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DA MATÉRIA DOS SONHOS  (Nélson Évora, ou o menino que voava para o infinito)
Cultura

DA MATÉRIA DOS SONHOS (Nélson Évora, ou o menino que voava para o infinito)

Ergue-se um homem sobre a planta dos seus pés, irmão do vento peregrino, das aves de voo largo em seus desígnios de lonjura. Menino ainda, demandou os caminhos da terra longe, qual se o ofício marinheiro do pai fosse um fado já no sangue incrustado. E haveriam de ser as maiores glórias conquistadas nas distantes terras do oriente — foi Pequim e chovia. Era Osaka e o céu da ilha vertia rumores benfazejos. Mas não cabe aqui a relação de todos os feitos, porquanto ninguém sabe se mais água tem o rio que incessantemente as despeja no mar, embora, heraclitianamente, jamais a mesma, posto que em devir incessante; ou se o mar que o acolhe no seu âmago, devolvendo na forma de precipitação, depois de sugado pelas trombas do arco-íris, como creem os meninos da minha terra, e donde também são originários alguns dos teus maiores — dessas areias que não pisaste tu nos meio-dias de calor vulcânico, mas recolhes nessas botelhas, agora feitas ânfora dum passado sagrado, em cada pista, qual partícula que há de conglomerar-se na unidade original, na engrenagem de todos os propósitos.

Parece existir um instinto secreto que anima esse corpo quando no horizonte visível e invisível só o infinito é destino. E nem é de glória, particularmente, que se trata. Mas de superação apenas, ir para além dos limites, pelo vasto ar, que não é vazio, pois preenche-o o coro das vozes, como numa tragédia ou num anfiteatro grego; ou sob o céu sombrio desmoronando-se em torrentes de água e de ruídos, como era o de Pequim nesse agosto de tantas perecidas esperanças, em que só tu, deus de asas invisíveis, podias ainda fazer levantar a pátria em clamor uníssono: ouves as palmas que vêm das bancadas e atentas apenas ao sangue que lateja nas veias; vês o céu poluído ameaçar tormenta, mas o querer é o único elemento a atravessar as fímbrias do teu ser; sentes o peso do corpo, mas sabes que o impulsionam invisíveis foles atiçando a combustão nas forjas sublimes, quais as do grego Efesto, dessa Grécia imemorial, e cujos modernos jogos são uma das heranças maiores.

Há um estremecimento súbito, como essas descargas ténues que precedem os avassaladores furacões; o instante é amplificado, eletrizado pela dúvida, em que o olho já não vê, as bocas se emudecem, e, se palpitam corações, é um fervor inominável que fermenta a sublime certeza de que há de o voo tenso, precedido dos saltos prepatórios, como numa coreografia hegeliana, superar o dos contendores nesse dia propício. Eis o sortilégio, a epifania que aproxima homens e deuses na perecível condição de seres lançados à terrena aventura de conquistar o que nenhum oráculo predisse de antemão.

Mas tornemos aos fios memoriosos, não da história, mas das estórias que entretecem esse corpo e esse rosto ora escrutinados nas linhas que configuram já não Nélson, o sujeito, mas a olímpica imagem que enche o vasto caudal das nossas expetativas.

Então era uma vez um menino nas áfricas terras nascido, nesse chão de todos os temores, na vertigem de tantas navegações, na pobre formosa saga de ser homem, como escreveu Julio Cortázar. Não se lembra o menino das grandes tormentas estremecendo a casa paterna. Dos relâmpagos iluminando a insónia. Dos rios de águas tumultuosas levando para bem longe as vozes crestadas do estio. E o menino fez-se também a distantes paragens (distinu di bai, diz-se numa célebre canção, na língua de um dos seus maiores), e era Lisboa e seus arredores o termo da deriva programada, bolinados os caminhos que a soma dos acasos planta no horizonte de todo o humano. Talvez chorasse, ou suspirasse apenas, nas noites frias quando uma escuridão estranha assaltava a casa, depois das estórias fantásticas ouvidas ao pai, velho lobo do mar nas suas andanças por esse mar de deus, demandando ilhas e continentes, costas e golfos, enfrentando tormentas e intempéries, temendo o naufrágio e o perecimento nos vastos reinos de Poseidon. Ao chegar terá visto um tejo-mar que lhe havia de alimentar os sonhos, inda nos mapas da memória fossem os barrentos rios da infância a prolongar a expetativa que os dias imensos e límpidos haveriam de continuar, que os secretos amigos haveriam de retornar pelos crepúsculos desenhando nas retinas aquosas o verde do paraíso. E pergunta-se — também é isto o meu país: estas caras e vozes estranhas, este céu de cinza oprimindo a vista, ocultando a visão dos campos vastos ante o mar de todos os sonhos?

