Rabidantes. “Mulheres de luta, de um quotidiano marcado pela luta”
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Rabidantes. “Mulheres de luta, de um quotidiano marcado pela luta”

Tatiana Reis. Mulher, jovem, historiadora, professora universitária, activista do movimento negro e do movimento de mulheres negras no Maranhão (Brasil) e brasileira afro-descendente. É essa “auto-classificação” identitária que a instigou a conhecer a África, e essa oportunidade surgiu no âmbito da sua tese de doutoramento que a fez descobrir Cabo Verde. Assim, desde 2011, tem realizado pesquisa de campo, em Cabo Verde, com rabidantes, e em particular, explorando os circuitos e as trajectórias do comércio “transatlântico” das mulheres cabo-verdianas, que ela mesma classifica de “mulheres de luta, de um quotidiano marcado pela luta”.

Santiago Magazine - Tatiana é “fruto” desse circuito transatlântico que comercializava pessoas escravizadas para as Américas, no caso para o Brasil. Essa “situação” a influenciou de alguma forma a conhecer e a compreender as raízes do comércio transatlântico feito na África?

Tatiana Reis - Sim, lembro que na primeira vez que visitei Cabo Verde as pessoas falavam que eu estava vindo "buscar as minhas origens". De fato, ao longo das dinâmicas do tráfico transatlântico, as rotas do comércio escravista ligavam a antiga região da Senegâmbia, na costa ocidental africana, às áreas onde atualmente situam os estados do Pará e Maranhão. Naquela conjuntura, as ilhas de Cabo Verde constituíam um importante entreposto comercial, e servia como ponto de passagem para os navios que seguiam para o Brasil. A Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, criada na segunda metade do século XVIII, deteve um impacto significativo sobre essas regiões, particularmente, a Cidade Velha, então conhecida como Ribeira Grande, ocupou lugar de importância em meio a essas rotas.

Porquê Cabo Verde? E porquê conhecer e explorar as histórias e as trajetórias das mulheres rabidantes?

Ao longo de toda a minha formação acadêmica tenho discutido temas voltados para as mulheres, relações de gênero, sexualidade e violência. Durante o mestrado fui para uma Pós-graduação com foco no campo dos estudos africanos, o que sem dúvida foi de grande importância para que eu pudesse me voltar para este campo de estudo. No doutorado queria muito continuar discutindo mulheres mas em algum país de África. Assim, fiz o levantamento de organizações com enfoque nas questões de gênero e temas afins, ao longo das leituras descobri o intenso comércio realizado pelas rabidantes cabo-verdianas no Brasil. Este contexto, até desconhecido, me motivou a elaborar o projeto e melhor compreender essas relações nos dois lados do Atlântico, bem como as experiências de vida dessas mulheres.

Quais os maiores desafios que as mulheres rabidantes têm enfrentado, principalmente no trajeto Cabo Verde – Brasil – Cabo Verde?

Os desafios são quotidianos. Durante as entrevistas as mulheres sempre falavam: "vida de rabidante não é fácil". De fato, elas passam dias, meses, viajando, longe da família, em uma rotina bastante cansativa. No Brasil, por exemplo, elas comercializam não apenas em Fortaleza, mas também em São Paulo, então precisam se deslocar para outros estados, carregando um montante significativo de dinheiro, percorrendo lojas e fábricas. No Mercado Sucupira cheguei a entrevistar um rabidante que relatou ter assumido o controle da loja, pois a mulher passava meses viajando e sempre chegava muito cansada. No seu entender, o quotidiano da venda no mercado exigiria ainda mais dela, por isso resolveu assumir essa etapa na longa rotina de comercialização. Outra questão muito recorrente, diz respeito ao processo de transporte das bagagens, desde a pesagem e despacho no Brasil até o recebimento na alfândega em Cabo Verde. Para muitas delas, também marcado por humilhações, desconfianças e brigas.

"Não existe uma definição realmente satisfatória entre aquilo que podemos denominar de formal e/ou informal"

Humilhação?... Porquê?

De uma certa forma, é como se elas precisassem o tempo todo legitimar o trabalho que desenvolvem, a atividade de onde retiram o sustento da família e garantem a educação dos filhos. Percebo que muitos destes desafios estão diretamente ligados a uma tentativa de autoidentificação como rabidante, e ao mesmo incide na desconstruir de uma visão, ainda enraizada na sociedade, de que esta atividade envolve práticas ilícitas. Vejo isso atualmente de forma muito marcante em Cabo Verde, sobretudo, no tocante aos debates sobre o processo de enquadramento/formalização desta atividade.

