Ignorância tem açúcar! (Porque às vezes é doce ficar burro... até levar a dentada de um livro.)
Ponto de Vista

Ignorância tem açúcar! (Porque às vezes é doce ficar burro... até levar a dentada de um livro.)

Dizia-se que era leitor assíduo de Cheikh Anta Diop. Mas era só o caderno de dívidas do bar. Cada copo fiado, uma linha. Cada calote, uma repetição obsessiva da única frase que aprendeu a escrever: “Liketi ki fia.” Quando tentou levar o caso à justiça, o juiz, também devedor, devolveu-lhe o caderno com o sarcasmo burocrático de quem carimba sonhos em papel higiênico: — Isto não é prova. — Mas é testemunho, respondeu ele.

Houve um tempo, não muito longe, mas convenientemente esquecido, em que uma escola resolveu homenagear os seus professores. A intenção era boa, quase comovente. Como oferecer sushi a quem tem alergia a marisco. Organizou-se um grupo de estudo para levantar os “hobbies” e outros cosas mais, dos docentes. Porque, aparentemente, a escola já não ensina: ela cataloga.

A expectativa era romântica: que os professores de Língua Portuguesa e afins, os poetas da fotocópia, amassem a leitura, a escrita criativa, a jardinagem existencial das palavras. Que subissem montanhas em busca de haicais ou colecionassem epifanias em cadernos. Mas não.

Descobriu-se que a maioria lia... documento de cobrança. Criava galinhas. Pescava cavala. Trabalhava ao sábado, à segunda e às vezes ao domingo, porque salário de professor é como livro emprestado: desaparece. E o mais surreal: muitos achavam graça nisso. Um deles, interrogado sobre o que fazia nas horas vagas, respondeu:

—Durmo, se der. Se não der, planto batata.

E havia, claro, as exceções. As mulheres lúcidas. As heroínas do fim-de-semana que declaravam, com honestidade desarmante, que o melhor hobby era dançar e beber uma cerveja “de fininho”. O grupo de estudo reagiu como se alguém tivesse sugerido que o Germano Almeida passa as férias em Santa Maria a fazer TikTok com o Mário Lúcio.

Em Cabo Verde, como em qualquer lugar onde o sol ainda nasce sobre a dúvida, uma coisa permanece clara, e, por isso mesmo, inquietante: o professor e o livro continuam a ser das últimas ferramentas que sabem fechar-nos a boca sem violência e abrir-nos os olhos sem anestesia. Persistem, ainda, como relíquias úteis, contra um mundo que se tornou especialista em inventar ameaças cada vez mais sofisticadas, ironicamente ensinadas por eles próprios. E enquanto essa profissão se desvanece na neblina da desvalorização, desfeita entre salários tímidos e desprezos sistematizados, resta-nos o paradoxo: os únicos que ainda tentam ensinar-nos a ver, são os que mais rapidamente nos tornamos incapazes de ouvir.

A primeira vez que ouvi alguém dizer que “livro é bicho que morde”, foi numa festança em Achada Moirão. Um tipo de boina torta e hálito de xalala falava com solenidade bêbada na casa do Senhor Inventor, figura folclórica, meio filósofo, meio fiadeiro, que andava com uma caneta na orelha e um caderno folhoso debaixo do braço.

Dizia-se que era leitor assíduo de Cheikh Anta Diop. Mas era só o caderno de dívidas do bar. Cada copo fiado, uma linha. Cada calote, uma repetição obsessiva da única frase que aprendeu a escrever:

“Liketi ki fia.”

Quando tentou levar o caso à justiça, o juiz, também devedor, devolveu-lhe o caderno com o sarcasmo burocrático de quem carimba sonhos em papel higiênico:

— Isto não é prova.

— Mas é testemunho, respondeu ele.

Foi nesse dia que compreendi: há mais verdade num caderno sujo do que em mil PowerPoints ministeriais. O Inventor era filho de um professor reformado, daqueles que ainda falam com vírgulas e acusam Deus de erros ortográficos. Um desses homens que acha que a gramática devia ser tombada como património da resistência.

—Livros mordem, menino. Mordem a ignorância. E se forem bons, arrancam-te um pedaço da alma.

E arrancam mesmo.