E eis que cresce o menino por entre os perigos da idade. Que a mãe Élida saberá esconjurar, ajudada pelos santos da sua especial devoção, nisto não se distinguindo das outras mães, esses seres estremecidos, entretidos na organização do quotidiano, saga maior para os que vivem entre aqueles que lhes são estranhos.

Finca o menino o menino raízes, sintomaticamente, num território chamado Ramada. Há um fogo que cresce dentro dele e que busca a forma de se revelar. Como do âmago de um vulcão ascendem cinzas, gases, escória e lava, pinta o menino bucólicas paisagens, ou nem tanto, que toda a realidade é violenta, mas não há de ser esse o seu desígnio maior, inda o acompanhe pelos anos fora quando de coração repousado se dedica a multiplicar os cambiantes que um simples pôr de sol oferece. E haveria de tentar também o futebol, essa religião maior do nosso tempo, ao lado de um sobrinho quase da mesma idade. Terá dado nas vistas, mas era de estrangeira condição, e isso complicava um pouco a aritmética que rege tais negócios. Outros voos, porém, lhe estavam reservados nos cálculos do futuro.

Há sempre o acaso duma mão a a desocultar um destino ou a guiar uma escolha. Revela-se esta na figura de um vizinho, professor de educação física na escola da Ramada. E hão de seguir os dois, pelos anos fora, pelos caminhos do esforço e duma fé que exalta a excelência como valor mais alto. Há de triunfar no salto em altura, mas uma lesão no joelho, aos 15 anos, impõe-lhe, definitivamente, a opção pelo triplo, cuja dinâmica e poesia confessa adorar.

Eis porque diz apontar ao infinito quando explode no ar qual deus de um tempo novo, pois naquilo que desborda os limites germinam toda a poesia e todas as formas concretas que a imaginação consegue engendrar, e é isso, exatamente, o sublime.

Talvez achemos que anda o universo cheio de deuses; ou que sejam poucos para o que humanamente precisamos. E eis-te assim a dizer, de fronte erguida às estrelas: eu também sou um deus, locomovo-me por entre as nuvens, sobre estas areias que não sinto sob os pés, pois o meu fito é o infinito. Mas há, numa curva qualquer, uma detença necessária, um brotar de lágrimas, porque fragéis e perecíveis somos nós que nos erguemos da terra para a glória de triunfar e para a tristeza da derrota. Sim, como uma noite desaba após um dia de luz, nós também somos essa matéria que por vezes desfalece, mas preserva na sua essência e no seu âmago o poder de germinar, de emergir para a claridade, por vezes demasiado intensa para os nossos humanos olhos, mas com o condão de divisar o que é da matéria dos sonhos na distância infinita.

E após tanta viagem, tanto aplauso, és esse menino que se apressa ante a luz última do crepúsculo, escrutinando as sombras misteriosas, desenhando outros voos e outras cidades, mas sem sombra de desconsolo quando os ossos e os tendões cedem numa curva qualquer da viagem, e vês Londres na distância do nevoeiro. Ainda assim, mais alto se ergue a tua energia de homem plantado no chão da fé, apanágio também dos teus maiores, jamais rendidos ao peso das vicissitudes, qual se para proclamar a divindade de todo o homem e ilimitado o que o faz alcandorar-se aos olimpos da glória, inda estes se resumam apenas à ausência de lágrimas e inquietações ao cambar de mais um dia.

Era Osaka, com o sortilégio que as ilhas têm, e tu partias veloz no rumo do vento, corço negro que revejo agora nesses fotogramas onde os músculos estalam num último derradeiro esforço e altivos contendores te perseguem por sob uma luz fratal.

Era Pequim e chovia — seriam os deuses comovidos ante a inexaurível singeleza do menino da Ramada?

Era Praga e o céu brilhava de novo sob a planta dos pés. Era Belgrado e ventos benfazejos corriam a face límpida.

Agora eram outros os céus e outra a cidade — Berlim— mas tu eras um deus renascido ou apenas esse rosto e esse nome alevantados para a glória — Nélson.

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Redação