O teatro cabo-verdiano é tão antigo quanto ao achamento do próprio arquipélago pelos navegadores portugueses, Diogo Gomes e António da Noli, entre 1460 e 1462, embora não tendo sido permitido, legalmente, o seu aviamento tradicional ou verdadeiramente autóctone, até 1975. Pois, tudo o que antes era permitido e que pudesse ser considerado tradição terra a terra, era à lupa joeirado pela administração, que receava insurreição por parte dos escravos, e pela Igreja que não considerava muito católica as tradições africanas, apodando-as mesmo de profanas e pagãs. Não se podia representar nenhuma cena que ferisse a moral doutrinária cristã ou que criticasse o sistema político vigente, por mais que a verdade fosse transparente e óbvia. Esta tese vem corroborar a de Kwame Kondé, pseudónimo do cirurgião cabo-verdiano Francisco Fragoso, quando no seu livro Escritos Sobre Teatro (2010, p. 15), regista as seguintes passagens:
«Tratando-se, com efeito, dum país, vivendo sob domínio colonial, a arte cénica (e, por extensão obviamente a própria música e todas as demais outras formas culturais e artísticas), dado a(s) sua(s) força(s) de impacto, poder de persuasão e capacidade de resistência, nunca poderia(m) ser permitida(s) ou, pior ainda, fomentada(s). Aliás, pelo contrário, contrariá-la(s), reduzindo-a(s) ao nada era a hipótese que se impunha institucionalizar (que, aliás, vigorou com grande e espantosa eficácia)…»
Pode-se apurar que algumas tradições trazidas pelos escravos da Costa da Guiné nos induzam às especulações de que o teatro cabo-verdiano terá daí surgido. Essas manifestações eram demonstradas através de danças e estilos musicais tradicionais das suas origens, por meio de três géneros de manifestações culturais – o Funaná, o Batuque, bem como a música e a dança da Festa da Tabanca –, onde os escravos exteriorizavam as suas angústias, choravam as suas mágoas, partilhavam as suas dores e lamentavam os seus sofrimentos.
O Funaná, principalmente, era o mais abrangente. Apesar de hostilizado, era praticado de forma velada ou clandestina, em larga escala no interior da ilha mãe, ou Santiago. Executado a partir de uma gaita de fole – a concertina – e de um pedaço de ferro – o ferrinho – percutido com uma faca, abrilhantava todas as festas populares e de romarias. As músicas eram improvisadas e as letras parodiavam as situações mais triviais do quotidiano crioulo. Uma catástrofe, um amor frustrado, um casamento mal sucedido ou que a noiva já era usada, um marido enganado, a separação e a saudade, a partida e o regresso, o mar e a emigração, a fome e a miséria são passíveis de serem musicados.
Apraz-nos, porém, transcrever aqui dois exemplos do que acabamos de referir. Primeiro: num certo dia de Verão, do ano de 1970, depois de uma quinzena de trabalho na Brigada Estrada, os trabalhadores receberam os seus salários. Foram às lojas liquidar suas contas da quinzena anterior e aprovisionaram novos fornecimentos de milho, feijão, arroz, banha, peixe, açúcar, pirão, petróleo, sal, café, sabão, etc., e apanharam depois uma boleia num camião basculante, pertencente ao Estado, que transportava paralelos. [Pedras talhadas em forma de paralelepípedo, utilizadas no calcetamento de estradas] Foram sentados por cima desses paralelos, na carroçaria do dito basculante. Percorrido cerca de três/quatro quilómetros, na localidade de Santa Cruz, concelho do mesmo nome, o basculante capotou-se e 13 pessoas perderam a vida. Debaixo dos escombros ficaram rastos terríveis da tragédia: cadáveres mutilados, compras, notas de cem escudos, entre outros. E em menos de uma semana, essa tragédia já era musicada e cantada pelos gaiteiros.
Segundo: em 1971, o Governo Português mobilizou os mancebos com mais de 18 anos para a guerra no ultramar. A instrução militar seria no quartel de Morro Branco em São Vicente e os soldados seguiriam depois para Lisboa, de onde seriam distribuídos para Angola, Moçambique, Guiné Bissau e Timor. Enquanto as mães choravam desesperadas, incertas de que haveriam de voltar a ver os filhos, estes, no camião militar a caminho do quartel, tocavam a gaita e cantavam alegres e felizes:
Já o Batuque, uma excelência nas cerimónias do casamento, narra as epopeias marcantes como a emigração forçada para as roças de São Tomé e Príncipe nos anos 40 e 50 do último século, de jovens que perdem virgindade por litros de milho de um morgado sem escrúpulos, de uma adolescente que fica grávida de um rapasinhu kondoli peladu [Jovem pobretão, sem eira nem beira], que só a volta a procurar depois de a criança estar nascida e ela restaurada, com a única intenção de korta-l leti [Primeira relação sexual após o nascimento de um filho].
