No Centenário do nascimento de António Nunes. Por José Luis Hopffer Almada
Cultura

No Centenário do nascimento de António Nunes. Por José Luis Hopffer Almada

  1. José Luís Hopffer Almada, poeta, ensaísta, analista e comentador radiofónico, a residir em Lisboa, escreve (versão abreviada que Santiago Magazine publica na íntegra) sobre o centenário do nascimento do ilustre poeta santiaguense António Nunes, que se comemora este sábado, 9 de Dezembro. 
  1. 1. Comemora-se no próximo dia 9 de Dezembro o centenário do nascimento de António Nunes.
    Tendo tido uma vida assaz breve de apenas trinta e três anos de idade, pois que nascido na cidade da Praia a 9 de Dezembro de 1917 e falecido em Lisboa a 14 de Maio de 1951, vítima de tuberculose pulmonar e de uma meningo-encefalite, António Nunes foi todavia protagonista de um percurso literário muito singular.
  2. Com efeito, no seu curto tempo de vida, e depois de, tal como, aliás, Henrique Teixeira de Sousa, seu futuro confrade das tertúlias lisboetas, se ter estreado com o poema “Spleen” na folha liceal Juventude (1936-19379), António Nunes logrou laborar nas três estéticas fundamentais que marcaram a literatura caboverdiana do período colonial: a clássico-romântica; a claridosa e a nova-largadista:
    A estética romântica (e ultra-romântica) é quase exclusiva do seu primeiro livro de poemas intitulado Devaneios (Praia, 1938, edição do autor, impresso na Minerva de Cabo Verde) que também retém no seu último e terceiro caderno intitulado “Últimos versos” laivos marcadamente decadentistas e simbolistas. 
  3. O mesmo livro é avalizado por uma “Apresentação” de José Lopes, um dos mais prestigiados e respeitados poetas caboverdianos dessa altura, aprimorado cultor da métrica e da rima e mestre da poesia clássico-romântica, o qual sobre António Nunes emite o juízo “Este nasceu poeta e poderá ir muito longe”, considerando ademais que “o volume de poesias que ele agora publica sob o título “Devaneios” confirma plenamente aquele meu juízo”. Mais adiante, assevera o conceituado poeta: “O volume é um florilégio. Alguns dos seus poemas são perfeitos de metrificação, e todos repassados de verdadeiro Sentir (…)". Conclui o poeta hesperitano: “Na pessoa dele vejo levantar-se mais um Vate harmonioso na terra de Cabo Verde”.
    Creditando-lhe ainda a perfeição na composição de versos eneasílabos “ neò-métricos” (neologismo criado por José Lopes), afirma o mentor de António Nunes: “Só por aí se revela um verdadeiro poeta, e ele o é sem contestação”.
  4. Com efeito, a poesia constante do livro Devaneios parece estar completamente sintonizada com a poesia cultivada por poetas portugueses, brasileiros e cabo-verdianos da segunda metade do século XIX e das primeiras décadas do século XX, com destaque para António Nobre, Casimiro de Abreu e, entre os caboverdianos, para Guilherme Dantas, Januário Leite e Guilherme Ernesto (pseudónimo de Félix Lopes da Silva), no seu sentimentalismo romântico, no seu culto de um certo pessimismo ontológico e, a final, desvanecidas ou malogradas as ilusões amorosas, na procura da morte como almejado destino, como se detecta em especial no poema “Spleen”.
    Perpassam todavia nessa poesia episódios das vivências na sua cidade natal e referências a lugares em especial à Praça Grande da Cidade da Praia e a sua envolvente arquitectónica feita de sobrados, à flora (por exemplo, a lantuna), à fauna (por exemplo, as andorinhas), a lugares e a expressões culturais caboverdianas, com destaque para a morna, ao lado de referências universais dos poetas românticos, como o inevitável rouxinol.
  1. Sendo a musa e a amada em regra caracterizadas como moças e donzelas de tez branca e cabelos por vezes alourados, outras vezes negros, não faltam todavia referências encomiásticas a mulatas, como no poema “Crioula”.