Quais as principais contribuições que a tua tese de doutoramento trouxe para a ciência? E como a academia recebeu ou tem recebido essa sua experiência transatlântica?

O meu trabalho constitui apenas uma dentre outras possibilidades de análise sobre a rabidância, mas sem dúvida, espero ter contribuído para que tenhamos uma melhor percepção sobre essa atividade, bem como sobre a trajetória de vida de algumas dessas mulheres. Tomei como foco de abordagem algumas questões centrais, tais como: primeiramente, realizei um longo debate sobre as fronteiras tênues entre o mercado formal e o informal, no intuito de perceber como situar a rabidância neste campo bastante sinuoso. Pude perceber que em meio a essa atividade é possível identificar uma multiplicidade de práticas comerciais, que se diferenciam quanto aos produtos que são comercializados, ao valor investido e, consequentemente, ao lucro, aos principais destinos de compra e locais de mercantilização, dentre outros. O que dificulta sobremaneira "encaixar" essa atividade entre o formal e/ou informal. Tomo a rabidância como uma atividade de fronteira, que retrata o intercâmbio entre o formal e o informal. Na medida em que recaem sobre essa prática várias formas de taxações, desde o despacho e o pagamento realizado para a empresa aérea, o ato de recebimento na alfândega em Cabo Verde, e as taxas municipais que são pagas diariamente.

"A emancipação econômica não conseguiu reverter as desigualdades de gênero. Algumas mudanças estão em curso, e para isso é preciso que ocorra uma maior percepção quanto ao lugar que elas ocupam na sociedade"

Por outro lado, o interesse em perceber as experiências de vida dessas mulheres, me possibilitou analisar as interferências dessa atividade no âmbito privado. Como o quotidiano da família era impactado, como se dava o cuidado com os filhos e relação com os maridos. Grande parte delas são mães solteiras, chefes de família. Em Cabo Verde, assim como no Brasil, é bastante expressivo o número de famílias monoparentais. Então, de fato, essas mulheres conseguem uma independência financeira, mas no caso daquelas que são casadas, os papéis de gênero continuam muito bem postos. A emancipação econômica não conseguiu reverter as desigualdades de gênero. Algumas mudanças estão em curso, e para isso é preciso que ocorra uma maior percepção quanto ao lugar que elas ocupam na sociedade, bem como a implementação de políticas públicas que possam garantir uma maior qualidade de vida a essas mulheres.

Filhos, uma preocupação constante

Ouviu, conheceu e seguiu algumas trajetórias de vida de rabidantes que são verdadeiras histórias de derrotas, de superações e de êxitos. Que lições podemos apreender com essas mulheres?

No quadro de análise que elaborei é possível identificar múltiplas trajetórias de vida, algumas marcadas por conquistas e realizações e outras não. Mas, se tem algo que é recorrente em meio a essas trajetórias, se refere a preocupação com os filhos. Todas as mulheres que entrevistei sempre ressaltaram a necessidade de garantir a educação dos filhos, para que ele pudessem ter um "futuro melhor", em geral, uma vida diferente daquela por elas vivenciada. São mulheres de luta, de um quotidiano marcado pela luta. O primeiro grupo que analisei, ou seja, as mulheres que desenvolvem o comércio transatlântico, em geral, conseguiram adquirir um patrimônio considerável, são exemplos de superação. Mulheres que começaram vendendo peixe na rua e agora são donas de grandes lojas. Lembro que certa vez conversando com um professor, Jacques Depelchian, um grande mentor para mim, e ele me perguntou e as outras? É aquelas que não conseguiram conquistar estes espaços? Isso me motivou a buscar outras histórias... a pensar em outros grupos de mulheres... e aqui estou eu novamente.

Existem vários tipos de rabidantes. Mas todas acabam por estar incluídas na “categoria” do informal? E essa classificação, por vezes, é depreciativa. Informal porquê?