E a Festa da Tabanca conserva em si a pureza tradicionalista e praxes vivenciadas pelos escravos oriundos das diversas tribos do continente negro. Ao nosso ver, pois não conhecemos documento que comprove, ela contém marcas que aduzam a hipótese de o teatro cabo-verdiano ter surgido daí. É uma manifestação cultural com caraterísticas semelhantes ao ditirambo na Grécia antiga. Ora Vejamos a explicação do geógrafo e docente da Universidade de Cabo Verde José Maria Semedo:
Carateriza-se por ter um andamento compassado e binário, e tradicionalmente ser apenas melódico, isto é, ser cantado sem acompanhamento polifónico. Estrutura-se no canto/resposta em que o cantor principal entoa versos que logo a seguir são repetidos em uníssono pelos restantes cantores. O acompanhamento rítmico é executado em tambores, búzios e apitos e, vão dançando ao longo do desfile. A parte do desfile consiste num cortejo, que se inicia à porta de uma igreja e vai percorrendo pela aldeia. Esse desfile, chamado buska santu (buscar o santo), destina-se a, recuperar um santo que foi previamente roubado no ato chamado kunpra santu (comprar o santo). Cada elemento desse cortejo representa um elemento de uma aldeia, com cada um a desempenhar uma função específica. Existe o rei da Tabanca, a rainha, o padre, os cativos, os forros, o médico, o ladrão, o bobo, o falcão, etc. Tudo decorria num clima de festa e de genuína representação artística.
(Cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/Tabanca).
Não se sabe ao certo a origem da Festa da Tabanca. José Maria Semedo e Maria Turano defendem que:
…uma das hipóteses para o surgimento da Festa da Tabanca remete-nos para algum ano do séc. XVIII, num dia 3 de Maio. Nessa data é celebrada a festa de Santa Cruz, e os senhores dos escravos, imbuídos de algum espírito cristão, teriam concedido, por um dia, a liberdade aos escravos, permitindo-os que elaborassem os seus festejos. Os escravos teriam então aproveitado essa liberdade temporária para realizar um teatro de rua onde ridicularizariam toda a estrutura social então em vigor. (Ibd).
Juntando sincreticamente aspetos religiosos cristãos com práticas de origem africana, a Festa da Tabanca foi-se desenvolvendo num desfile em que cada interveniente representava um elemento da sociedade como o rei e a rainha, o bispo, os santos, o polícia, o ladrão, o bobo, o médico, o curandeiro, etc. Entretanto, nos finais do século XIX surgiram diplomas legais proibindo a sua execução.
Hoje, por falta de formação e informação, os cabo-verdianos consideram o termo Tabanca como um género musical ou um estilo de dança. E não é verdade. Na Guiné Bissau Tabanca significa uma aldeia ou um povoado, de onde, possivelmente, Cabo Verde o terá importado. Portanto, quando se diz a Festa da Tabanca, quererá dizer-se a festa que se pratica numa determinada aldeia ou povoado.
Entretanto, existem indícios reveladores de várias tentativas para implementação do teatro em Cabo Verde, na segunda metade do século XIX. Segundo Kwame Kondé, no seu já citado livro, (p. 18), só na vila da Praia (mais tarde cidade) fundaram-se entre 1857 e 1892 cerca de treze Associações Recreativas e Culturais, designadamente:
1857 – Sociedade Recreativa Esperança; 1864 – Sociedade Filarmónica juventude; 1867 – Grémio Promotor, Sociedade Dramática do Teatro Africano e Associação Igualdade, estabelecida com o fim de promover e animar o estudo da arte dramática; 1868 – Sociedade Dramática do Teatro de D. Maria Pia de Sabóia; 1869 – Sociedade Gabinete de Leitura; 1876 – Sociedade Euterpe; 1880 – Sociedade Recreativa Clube União e Associação Literária Grémio Cabo-verdiano; 1886 – Associação dos Artistas da Cidade da Praia; 1892 – Sociedade Recreativa Praiense.