    Segundo depoimento de Manuel Lopes (in Daniel Spínola, Evocações, Volume I, IBNL, Praia, 2004), ele próprio, na sua fase pré-claridosa, pupilo de José Lopes e colaborador do Novo Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro com poemas de teor clássico-romântico, António Nunes teria enviado para publicação na revista Claridade poemas do teor daqueles constantes do livro Devaneios, os quais teriam sido recusador por ele, Manuel Lopes, enquanto Director da revista, em razão do seu nítido desfasamento em relação ao telurismo modernista propugnado e praticado pelos claridosos. Não obstante essa recusa, os poemas do futuro livro Devaneios proporcionaram ao novo cultor das letras a fama de “poeta mavioso” nos meios juvenis praienses, segundo verificação in loco de Teixeira de Sousa numa sua passagem em 1938 pela cidade capital da província ultramarina (“António Nunes-Testemunho de Henrique Teixeira de Sousa”, in Poemas de Longe por António Nunes, 2ª edição,. ICL, Praia, edição produzida pela ALAC, s/d). Na cabeça de Teixeira de Sousa ficaram incrustados os versos iniciais do poema “Spleen”: “Rosas da cor do sangue/Abri-vos! Quero ver-vos!/Poentes de cor trágica! Quero contemplar-vos!/ Ó bramidos do mar! Irritai-me hoje os nervos/Que eu sinto imenso tédio e, só, pretendo amar-vos!
  2. Interessante neste contexto é o depoimento de Manuel Ferreira (in Michel Laban, Cabo Verde-Encontro com Escritores, Primeiro Volume, Fundação Engenheiro António de Almeida, s/d), segundo o qual “dois ou três anos antes da publicação da Certeza todos (os promotores dessa revista) faziam o seu exercício nos moldes tradicionais. A sua grande sombra era a do poeta José Lopes e um pouco menos Januário Leite”. A mesma opinião é corroborada por Manuel Lopes que assevera que, antes da sua conversão ao modernismo, Arnaldo França e outros futuros poetas da Certeza foram gandes admiradores de José Lopes (in Danny Spínola, Evocações, Primeiro Volume, Praia, IBNL, 2004).
  3. 2. Segundo vários testemunhos de Henrique Teixeira de Sousa (“António Nunes - Testemunho de H. Teixeira de Sousa,”, in Poemas de Longe por António Nunes, 2ª edição, ICL, Praia, edição produzida pela ALAC, s/d, e Michel Laban, Cabo Verde-Encontro com Escritores, Primeiro Volume, Fundação Engenheiro António de Almeida, s/d) foi a sua estadia em Portugal e o convívio com os escritores portugueses neo-realistas (Manuel da Fonseca, Alves Redol, Soeiro Pereira Gomes, Carlos Alberto Lança, Sidónio Muralha, Mário Dionísio, Eugénio de Andrade, etc.) das tertúlias das caves do Café Portugal e do Café Gelo e do Café Paladium , nas quais foi introduzido por Teixeira de Sousa e se incluía igualmente o santomense Francisco José Tenreiro, que determinaram uma profunda viragem na poesia de António Nunes e de que a sua colaboração com o “Poema de Amanhã” na revista Certeza, o seu livro Poemas de Longe e outros poemas dispersos, como “Ritmo de Pilão”, constituem eloquentes testemunhos. Papel relevante na ancoragem intensamente telúrica da sua nova poesia terá desempenhado certamente o seu conhecimento anterior dos livros Arquipélago (1935) e Ambiente (1941), de Jorge Barbosa e dos três primeiros números da revista Claridade publicados entre Março de 1936 e Março de 1937,
    Essa viragem consubstancia-se na adopção de uma mundivisão de comunhão com os sofrimentos, as expectativas e os anseios das criaturas mais humildes das ilhas bem assim duma estética de feição marcadamente claridosa fundada no versilibrismo e numa linguagem simples, muito marcada por um certo teor prosaico quiçá influenciada por poemas dos livros Arquipélago e Ambiente, de Jorge Barbosa. É, aliás, esse prosaísmo descritivo da linguagem que suscita sérias reservas de Jaime de Figueiredo quanto à qualidade estética de grande parte dos Poemas de Longe, considerando o critico ademais que, apesar de uma sua deliberada vontade de vivência poética, o seu autor não teria sido completamente possuído pelo estado de poesia. 
  4. Tal como em Jorge Barbosa, afloram na poesia de António Nunes constante de Poemas de Longe cenários e vivências, personagens e quadros vários evocados e rememorados, por vezes em tom melancólico-saudosista, e remissíveis à cidade da Praia e à ilha de Santiago. Segundo Jaime de Figueiredo, António Nunes “se situa (…) sob o signo do quotidiano, inaugurado entre nós com a poesia de Jorge Barbosa” (“Um texto de Jaime de Figueiredo- Um poeta do quotidiano crioulo” in Poemas de Longe por António Nunes, 2ª edição, ICL, Praia, edição produzida por ALAC).
