1. Introdução
Persiste ainda, na nossa sociedade, um sistema articulado de conceções equivocadas sobre o crioulo de Cabo Verde[3] (e os crioulos de um modo geral). Apesar de não terem bases científicas, esses equívocos estão profundamente registados no senso comum e infiltrados em alguns de nós. Por isso, têm desempenhado um papel impeditivo importante na concretização de medidas de política linguística favorecedoras do desenvolvimento da língua cabo-verdiana como sejam a sua oficialização e o seu ensino. Tendo em conta o papel do conhecimento na desconstrução dos mitos, discutem-se 12 dessas ideias[4], mostrando evidências científicas que as contrariam, tendo em vista contribuir para a construção de uma comunidade mais harmonizada em que as línguas de Cabo Verde se possam expandir livremente.
2. Mitos sobre a língua cabo-verdiana
Esses mitos, que menorizam a língua cabo-verdiana (LCV), são produtos de uma configuração sociocultural dominada por uma ideologia linguística colonial que exigia e impunha o domínio da língua do império, apresentada como o modelo ideal de língua e, como contraponto, o aniquilamento das outras, entendidas como símbolo da inferioridade dos seus falantes, para, assim, impor a sua cultura e o seu projeto político. Por isso, esses equívocos foram amplamente difundidos, naturalizados e inculcados na mente dos cabo-verdianos, determinando as suas atitudes face à sua própria língua materna, a ponto de alguns, cada vez menos, felizmente, admitirem que não falam uma língua ou falam algo que ainda não o é.
Assim, na sequência da discussão do Mito 1: O crioulo não é língua, prosseguimos com o mito 2.
Mito 2: O crioulo cabo-verdiano é um dialeto do português
Só no Séc. XIX, os crioulos despertaram interesse científico e, em Portugal, apenas a partir dos anos cinquenta do Séc. XX. Os resultados dos estudos levados a cabo mostraram que, apesar de serem línguas surgidas, como referido, do contacto entre as línguas europeias, dos colonos, e as línguas africanas, dos escravos, não são o resultado de uma evolução dessas línguas europeias nem tão pouco das línguas africanas, como o Português, por exemplo, é do Latim. Nesse caso, e diferentemente do que acontece com os crioulos, é possível descrever as mudanças operadas na passagem de uma língua para a outra, ao longo de séculos, traçando-se uma linha evolutiva ininterrupta. Ou seja, não se pode falar de uma filiação genética para os crioulos, uma vez que não emergem de qualquer das línguas em contacto que estão na sua génese (Kaufman e Thomason, 1991)[5]. Por não serem descendentes diretos de qualquer dessas línguas, não se incluem em nenhuma das famílias das línguas africanas ou na família das línguas românicas ou neolatinas que estão na sua origem.
A maior parte das palavras do crioulo de Cabo Verde tem origem na língua portuguesa[6], razão por que os linguistas dizem que se trata de um crioulo de “base lexical portuguesa”, sendo essa língua designada de língua lexificadora ou de superstrato. Também existem crioulos de base lexical francesa, inglesa, espanhola, etc. Já a sua gramática, como a de todos os crioulos, é um compromisso entre as gramáticas das línguas em presença, podendo incluir ou não a língua lexificadora. Todo esse material lexical e gramatical foi reanalisado, reelaborado e reestruturado, formando-se uma nova língua, com uma estrutura organizativa própria.
Também, durante muito tempo, discutiu-se, entre os linguistas, se os crioulos eram línguas autónomas ou dialetos das suas línguas lexificadoras. O termo dialeto significava, então, uma maneira de falar diferente da variedade tomada como padrão, um desvio em relação à norma-padrão que era considerada ‘a língua’.
Por causa disso, esse termo ganhou conotação pejorativa: uma maneira de falar com estatuto inferior ao de língua. E foi aplicado com esse sentido às línguas de povos não europeus, tal como, no passado, os gregos apelidaram de bárbaros a todos aqueles que não falavam o grego que era considerado o modelo ideal de língua. Assim se explica que, ainda hoje, nos países africanos de língua portuguesa, haja quem considere as línguas africanas ou os crioulos como dialetos e não como línguas. Por isso, uma linguista são-tomense, Afonso (2008:11)[7] considera que o regime colonial foi tão eficaz “no sentido de ter conseguido convencer, sobretudo a elite são-tomense, da menoridade linguística do crioulo” que, ainda hoje os são-tomenses preferem o termo dialeto para se referirem aos seus três crioulos autóctones, transferindo a carga pejorativa para o termo crioulo que é usado apenas para a língua cabo-verdiana, a terceira língua falada nesse país.