E acrescenta ainda que “esses grupos eram estruturalmente alheios à massa, ou melhor, ao povo cabo-verdiano. E alguns estavam condenados, ab inítio, ao malogro por dotarem conteúdos completamente divorciados da realidade sociocultural do arquipélago”.
Nessa altura, a 21 de Março de 1863, foi construído na Cidade da Praia – Capital da Província –, o Teatro que se denominou “Africano”, mas, que mais tarde, por imposição do governo colonial, passou-se a chamar Teatro Virgínia Vitorino, em homenagem a uma poetisa, dramaturga e tradutora portuguesa. Alguns dos célebres atores de então, como Taborda e Joaquim de Almeida chegaram a atuar aí. Atualmente é o Cineteatro Municipal da Praia.
Como afirma João Branco, na página 64 do seu Nação Teatro – História do Teatro em Cabo Verde «devido a carência de documentos que comprovem a existência do teatro em Cabo Verde, ou que nos dotem de algumas pistas que permitam compreender a forma e as razões desse mesmo teatro», muito do que se fala sobre esta matéria antes da independência nacional, pode ser pura especulação. A literatura dramática tem sido subvalorizada ou mesmo ignorada, o que mais distante nos coloca a hipótese de compreender o que foi o teatro colonial em Cabo Verde. Normalmente o teatro cabo-verdiano se resume à encenação e interpretação, através de improvisos e espontaneidade, ficando a dramaturgia, propriamente dita, muito aquém ou, diria mesmo, no plano zero. Sobre este assunto escreveu o poeta e jurista José Luís Hopffer Almada, na revista Kultura nº especial, Setembro de 2001, p.201, o seguinte:
«O teatro em Cabo Verde – Breve historial. Contrariamente aos outros géneros literários, o teatro tem conhecido, enquanto texto literário, um desenvolvimento assaz incipiente em Cabo Verde». E diz ainda: «devido à insuficiência de textos dramáticos, os grupos têm recorrido à adaptação de textos poéticos ou de até de prosa de ficção, a textos de autores estrangeiros, à recriação de tradições orais ou a criação coletiva durante os ensaios a partir de um guião mínimo».
Acreditamos que o verdadeiro teatro cabo-verdiano terá surgido a partir de 1975, com o surgimento de grupos locais, incidindo a sua criação cénica à volta da cultura e tradições arquipelágicas, com raízes fincadas, bebendo a seiva africana, como Korda Kauberdi, com Kwame Kondé (1975); OTACA – Oficina de Teatro de Assomada –, com Narciso Freire (1979); Titina Silá, do Grupo de Base de Achada Fátima da JAAC-CV de Santa Cruz (1981); Teatro Experimental Rubon Manel, com Horácio Santos (Lalaxu) (197…?); Juventude em Marcha, com Jorge Martins (1984); Na Txon di Musteru, com Armindo Tavares (1992); MINDELACT, (1996) uma Associação dirigida até recentemente por João Branco; Nha Násia Gomi, com Armindo Tavares (2005) Grupo do Centro Cultural do Mindelo (2009), etc.
A partir de 1975 deu-se uma verdadeira revolução cultural que, em paridade com o teatro, se pode destacar o incremento e a proliferação das músicas tradicionais, tendo estes, atingido o auge na década de 80, com revelação de novos artistas emergidos do concurso de vozes Todo o Mundo Canta, de onde despontaram nomes sonantes como Jorge Neto, Calú Bana, Zé Henrique, Danilo Semedo, Nataniel Simas, Fantxa, A. T. Djudja, Pulonga’l Bita, Txopa Kul, entre vários outros.