O meu primeiro foi um Amílcar Cabral de capa verde e peso revolucionário. Não o entendi de imediato, mas mordeu-me o suficiente para saber que ignorância tem açúcar, e que saber dói como cárie no juízo. Percebi cedo que o problema do país não é a falta de livros. É o excesso de preguiça mental. A moda agora é errar com orgulho e botar a culpa na falta da humildade ou tê-la como defesa do despreparo. E pensar, meu caro, é considerado arrogância.

Temos jovens a lançar livros sem ler três por mês. Professores que copiam resumos de manuais como se fossem revelações divinas. Alunos que confundem gramática com castigo. E um país que flutua, não pela leveza das ideias, mas pelo vazio do alento do pensamento.

Lula, num momento de lucidez, disse que “ler é exercício de liberdade.”
Villa respondeu que ele não lê nada, só escuta de ouvido  e grava a fala. E eu respondo que ter certeza sem ler é um perigo. Ser professor hoje é viver um teatro do absurdo. É ensinar sem autoridade, corrigir sem apoio e continuar com fé... mesmo quando a fé falha o ponto. A escola virou loja de serviços. O aluno virou cliente. E o professor? Um funcionário de Deus sem contrato.

Mas ainda há resistência. Nas ruas, nas casas, nas praças. Nas tias que rimam tempo com panela ao lume. Nos velhos sapateiros que sabem mais de PIB do que os economistas de terno. Na Dona Gilica, que vendia pão e dizia:

— Leiam muito. Mas nunca leiam a fome dos outros com os olhos cheios.

Ler é isso: ter fome. Fome de continuar. Fome de entender. Fome de dar um passo a mais num mundo que já desistiu de andar. Ler é como dizia Clarice: cheirar a eternidade.
E em Cabo Verde, até quem nunca leu um livro inteiro, sabe mais do que muita biblioteca importada que fala deste país porque alguém lhe deu palco sem mostra as provas do seu amor repentino tão Terra Terra. Só não sabe como explicar a telerucidade. E isso também é poesia.

Por isso, neste dia quetodos nós fingimos a importância, devíamos todos sair com um livro debaixo do braço. Nem que fosse só para dizer:
“Eu também mordo.” E se não sabes por onde começar, começa por te calar.
Porque num país de ilhas e silêncios cúmplices, só quem lê e quem ensina é que costura o que ainda não está rasgado. O resto anda por aí para ser remendada, e a mediocridade são disparadas a cada ato do seu contrário medido a cada metro de ódio e fingimento humorístico.

E se hoje cruzares com um professor, esse idiota lúcido, esse Cristo sem religião, esse Luís da ilha do fogo cheio de frases chocantes, de quadro e marcadores, não digas só parabéns. Diz-lhe isto:

Poema para um Professor com Gosto de Giz e Fúria Lúcida

Desculpa.
Por cada aula em que foste gladiador sem arena. Por cada reunião onde foste acusado de tentar ensinar. Por cada vez que aguentaste bufando no WC, igual a um certo MC

com a dignidade a secar-se ao lado do sabonete.

Desculpa, pátria de scroll infinito.
Os teus filhos sabem dançar TikTok,
mas confundem Djik com um DJ de Magdan.

Desculpa, Ministério.
O teu slide parece um tratado de ficção científica.
Um vitral de promessas mortas em loop de slides.

E quando perguntarem:
“Mas por que insistes em ensinar?”
Responde com arrogância lírica:
— Porque ainda acredito no inútil.
Na gramática como trincheira.
Na poesia como último escudo.
Na aula como milagre clandestino.

Desculpa.
Mas eu ainda quero o livro como pão.
A sala como abrigo.
O quadro como espada.
E que se foda quem confunde educação com protocolo.

Que celebremos o professor.
Esse herege da ignorância,
esse mestre-escravo sartriano,
que, apesar de tudo,
ainda acredita
que a leitura
pode ser
uma forma de vingança.

 

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Comentários

  • Tony Kaya Barbosa, 25 de Abr de 2025

    Seja o que Deus quiser. Li e senti que algum algo perdeu nas folhas ao ar. Aquele abraço pelo texto poético e xuxanti deste mundo em dívidas com letras e palavras ...
    Meus apreço!

    Responder


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