Como já foi ressaltado anteriormente, no âmbito da rabidância eu consigo localizar uma multiplicidade de práticas e de grupos. Primeiramente, as mulheres que desenvolvem o comércio transatlântico e comercializam produtos do Brasil, EUA, Portugal, França e Holanda.  Essa classificação se dá não apenas pelo destino, mas sobretudo, pelo poder de comprar e o montante movimentado por viagem, que varia muito. No segundo grupo, estão aquelas que comercializam com os demais países africanos: Senegal, Guiné Conakry, Marrocos, África do Sul, dentre outros. Aqui, além do poder de compra ser inferior, existe uma questão muito recorrente que é o fato de não precisar do visto. Elas também ressaltam que os produtos são mais baratos, o que não exige grandes investimentos, além de garantir uma maior lucratividade. Durante pesquisa realizada no Senegal, por exemplo, as mulheres relataram almejar ir ao Brasil, pois segundo elas, lá é possível encontrar uma grande diversidade de produtos, mas todas denunciaram a dificuldade em conseguir o visto. Por fim, na base, eu localizo as rabidantes que desenvolvem o comércio interno, aqui estão: as mulheres que comercializam roupas usadas em bidões, em geral, advindas dos EUA, popularmente conhecidas como Ya (yes); aquelas que revendem produtos adquirido junto as lojas chinesas; e as que comercializam gêneros alimentícios. Nestes casos não existe os gastos com o deslocamento para outros países.

Mas “informal” porquê?

Essa multiplicidade de práticas também me ajuda a problematizar a forma de enquadramento dessa atividade, que necessariamente não se resume ao comércio informal. Isso não se refere apenas ao fato das taxações que recaem sobre essa prática, como já mencionado, mas também pela forma como cada um deste grupo se organiza. Em geral, aquelas que estão no topo já conseguiram montar toda uma estrutura, detém lojas bem estruturadas e alguns funcionários, além de uma certa estabilidade e maior lucratividade. Aquelas que estão na base, não. Elas vivenciam um quotidiano mais instável, realizam o comércio ambulante, e esperam ao final do dia conseguir pelo menos o dinheiro do hiace e voltar para casa. É essa a realidade vivenciada por muitas delas. Estou atualmente focada neste último grupo, particularmente, venho acompanhando o quotidiano das mulheres que comercializam nas ruas, feiras e mercados em Assomada, e são questões que tenho percebido de forma muito recorrente. Estes são apenas alguns exemplos que posso citar no sentido de chamar a atenção para uma melhor compreensão em identificar as rabidantes como pertencentes ao comércio informal. De fato, não existe uma definição realmente satisfatória entre aquilo que podemos denominar de formal e/ou informal.

Considera ser justo esta classificação?

São consideradas informais as atividades econômicas que não pagam impostos, mas as fronteiras ficam ambíguas, na medida em que há grandes empresas formais que fogem das suas obrigações fiscais, enquanto que muitos vendedores informais pagam diariamente taxas aos agentes municipais. Outra questão que também permeia esses debates, diz respeito às garantias trabalhistas. Me pergunto como são enquadradas as lojas chinesas que se proliferam no país, elas pagam taxas? Existem garantias trabalhistas para os seus funcionários? No caso específico das rabidantes que comercializam produtos brasileiros, posso citar aqui uma outra questão que nos serve para balizar a complexidade deste universo. De acordo com Antônio Muniz (2008), que realizou uma pesquisa na área do direito constitucional, quem de fato sai "perdendo" em meio a essas transações é o governo brasileiro, na medida em que o comércio realizado pelas rabidantes não se enquadra nas regras que regulam as transações comerciais internacionais. A legislação não considera como exportação o acto do estrangeiro comprar produtos e conduzir ele próprio para o exterior, situação que ocorre quando essas mulheres transportam as mercadorias. Somente é considerado bagagem e, isenta de impostos, os bens cuja quantidade, natureza ou variedade não configurem importação ou exportação com fim comercial. É claro que aqui ele toma como base apenas um elemento de um longo processo que se inicia no Brasil, e logo está diretamente ligado às problemas inerentes à realidade brasileira. Enfim, penso que existem várias questões que precisam ser melhor discutidas e analisadas. Mas, no sentido de buscar pensar como essas mulheres podem ser melhor assistidas pelo estado.

Aprender com as rabidantes

Os poderes públicos não dizem nada, não fazem nada. Há aqui alguma negligências, atropelos aos direitos?...