No entanto, o próprio conceito de dialeto evoluiu em Linguística, designando hoje, uma maneira de falar como resultado da dispersão geográfica de uma língua: dialetos do Fogo, São Vicente, Santiago, Sal, etc. ou os dialetos setentrionais, centro-meridionais e das ilhas atlânticas do Português Europeu[8]. Todos são dotados de organização estrutural complexa e plena (propriedades comuns a todas as línguas, a que os linguistas chamam de universais linguísticos)[9] e capacidade interna (potencial comunicativo) e, portanto, de igual valor do ponto de vista linguístico. Essa a razão por que os sociolinguistas preferem o termo neutro variedade.
Ou seja, a nossa língua materna não é um dialeto do português, mas uma língua autónoma, com regras gramaticais próprias, diferentes do Português. Diferença não deve significar inferioridade, em qualquer contexto e sob que pretexto for.
* Linguista
[1] Conservo a escrita da palavra ‘cabo-verdiano(a)’ com hífen, que é sustentada por duas regras: i) a que manda colocar hífen nos gentílicos dos compostos onomásticos; e ii) a que indica –iano como o sufixo nominativo que exprime o sentido “natural de…”. Além disso, impõe-se a coerência com a posição assumida por Cabo Verde ao ratificar o Tratado (internacional) do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Se essa circunstância, por um lado, põe em relevo o facto de a ortografia (de qualquer língua) ser uma convenção, evidencia, por outro, que, tendo sido aprovada tal convenção, nenhum indivíduo, isoladamente, se pode arrogar o direito de a modificar de acordo com critérios próprios. Com efeito, esta é a forma constante do VOCALP: Vocabulário Cabo-Verdiano da Língua Portuguesa, aprovado pelo Governo e, portanto, o instrumento que fixa, legalmente, a ortografia da língua portuguesa em Cabo Verde. O VOCALP é parte integrante do Vocabulário Ortográfico Comum da Língua Portuguesa, instrumento previsto no Tratado do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. O VOC segue, adequando, os critérios ortográficos comuns definidos na ‘Sistematização das Regras de Escrita do Português’, discutida e validada pelo Corpo Internacional de Consultores do VOC e aprovada pelo Conselho Científico do IILP em 2016 e foi validado e aprovado politicamente na mais alta instância da CPLP. O VOC e o VOCALP podem ser consultados no Portal do Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP).
[2] Agradeço aos membros da extinta Comissão Nacional para as Línguas as observações, os comentários e as sugestões. As falhas restantes são da minha inteira responsabilidade.
[3] A expressão crioulo de Cabo Verde/ crioulo cabo-verdiano será usada para referir à língua cabo-verdiana em situações históricas ou para tipificar a língua.
[4] Os contra-argumentos dos números 1 a 5 e 7 foram redigidos com base em Pereira, Dulce. O Essencial sobre os Crioulos de Base Portuguesa. Lisboa. Editorial Caminho. Pp. 13-15. 2006. e os restantes com base em Lopes, Amália Melo. As línguas de Cabo Verde: uma Radiografia Sociolinguística. Praia. Edições Uni-CV. 2016.
[5] Thomason, Sara e Kaufman, Terrence. Language Contact, Creolization and Genetic Linguistics. Berkeley. University of California Press. 1991.
[6] Menos de 1% do léxico da língua cabo-verdiana é de origem africana, “sobretudo mandinga (58%), wolof (20%) e tmene (5%)” Ladham, John. The formation of the portuguese plantation creoles. Tese de doutoramento, Universidade de Westminster. 2003, pp. 144, 145, apud Seibert, Gerhard. Crioulização em Cabo Verde e São Tomé e Príncipe: divergências históricas e identitárias. Afro-Ásia, 49 (2014), 41-70, p. 56
[7] Afonso, Beatriz de Castro. A problemática do bilinguismo e ensino da língua portuguesa em S. Tomé e Príncipe. Dissertação de Mestrado. Universidade Nova de Lisboa. Lisboa. 2008.
[8] Classificação de Cunha, Celso e Cintra, Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. Lisboa. Sá da Costa. 1984, p. 10.
[9] Cf. Sim-Sim, Inês. Desenvolvimento da linguagem. Lisboa. Universidade Aberta. 1998, p.23.
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