E antes de darmos por findo a incursão deste capítulo, apraz-nos concluir, com breves trechos, sobre a dinâmica e evolução da cultura cabo-verdiana pós-independência. Digamos “cultura cabo-verdiana”, e não “teatro cabo-verdiano”, uma vez que esta dissertação é sobre teatro, pelas seguintes razões: - É quase impossível falar-se do teatro cabo-verdiano sem se referir às suas tradições culturais. Sendo o teatro, até há muito pouco tempo, considerado mero instrumento de produzir risos, associado ao termo palhaçaria e atribuído a todos os palhaços ou, ao nosso ver, ridículos malucos, o epíteto de atores, todas as representações eram de forma improvisada, desprovidas de qualquer pedagogia ou rigor artístico, sem conteúdo que se pudesse aproveitar. Esses pseudo-atores vestiam-se na pele de um bêbado ou mendigo e satirizavam as suas culturas, não de forma a melhorá-las, mas de forma, tão-somente, a provocar risos. Essas representações eram bem patentes durante as marchas em algumas festas populares. Nas da Tabanca em Santiago, de São João em Santo Antão, do Carnaval em São Vicente e da Bandeira na ilha do Fogo. As Tradições Culturais do arquipélago estiveram sempre presentes nos teatros improvisados, não no intuito de corrigir os erros ou de fazer refletir para o seu melhoramento, mas para parodiar com a situação. A violência doméstica quase sempre era tema de maior abordagem e, que mais provocava risos. O marido que chega bêbado em casa, bate na mulher e nos filhos, ou ele é sovado pela mulher; a mulher que esconde a comida ao marido, sentando-se em cima da panela, abafando-a com a saia e diz que não há nada em casa para comer; as infidelidades conjugais e o destaque para os “homens machões”, etc., caraterizavam toda a dramaturgia das ilhas. Não querendo (os fazedores de teatro) contentar-se com essas comédias ligeiras, teriam, necessário e obrigatoriamente, que retratar atos de índole religioso ou façanhas heróicas do colonizador. Por isso, a ausência de literatura dramática escrita no/e sobre o arquipélago justifica-se. A cultura cabo-verdiana não se identificava, até aqui, como genuína e autóctone, salvo a morna, um género musical que, pela sua proximidade ao fado, era reconhecida e permitida. Pese embora não muito vivenciada no interior da ilha de Santiago onde a população preferia géneros mais “mexidos” como o Funaná e o Batuque, que faziam “sacudir” as salas de baile ou vibrar os “terreiros” do batuque, entretanto, legalmente interditos.
A gaita era o instrumento típico da ilha e do interior de Santiago, trazida da Europa e utilizada nas igrejas durante as cerimónias religiosas. Persuade-se que a sua introdução nas correntes rurais e nas manifestações tradicionais ou populares se deve a um tal Pinote Barreto, pai e tio dos proeminentes gaiteiros do interior de Santiago, nos finais do século XIX. Esses dois rebentos do Pinote tinham a mesma idade e ambos chamavam-se Antão Barreto. Um, de Achada Ponta, freguesia de Santiago Maior, no concelho de Santa Cruz, foi o mestre do Codé de Dona. Já o primo era da Longueira dos Órgãos, no concelho de São Lourenço dos Órgãos. Os filhos são todos exímios tocadores e compositores de Funaná. Numa entrevista feita ao Antão Barreto de Achada Ponta, um mês antes do seu falecimento, o mesmo disse muito triste: «Sema Lopi ka sabe toka gaita. El e ta ranha gaita». E disse que, Kodé di Dóna sim. Que aprendeu com ele e que tocava mesmo. Que não entende a razão que levou um grupelho de imbecis a destacar Sema Lopi com tão tamanha fama, atribuindo-lhe o epíteto de patrono do Funaná, como se do Fefé di Nha Txan, Luizinhu Manitu Restu, Vai di Txika, entre outros não tivessem existido.
Nas outras ilhas os instrumentos predominantes eram o violão, a viola, o violino ou a rebeca e o cavaquinho. A morna e a coladeira eram os géneros musicais diletos e autorizados.
