criança, prioridade absoluta', quando, na prática, essa prioridade não se materializa em ações concretas. A ausência de um médico pediatra na ilha do Maio traduz-se numa grave violação dos direitos fundamentais da criança, especialmente no que respeita ao acesso a cuidados de saúde especializados e à prevenção de doenças em fases cruciais do desenvolvimento.
Ginecologia/Obstetrícia – A situação das gestantes na ilha também é motivo de séria preocupação. A inexistência de um especialista em ginecologia e obstetrícia obriga muitas mulheres grávidas a recorrerem a serviços pagos para garantirem um acompanhamento adequado durante o período gestacional. Esta realidade, para além de injusta, revela uma clara desigualdade de acesso aos cuidados que deveriam ser assegurados de forma gratuita e universal pelo sistema público de saúde.
Psicologia clínica - É preocupante a ausência de um psicólogo clínico na ilha, sobretudo num momento em que, a nível nacional e internacional, se proclama a necessidade de reforçar a atenção dada à saúde mental como parte integrante dos cuidados de saúde primários. A inexistência de apoio psicológico estruturado deixa desprotegidas crianças, adolescentes, adultos e idosos que enfrentam situações de sofrimento emocional, traumas, perdas e perturbações mentais, sem qualquer resposta técnica especializada local. Esta lacuna representa um grave retrocesso num tempo em que a promoção da saúde mental deveria ser tratada como prioridade transversal em todas as políticas públicas de saúde.
II. Deficiências Técnicas e Operacionais
A prestação de cuidados de saúde encontra-se ainda gravemente afetada pela falta recorrente de reagentes laboratoriais, pelo que não raras vezes os utentes têm que se deslocar à cidade da praia para realização de exames laboratoriais inexistentes na ilha.
É profundamente angustiante e desesperador constatar que, em momentos críticos em que a vida de um paciente depende de um diagnóstico célere e preciso, determinado por uma análise laboratorial urgente, os profissionais de saúde se vejam constrangidos a informar que não há reagentes disponíveis para a realização do exame necessário. Tal situação representa não apenas uma falha grave do sistema, mas um atentado ao direito à vida e à dignidade dos utentes, comprometendo irremediavelmente a possibilidade de intervenção médica adequada e atempada. Infelizmente essa foi a nossa experiência com a nossa filhinha. Essa é a realidade de saúde da ilha.
III. Precariedade do Sistema de Evacuação Médica de Urgência
O sistema de evacuação médica atualmente em vigor na ilha do Maio tem-se revelado precário e ineficaz, especialmente em situações críticas que exigem respostas rápidas, coordenadas e devidamente estruturadas. Uma das fragilidades mais preocupantes ocorre durante os fins de semana, nomeadamente aos sábados e domingos, quando os utentes evacuados e os seus acompanhantes são frequentemente obrigados a adquirir, com recursos próprios, os bilhetes de transporte para posterior solicitação de reembolso — um processo que, além de burocrático, representa um obstáculo significativo para famílias em situação de vulnerabilidade económica. Acresce a este cenário o facto de os profissionais de enfermagem não disporem de qualquer garantia institucional relativamente à cobertura das despesas e das condições associadas ao acompanhamento dos doentes evacuados, o que se constitui como um fator inibidor da sua disponibilidade para integrar estas missões assistenciais, agravando ainda mais a fragilidade do sistema.
Essa situação de fragilidade e precariedade torna-se ainda mais evidente durante o período noturno ou sob condições meteorológicas adversas, em que a assistência adequada aos utentes em estado grave se torna praticamente inviável. A isto soma-se uma falha recorrente na comunicação entre os diferentes intervenientes do sistema, o que compromete ainda mais a eficácia do processo. Registaram-se, inclusive, casos em que foi necessária a intervenção direta do anterior edil local para que a evacuação fosse finalmente realizada, o que evidencia a falta de autonomia e operacionalidade do sistema atual.
IV. Preocupações com a Humanização do Atendimento
Preocupa-nos profundamente a forma como, em diversas ocasiões, os pacientes e os seus acompanhantes têm sido tratados nos serviços de saúde da ilha. Têm sido reportadas atitudes de indiferença, falta de empatia, sobretudo em situações sensíveis envolvendo crianças.
Cumpre-nos reconhecer que, por um lado, existem profissionais de saúde verdadeiramente dedicados, competentes e empáticos, que prestam um serviço com elevado sentido de missão. Por outro lado, é igualmente necessário destacar que, tem-se verificado alguma falta de humanização no atendimento, marcada por atitudes de descaso, desatenção, orgulho/falta de humildade em reconhecer-se as limitações e ausência de empatia no trato com os utentes e seus acompanhantes, o que compromete gravemente a qualidade da assistência prestada.
A saúde é, por excelência, uma área que exige humanismo, sensibilidade e ética profissional. É, pois, fundamental garantir que todos os trabalhadores do setor sejam capacitados, não apenas tecnicamente, mas também em termos de atendimento digno e respeitoso aos cidadãos.
Solicitação
Diante do exposto, e confiando no compromisso de Vossa Excelência com a equidade territorial, a justiça social e o bem-estar dos cabo-verdianos, solicitamos para a ilha do Maio, em caráter de urgência:
1. O reforço urgente do quadro de profissionais de saúde, com a colocação de:
- Mais técnicos de laboratório;
- Um técnico de radiologia;
- Mais enfermeiros;
- Pelo menos, um pediatra, um ginecologista/obstetra e um psicólogo clínico.
2. O abastecimento regular de reagentes e consumíveis laboratoriais.
3. A manutenção e atualização dos equipamentos de diagnóstico.
4. A reformulação do sistema de evacuação de urgência, assegurando a sua prontidão, eficácia e funcionalidade permanente.
5. A implementação de medidas formativas no domínio da ética profissional, da empatia e da humanização dos serviços de saúde.
Excelentíssimo Senhor Presidente, diante da dor profunda que nos assolou com a perda irreparável da nossa filha, poderíamos, legitimamente, recolher-nos no silêncio do sofrimento. No entanto, escolhemos transformar essa dor em voz e em apelo coletivo, por acreditarmos, com firmeza e esperança, que é possível mudar esta realidade. Acreditamos que a saúde na ilha do Maio pode e deve tornar-se um verdadeiro exemplo de inclusão, dignidade e progresso. Confiamos que esta carta aberta será recebida com a atenção que a gravidade da situação exige e que dela advirão ações concretas e estruturantes em benefício da população maiense.
Renovando os protestos da mais elevada consideração e estima,
Cleonice Helena dos Santos dos Reis Lopes
Comentários
Casimiro centeio, 25 de Abr de 2025
Lamento profundamente. Não tenho outras palavras
Meus profundos sentimentos pela perda irreparável da sua filha.
Responder
O seu comentário foi registado com sucesso.
Cláudia Lima, 25 de Abr de 2025
Cara amiga. Bem sei o que fala. Vivi 6 anos na ilha do Maio. E a minha maior vontade era sair dali depois que nasceu a minha filha. Lamento muito a sua perda. Mas somos mais que vencedoras e transformamos traumas e perdas em apoio ao próximo. Muito aprendi com as limitações da ilha na área da saúde, da educação, do abastecimento de géneros alimentícios e da água potável. Força, coragem e determinação.
Responder
O seu comentário foi registado com sucesso.