Espaço Angola
_ Vavô, Vavô! Vem depressa. Tem preso!
Velho Petelo se virou e interrogou com seus olhos pequenos piscando na luz do sol da manhã coado nas folhas da mandioqueira:
- Menino disse tem preso? Viste com teus olhos?
Arrastando a perna esquerda e seguido por miúdo Zito, atravessou na sala e saiu para o areal vermelho. (9)
É dos pés ligeiros do miúdo Zito, de seu olhar atento, de sua esperteza aguçada, que nos vem a urgência de libertar Angola.
O espaço Angola é cartografado em cores e contrastes. Não simplesmente algumas cores retiradas ao calhar do Arco-Íris; mas, sim, a sua representação subentendida nas chamadas cores da África: o verde, o vermelho o amarelo, reforçados desde Vidas Novas, tal como o negro simbólico associado ao Continente e ao homem africano que se pretende conscientizar. E as leituras do branco, muitas vezes em contraste com o Negro, outras em mosaicos inquietantes. Referências identitárias em conflito, uma angolanidade que urge e uma dignidade do angolano, do africano e da humanidade como meta maior.
O deslocamento das personagens, sempre presente ao longo da narrativa, é uma das metáforas do texto: o deslocamento de Domingos Xavier, que de operário e bom Pai de família, homem simples com pretensões humildes _ quase todas elas sublimadas ao futuro do Bastião _ , se transforma, no seu penoso trajeto à cidade-prisão, em um quase mártir do silêncio. Sinal que representa a resistência à violência e ao ultraje, e que vence, em nome dos outros irmãos, com a arma do riso. O deslocamento posterior de Maria e Bastião, “Mulher com Mona”, também para a cidade, à procura de Domingos; e de todos os jovens e mais velhos que se mobilizam e aderem à causa; mas o mais simbólico de todos é a ação da dupla Avô e Neto, duas gerações, a experiência- sabedoria e a continuidade-esperança, cujos percursos marcam o ritmo da narrativa, em várias sequências significativas, pelas “ruas asfaltadas no meio do rio negro que desagua na cidade branca” onde, quase sempre, se vêm “as árvores velhas chorando seiva nos passeios” (p.13). Deslocamentos do campo para a cidade, da cidade negra para a branca, do espaço interior dos personagens para o exterior, que são Angola e a luta; da alienação para a conscientização. Deslocamentos, tantos quantos necessários. E alguns deslocamentos que permanecem por fazer.
Era sempre assim: pegava miúdo Zito na mão, qualquer que fosse a hora, e lá iam para baixo, até na Companhia onde trabalhava Mano Xico, um dos afilhados do velho marinheiro. Zito gostava ir. Além de ver tudo com seus olhos curiosos, os carros bonitos que não tinha lá em cima, as casas grandes e limpas, alocava com mano Xico na quitanda da praia e depois ficava, banzo, a ouvir falar de coisas novas, coisas que, muitas vezes, repetia aos meninos da mesma idade, alguns mesmo meninos da escola que não aceitavam. (13)
Miúdo Zito são os olhos e as pernas de Vavô Petelo que, embora “Takudimoxi”, aceita o desafio de fazer a travessia de Angola, das ruas, dos musseques, da ilha, da praia, da cidade limpa e, principalmente, da Angola que existe em cada um dos personagens.
Quando, finalmente, o leitor se descobre, em plena rua da cidade, no meio da multidão atônita com a figura física imponente do Negro, ele descobre que Domingos Xavier está curvado, forçosamente curvado porque amordaçado, no seu corpo e na sua dignidade; a partir desse momento a morte antevista passa a ser uma vitória.
O enredo é uma convocação, em tempo presente/urgente, para uma melhor Angola. O texto literário é construído com um repertório lexical e com estratégias de narrativa que transferem para a materialidade da língua as propostas e questionamentos de nível temático: em que o ritmo, as figuras de estilo, os focos e a construção das personagens se harmonizam com o conteúdo do texto-projeto e do projeto-homem novo.
Nem a música “Muxima”, no grande baile que encerra o enredo e proclama Domingos como herói, consegue dizimar, no leitor, o desconforto provocado pela violência desse mundo colonial e da legitimidade do projeto político ora em construção.
Com esta pequena introdução, iniciada no ambiente de uma Angola ainda na fase colonial, em que a urgência da libertação é questão principal, pretendemos fazer o enquadramento do presente trabalho. A vida verdadeira de Domingos Xavier, em sua terceira edição por Edições 70, escrita por Luandino Vieira em 1961 e editada primeiramente em 1974, foi escolhida como obra primeira a ser abordada. Líderes imperfeitos como Mussunda, cujo nome não deve ser pura coincidência com o poema de Agostinho Neto, paratexto da nossa edição, mas que conhecem bem o seu Povo e ao seu lado constroem caminhos; ícones musicais, referências recreativas e culturais, o espaço Angola, como chão, são traços que permitem diálogos com um desafio da unidade e solidariedade propostos: entre os angolanos e entre estes e outros africanos que se propuseram, juntos, a vencer o colonialismo e a libertar as nações que permaneciam sob tal jugo.