  5. Marcante no livro é igualmente a indiciação e a assinalação de momentos crísicos, de natureza estrutural e determinantes de um característico evasionismo, tanto de teor psicológico, como de matiz terra-longista, predominantemente determinado por motivações de fuga à miséria reinante e ao bloqueio total adveniente do insulamento circundante e das muitas negligências do poder então dominante.
    Essa poesia de teor teluricista, na qual os problemas com que se debatia o povo das ilhas (as secas, a miséria, a ausência de perspectivas, etc.) e as suas manifestações culturais, designadamente a morna, o batuco e os ritmos do ferro e da gaita (denominadas fuco-fuco) e do seu instrumentário (o violão, o violino, a cimboa, etc), constitui o ponto de partida para uma poesia de ruptura, de espírito progressista e fecundante e tom efusivamente esperançoso econstrutivista e de que o “Poema de Amanhã” é a consubstanciação suprema. 
  1. 3. Com efeito, é o “Poema de A manhã” que fez com que António Nunes se tenha tornado num dos poetas mais icónicos de Cabo Verde e da literatura caboverdiana dos períodos colonial e pós-colonial.
  2. Publicado pela primeira vez, em 1944, no nº 2 da revista Certeza, editada pela geracional Academia Cultivar dos alunos do Liceu Gil Eanes, o “Poema de Amanhã” marca o início de uma Nova Largada na poesia caboverdiana, ainda antes da congregação em Lisboa nos anos cinquenta do século passado do grupo político-cultural homónimo e que se manifestaria de forma colectiva no nº único da revista Suplemento Cultural, adstrito ao célebre Boletim Cabo Verde (Praia, 1949/1964), e que viria a aprofundar-se e a consolidar-se plenamente nas décadas de cinquenta e sessenta do século XX com a poesia de Aguinaldo Fonseca, Gabriel Mariano, Ovídio Martins, Onésimo Silveira, Timóteo Tio Tiofe, Kaoberdiano Dambará, Mário Fonseca, Arménio Vieira, Oswaldo Osório, Corsino Fortes, entre outros.
  3. Interpretado tanto no sentido neo-realista do apelo a transformações radicais na estrutura agrária do arquipélago, mormente das ilhas do latifúndio, de que Santiago seria o caso paradigmático, como no sentido libertário da obtenção da autodeterminação política do seu país natal, o “Poema de Amanhã” e, em especial, os seus versos “estas leiras de terra que se estendem/quer sejam Mato Engenho Dàcabalaio ou Santana/ filhas do nosso esforço frutos do nosso suor /serão nossas” marcam uma cesura fundamental no labor poético de António Nunes no contexto literário caboverdiano.
  4. Outros poemas posteriores, dispersos por publicações várias, como por exemplo “Ritmo de Pilão”, assinalam a emersão do poeta no passado escravocrata de Cabo Verde e o resgate do papel do negro e do negro-mestiçado na construção da identidade caboverdiana para daí extrair as raízes de suor nas quais se forjou o povo caboverdiano e se legitimou o seu direito à terra onde nasceu.
    É essa poesia de ruptura nova-largadista e de tom redentor e profético que alcandorou o poeta António Nunes ao lugar cimeiro que ocupou nas movimentações político-culturais que conduziram à independência nacional e lhe granjeou um inequívoco papel de profeta dos dias vindouros de um Cabo Verde melhor, mais moderno e com mais justiça social, objecto da permanente demanda dos caboverdianos das gerações que o antecederam, dele contemporâneas e que se lhe seguiram, nos tempos coloniais e nos tempos pós-coloniais.
  5. 4. O lugar acima referido de António Nunes é-lhe reconhecido por um grande número de personalidades
    e estudiosos da literatura cabo-verdiana.
    É assim que, depois de reconhecer e valorizar devidamente o papel dos claridosos no enraizamento da literatura caboverdiana, escreve Amílcar Cabral nos seus “Apontamentos sobre a Poesia Cabo-Verdiana (Boletim de Propaganda e Informação, Ano III, nº 28, Praia, 1/1/52)”: “Mas a evolução da poesia caboverdiana não pode parar. Ela tem de transcender a “resignação” e a “esperança”. A “insularidade total” e as secas não bastam para justificar uma estagnação perene. 
  6. As mensagens da “Claridade” e da “Certeza” têm de ser transcendidas. O sonho de evasão, o “desejo de querer partir” não pode eternizar-se. O sonho tem de ser outro e aos Poetas- os que continuam de mãos dadas com o povo e de pés fincados na terra e participando no drama comum- compete cantá-lo. O caboverdiano de olhos bem abertos, compreenderá o seu próprio sonho, descobrirá a sua própria voz, nas mensagens dos Poetas. 