O controle e a violência não constituem a melhor forma, especialmente no atual contexto de cerceamento que esta prática vivencia. Cheguei a ver alguns vídeos na internet marcados pela violência de alguns agentes que tomavam os produtos de algumas comerciantes. Penso que é preciso existir um maior diálogo entre o governo e a sociedade civil, e essas mulheres precisam participar destes debates, de forma que conjuntamente seja possível chegar em um comum acordo. A prática da venda em ruas, feiras e mercados é algo que historicamente se efetiva no país, além de ser um dos principais geradores de renda, então é preciso chegar a um consenso de como melhor gerir esta atividade. Atualmente estão sendo construídos vários mercados, mas as mulheres não ficam nos mercados, porquê?! Porque em geral são construidos em locais inóspitos, onde não tem movimento. O maior diálogo certamente levaria a uma maior conscientização, no sentido de não apresentar essas medidas como algo impositivo, mas, por exemplo, como uma forma de organização do comércio de rua. Ou seja, o diálogo às claras com essas mulheres também levaria a uma maior conscientização por parte delas. Outro dia, acompanhei uma reunião com representantes do governo, e a conversa girava em torno da necessidade de mostrar para essas pessoas os seus deveres no tocante ao uso do espaço público. Aí reside o problema, que tal se mudássemos as estratégias e ao invés disso fossem apresentados os direitos que esses agentes podem acessar na medida em que seguissem algumas normas?

Fale-nos um pouco das contribuições económicas, financeiras, sociais e quiçá culturais dessas mulheres?

Na minha tese de doutorado eu analiso a rabidância como uma das espinhas dorsais da economia cabo-verdiana. Conforme resultados do Inquérito do Setor Informal*, apresentado pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), entre os anos de 2010 e 2015, é possível identificar um aumento de 46% nas atividades informais, que movimentam cerca de 27,7 milhões de escudos cabo-verdianos. A presença feminina é marcante, corresponde a 58,8%. Em livro recentemente publicado, Jacinto Santos (2017) assinala que em Cabo Verde a economia informal tem assumido uma dimensão estrutural e constitui a principal fonte de rendimento dos grupos sociais mais vulneráveis. Além disso, é geradora de empregos, de fluxos financeiros, materiais e imateriais, de inovações sociais, técnicas e culturais, que se mantém através de laços econômicos e sociais. Então, sem dúvida existem contribuições em vários setores, e são de suma importância para a sociedade local. Muitas dessas mulheres começaram de forma tímida e conseguiram multiplicar o valor primeiramente investido. Elas são verdadeiras empreendedoras e mais: se autofinanciam. O que essas mulheres desenvolvem colocam em cheque qualquer teoria econômica. Para os economistas, o mercado informal é caótico, eles não conseguem, aceitar a possibilidade de lucratividade (e impacto económico) em meio a essa prática. Daí todo um processo de condenação, crítica e necessidade de enquadramento. Temos muito que aprender com elas. Por exemplo, todas essas mulheres que comercializam gêneros alimentícios, também criam animais em casa, ou seja, aquilo que poderia ser perdido ao final do dia, serve como alimento para um outro produto que também será comercializado. Outro dia, tomei conhecimento que um aluno da UniCV tem procurado acompanhar as estratégias de cálculo utilizadas por mulheres. Elas conhecem o mercado e são ávidas ao perceberem aquilo que pode ser vendável. Aqui também entra em cheque um outra questão: quais os conhecimento são legítimos. Não quero me alongar neste debate, mas isso me faz lembrar como em Alcantara, uma cidade do interior do Maranhão, em que os pescadores (e as comunidades de remanescentes quilombolas) foram diretamente afetados pela implantação do Centro de Lançamento de Foguetes, são chamados para ajudar na leitura das marés. Em outras palavras, essas pessoas não só produzem, como são detentoras de conhecimento, precisamos ouvi-las.

Nesses anos de experiência cabo-verdiana e africana, sente que o teu campo de estudo tem mudado? Até que ponto?