Pretendemos, nesta pequena reflexão, abordar os sentidos do lema “Unidade e Luta”, no contexto da concepção e realização do projeto do homem novo; tentaremos discorrer sobre o papel da literatura, em particular, e da cultura, em geral, no processo de divulgação dessas ideias e da conscientização dos africanos e de outros povos do mundo da relevância do projeto; e, por fim, propomos ler o texto literário como o único espaço possível de realização de tal projeto, nos dias atuais. E ainda que a escrita da africanidade se constitui ela própria uma narrativa, pela epopeia que ela é percorrida à busca de um lugar e de uma forma de ler e analisar. Que os princípios de leitura assumidos pelo tradiconal cânone ocidental ajudam a compreender a estruturação do texto literário africano, de forma geral, apenas na perspectiva de enquadramento e traços genéricos de abordagem. Textos como De Rios Velhos e Guerrilheiros, do mesmo autor, são o exemplo de que há um mundo outro por se desvendar que fala no texto e antes dele, obrigando o leitor a outras abordagens.
2 Os desígnios de “Unidade e Luta”
A metáfora da luta, sempre presente no quotidiano africano como condição de sobrevivência, é inserida no projeto da Revolução. A meta da libertação das então colônias africanas retoma, provavelmente, uma referência do imaginário coletivo de enfrentamento, perseverança, resistência. O vocábulo torna-se polissêmico, enquanto se reforçam sinergias e se definem as estratégias de ação. Termos como “luta clandestina”, “luta armada”, “cultura como arma de luta”, entre outros, são alguns que se acrescentam ao repertório lexical dos militantes e outros cidadãos, para transformar tal metáfora em diversas formas de luta (pelas armas, pelas palavras, pela ação…) mas em união.
A unidade é, também, outra palavra que serve aos princípios da revoulução e é utilizada como estratégia de reforço conjunto para a consecução dos objetivos.
O conceito de unidade tinha sido interiorizado, não só entre os militantes do Partido, como das populações mobilizadas para a luta, incluindo entre as comunidades das zonas ainda sob o cotrolo dos portugueses.
Essa consciência generalizada do significado da palavra é fruto de um esforço extraordinário de explicação sobre os princípos do PAIGC que teve lugar em 1956. (...)
Os conceitos de unidade e luta foram os temas que mereceram, de Cabral, a maior atenção e empenho nesse encontro, que ele dirigiu pessoalmemte. Cabral revelou-os, aos meus olhos, um pedagogo nato (…) Nesse seminário o conceito da unidade é apresentado como uma noção estática, num conjunto de objetos diferentes, no conjunto de militantes sentados na sala do seminário; depois a ideia é explicada no sentido dinâmico com o exemplo do conjunto de homens diferentes que constituem um team de footbal; diferentes em grau de instrução, diferentes na religião que professam, diferentes inclusive na ideologia do partido a que eventualmente estão filiados. Enfim pessoas diferentes umas das outras, considerando-se cada um diferente do outro, mas todos integrados na mesma equipa, com o mesmo objectivo.
E Cabral toma o cuidado de indicar “que o fundamento principal da unidade é que para ter unidade é preciso ter coisas diferentes. Se não forem diferentes não é preciso fazer unidade(..)(p 27-28)
Na década de 60, acontece um momento fulcral de luta. A ideia da promessa de vida nova ganha novos contornos com o enfraquecimento do colonialismo, e, de uma forma geral, a libertação das colónias francesas e inglesas e na derrocada provocada pela luta armada. A PIDE começa a perder o controle e reforça o terror. As lutas armada e clandestina, pouco a pouco, ganham legitimidade aos olhos da comunidade internacional o que levará à independência das colónias dos PALOP entre 1973-1975. Muitos presos políticos se tornaram escritores e os antigos escritores, enquanto encarcerados, conceberam suas melhores obras.
No Campo da Morte Lenta Luandino Vieira passou oito anos. Para poder escrever, aceitou ser caçador de ratos. E no dia em que praticamente o expulsaram do campo, ele lembra em entrevista a O Público, PT, 2009:
“De modo que quando me avisaram fui apanhado a trabalhar na carpintaria. Recordo muito bem que foi de manhã: “Arranje as suas coisas que vai sair.” Vieram os guardas e o chefe e toda a gente. E eu “Sair porquê?” E disse: “Só saio à tarde. Vou acabar o que estou a fazer, depois vou arrumar as minhas coisas, depois vou almoçar o último almoço com os meus companheiros.”
P (O Público) - Saiu sozinho?
L (Luandino Vieira) - Fiquei no Tarrafal à espera da minha mulher e do meu filho, na casa de dona Beba. Ainda ficámos lá um mês. E depois viémos para Lisboa. Múltiplas peripécias. Mesmo com liberdade condicional era residência fixa.
P - Ao fim de oito anos de Tarrafal, como é que se aterra em Lisboa, uma cidade desconhecida para si?
L - Mas eu vivo assim, cá no meu mundo, e é uma espécie de mundo ambulante que vai comigo para onde vou.[…]
No dia 25 de Abril de 1974, o Campo de Concentração do Tarrafal abriu as suas portas à liberdade. Depois da independência das outras quatro colónias Angola, Cabo Verde, Moçambique e S. Tomé e Príncipe, o Campo da Morte Lenta teve várias “funções”, até se ter transformado, pelo Governo de Cabo Verde, num Museu de Resistência.
CONTINUA
O projeto em que este texto se insere tem como linha de pesquisa «Perspectivas interdisciplinares dos estudos literários», do Capítulo Espaço Angola: “Luandino Vieira e Pepetela: Do projeto revolucionário democrático à inevitabilidade do neocolonialismo”, que resultou na monografia cujo título é: “Personagens infantis: a escrita como o possível necessário para a África de hoje no espaço da CPLP”
(Texto integrante do projeto “Literacia dos média e o público infanto-juvenil”. Publicado mediante autorização da Editora Casa e Verbo, com conhecimento da Sociedade Cabo-verdiana de Autores: Praia, Janeiro de 2020)
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