  7. Parece que António Nunes e Aguinaldo Fonseca estão na vanguarda desta nova poesia.
    O primeiro auscultando a terra e o Povo, sonha com um amanhã diferente que antevê possível. E descreve a alteração que há-de operar-se: “Em vez dos campos sem nada…”. E profetiza para a terra caboverdeana “a Vivificação da Vida”.
    O segundo exprime, em toda a sua grandeza, o “naufrágio em terra” do povo a que pertence. Retrata os “homens calados” sofrendo a dor da terra-mãe num abandono de não ter remédio”. Dos homens “presos na cadeia da desesperança”. E o seu sonhoo não é de “querer partir”: É de “outra terra dentro da nossa terra”. 

  8. Para Manuel Ferreira, que embora reconhecendo mérito à excepcional competência crítica de Jaime de Figueredo, considerou “excessivas” as suas reservas em relação aos Poemas de Longe, “António Nunes preenche no percurso poético caboverdiano um lugar de importância indiscutível. Repare-se que embora denunciando, em tantos aspectos, o peso da estética barbosiana, depois do Arquipélago, da Claridade, dos Poemas de Quem Ficou, de Manuel Lopes, passando pela Certeza -, Poemas de Longe é o marco na estrada real da poesia caboverdiana que, em 1951, vai alcançar outro momento importante com Linha do Horizonte, de Aguinaldo Fonseca” (“Notícia Bibliográfica e Nota Explicativa”, in Poemas de Longe por António Nunes, 2ª edição, ICL, Praia, edição produzida por ALAC). Para o mesmo autor “é António Nunes, vivendo em Lisboa, e dos mais adestrados entre eles (isto é dos colaboradores da revista Certeza) e perfeitamente sintonizado com o espírito do grupo que dá o tom em nota alta: “Mamãe, sonho que um dia (…) ” (in Michel Laban, Cabo Verde-Encontro com Escritores, Primeiro Volume, Fundação Engenheiro António de Almeida, s/d). 
  9. Nas suas “Breves Notas sobre a Literatura Cabo-Verdiana” (in revista Raízes, Praia, nº 21, Junho de MCMLXXXIV), assevera Manuel Duarte: “Até aos primeiros anos da década de cinquenta, quando começou a desenhar-se entre os jovens cabo-verdianos, estudantes e outros (da pequena-burguesia e das massas trabalhadoras) o movimento nacionalista, pensamos que não houve, em Cabo Verde, uma literatura de crítica anti-colonial e de cobertura do processo de libertação nacional, se ressalvarmos o extraordinário precursor que foi Pedro Cardoso (anos vinte) e o caso admirável de António Nunes (anos quarenta)”.
  10. (…)
    Finalmente, escute-se Henrique Teixeira de Sousa, para quem o “Poema de Amanhã” é “a obra-prima” de António Nunes: “Recém-chegado de Cabo Verde, mergulhei-o logo no ambiente da cave do Café Portugal. Em contacto connosco, saltou do parnasianismo para o neo-realismo. De tal modo que viria a produzir o célebre “Poema de Amanhã” que ainda se recita com emoção em qualquer das comunidades caboverdianas desde à autóctone às estrangeiras. Não se esqueça que o “Poema da Amanhã” foi quase um hino de esperança, muito declamado durante a luta de libertação. ” (in Michel Laban, Cabo Verde-Encontro com Escritores, Primeiro Volume, Fundação Engenheiro António de Almeida, s/d)

  11. 5. Em conclusão, pode-se pois considerar que a comemoração do centenário do nascimento de António Nunes, num tempo em que são efectivamente valorizados os legados dos protagonistas dos diferentes momentos da existência da literatura cabo-verdiana, se celebram os 150 anos do nascimento de Eugénio Tavares e Januário Leite, o 80º- aniversário do nascimento de João Manuel Varela (o criador de João Vário, Timóteo Tio Tiofe e G. T. Didial) e Oswaldo Osório, além de várias efemérides claridosas e neo-claridosas, e em que múltiplas linguagens poéticas co-existem no panorama literário caboverdiano actual, se afigura como uma ocasião propícia pra celebrar num único autor todas as escolas e estéticas literárias, desde as pré-claridosas (ou ultra-românticas) às claridosas e pós-claridosas (ou nova-largadistas), todas elas cultivadas por António Nunes com autenticidade humana, sentido de superação temática e estética para uma sua cada vez maior e melhor identificação com os anseios do povo de que provinha, por vezes, com grande mestria poética, como, consensualmente admitido, nos casos do “Poema de Amanhã” e “Bate Pilão bate”. 

  12. Lisboa, 30 de Novembro de 2017

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