Sim, no Brasil tem crescido de forma significativa as pesquisas voltadas para o continente africano. O maior alcance desses estudos sem dúvida nos ajudam a rever e desconstruir toda uma visão estereotipada sobre a África e, consequentemente, sobre os africanos. Penso que quanto mais conhecermos sobre essas realidades mais consistente será a nossa relação de troca. Na Universidade Estadual do Maranhão, instituição em que atuo, temos no curso de história duas disciplinas voltadas para a História da África. Isso significa um grande avanço no curso em que mais de 50% do conteúdo está voltado para a História da Europa. Desde 2003,  temos tido mudanças significativas com a implementação de Lei 10.639, que tornou obrigatório o Ensino de História e Cultura Africana e Afro-brasileira, em todas as instituições de ensino público e privado do país. Esta foi uma demanda histórica do movimento negro, no sentido de fazer com que a população pudesse conhecer a história dos povos que contribuíram de forma significativa para a formação do nosso país. O mesmo se refere a Lei 11.645, de 2008, que ampliou a Lei 10.639, com a inclusão da História e Cultura dos povos indígenas. Infelizmente, no contexto de instabilidade política que vivemos atualmente, tais leis foram revogadas.

Sei que tem deslocado a outros países africanos, nomeadamente o Senegal. Outros campos de pesquisa ou outros temas têm surgido? Se sim, quais? E qual tem sido a tua abordagem?

Sim, nessa nova etapa da pesquisa tenho procurado analisar outros cenários de comercialização das rabidantes, particularmente, a relação com os demais países africanos. E o Senegal constitui um dos principais destinos de compra dessas mulheres. A priori a intenção era compreender melhor as dinâmicas de comercialização, tais como os principais pontos de aquisição de produtos, itens de maior procura, valor investido, lucratividade, dentre outros. Mas, devo confessar que a pesquisa de campo me incitou a refletir sobre outras problemáticas. De imediato me chamou atenção o fato de lá o comércio ser marcadamente masculino, os homens estão nas ruas, eles comercializam.  Ao longo de alguns levantamentos tive contato com debates que ocorrem em um importante ponto de comercialização em Dakar, o Mercado de Sandaga, em que as mulheres estão exigindo maior espaço e independência. Estou agora tentando aprofundar as leituras e escrever mais sobre essa questão. É importante perceber como que em cada contexto esses agentes possuem formas próprias de atuação. Espero futuramente poder percorrer e conhecer a realidade de outros países.

Quem conhece ou já contactou, mesmo que superficialmente, os movimentos negros brasileiros e os movimentos de mulheres negras brasileiras fica com a impressão de que existe um saudosismo em relação à África e aos Africanos. O facto de a Tatiana pertencer a esses movimentos, e com a sua experiência africana com mulheres e enquanto mulher, tem suscitado algum tipo de crítica e autocrítica?

Toda a trajetória dos movimentos sociais, particularmente, dos movimentos negros e dos movimentos de mulheres negras no Brasil, partem da visão de uma África idealizada, que necessariamente não corresponde às realidades vivenciadas no continente africano. Claro que vivenciamos um contexto de mudanças, toda essa aproximação tem exigido também um esforço de autocrítica. Se pararmos para pensar que até muito recentemente as influências africanas eram negadas ou mesmo deslegitimadas, é importante reforçar esses laços. Por mais que seja para perceber o quanto somos de diferentes. No caso particular dos movimentos de mulheres negras, estamos cada vez mais certas do quanto as nossas experiências de vida são específicas. Ora, isso é perceptível mesmo internamente ao nosso país, ou seja, o que é ser mulher negra maranhense? O que é ser mulher negra baiana? Mas, o que é importante em todo esse contexto, e vejo que isso sim deve impulsionar essa maior aproximação entre nós, aqui e na diáspora, diz respeito a pensar como, para além das nossas diferenças, temos conseguido resistir ao processo histórico de exclusão que vivenciamos? Como as nossas trocas de experiências podem nos incitar a refletir sobre todo esse silenciamento? Como as mulheres do lado de cá e do lado de lá do Atlântico estão buscando formas de empoderamento? No caso particular das rabidantes, como mulheres semianalfabetos, que numa lógica capitalista estariam (estão) excluídas do mercado do trabalho, se tornam verdadeiras empreendedoras? Penso que essas trocas de experiência são potencialmente transformadoras.

* Utilizo aqui os dados INE por agregarem as contribuições das rabidantes, embora como já ressaltado, não concordo necessariamente com o enquadramento dessa prática no setor informal. Mas é de onde é possível mensurar as contribuições económicas desta prática.

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SOBRE O AUTOR

Carla Carvalho

Editora e colunista de Santiago Magazine, política, socióloga, professora universitária, pesquisadora em género e desenvolvimento

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