Nos anos 20 do século passado, com a fixação de residência em São Vicente do músico guineense José Alves dos Reis, recordado com saudades, como Nhô Reis, Ti Reis ou Sr. Reis, houve uma incrível pujança na cultura musical da ilha. Nascido em Bolama, Guiné Portuguesa, no dia 20 de Março de 1895, José Alves dos Reis ficou órfão muito novo. Levado para Portugal, foi internado num convento onde viria a manifestar a sua vocação para a música. Apoiado por um padre, com quem viveu muitos anos e, mais tarde, uma senhora inglesa, amiga do seu protetor, financiou-lhe os estudos no conservatório durante 4 anos. Fez estágio na Alemanha e recebeu o diploma em Roma. Regressa à Guiné e nos finais da década de 1920, embarca rumo ao Brasil na ânsia de aprender mais a música. Teve a notícia em S. Vicente, onde fez escala, de que havia surto de febre-amarela no Brasil. Deixou-se ficar, então, em São Vicente, ensinando música a várias gerações. Criou a Banda Municipal do Mindelo e deu aula de Canto Coral no Liceu Gil Eanes até à sua morte, a 16 de Outubro de 1966. Foi professor de Luís Morais, Morgadinho, Danilo, Eduíno Barroso, Cesário Duarte ou Cesário Boca, Manuel Correia e Silva ou Manuel Clarinete, Jorge Fernandes Monteiro, conhecido por Jorge Cornetim ou Jotamonte, Chala, entre outros. Mais tarde, alguns alunos do maestro Reis, nomeadamente Manuel Clarinete, Cesário Boca, Chala e outros fizeram parte da Banda Municipal da Praia, formada pelo Jotamonte. E este, por sua vez, foi professor de Pedro Delgado, Félix Monteiro e Romualdo Sapinho, outros três importantes ícones da música de Cabo Verde. A partir dos ensinamentos do maestro Reis e da continuação dos seus pupilos, revelaram-se alguns talentos na interpretação de mornas e coladeiras. As vozes do Bana, Tetina, Arminda de Sousa e da jovem Cesária Évora sonorizavam em São Vicente, interpretando, quase em exclusivo, as composições do músico mindelense, B. Léza. É de estranhar, entretanto, a ignorância desses intérpretes quanto às composições do grande poeta e compositor bravense, Eugénio Tavares, sabido por todos que é dos maiores vultos da cultura musical das ilhas. Embora, segundo nos informou Francisco Fragoso, Cesária terá confessado numa entrevista, que não era capaz de interpretar as mornas de Eugénio Tavares por serem muito difíceis.
Ora, Cesária Évora abrilhantava as noites de fim-de-semana aos militares portugueses destacados em Mindelo. Foi marginalizada após a independência nacional, e Bana foi preso e exilado em Portugal, acusados de serem colaboradores dos fascistas. Cesária chegou a dormir nas ruas do Mindelo, à semelhança dos sem-abrigo, refugiando-se ao aconchego do álcool e de outras aventuras. Injustamente conotada com o regime deposto, a voz da Cize pairou na profunda ignorância por muitos anos, até que a França a rebaptizou como a Diva dos pés descalços, sob a magia do empresário Djô da Silvar.
O maestro Reis revolucionou a execução diversificada de instrumentos musicais no arquipélago. Quer no piano com Tututa Évora, nos saxofones com Luís Morais, nas trompetes com Morgadinho, Pedro Delgado, Romualdo Sapinho, nos clarins e clarinetes com Manuel Correia e Silva, e até na “requinta”, um instrumento de sopro, parecido com o clarinete, usado nas bandas militares.
Na capital do país, só em 1968 é que veio a surgir o primeiro conjunto musical organizado, denominado Os Apolos. Estes só vieram a gravar o primeiro e único álbum 6 anos mais tarde. Havia ainda alguns tocadores (amadores) de clarinete que, de forma isolada ou a solo, animavam as festas no interior da ilha. Os irmãos Cabral, Calim e Clemente, por exemplo, animavam todas as festas populares ao som de clarinete. Em Pedra Badejo, concelho de Santa Cruz, o conhecido Lalá di Maria ou simplesmente, Irmão, trocou uma cabra por um clarinete e aprendeu sozinho a soprar e a manusear nos botões do negro tubo harmonizador de sons. Em 1976, um grupo de jovens da capital, inclusive o já falecido Ildo Lobo, fundou o conjunto Os Tubarões, que só interpretava mornas e coladeiras. Nessa altura, os estilos musicais que se impunham, editados já em discos de vinil, eram dos artistas angolanos e guineenses, que executavam temas revolucionários e num ritmo mais excitante, à maneira e aspiração da malta jovem. “As mornas eram para os velhos”. Mas esses ritmos perderam a hegemonia logo de seguida, infelizmente, por tristes motivos: José Carlos Schwarz, o pai da música moderna guineense, faleceu em Havana, num acidente de avião a 27 de Maio de 1977 e, por incrível que pareça, nesse mesmo dia, mês e ano, os jovens angolanos, impulsores do estilo Semba, na altura, Merengue e Rebita, foram impiedosamente fuzilados, culpados de quererem dar golpe ao regime, guiados por Nito Alves, ex-dirigente do MPLA. Porém, eis que esse problema se resolve, quando em 1978 surge o conjunto Bulimundo, formado pelo jovem Regente Agrícola, Carlos Alberto Silva Martins, conhecido por Katxás, natural de Pedra Badejo – concelho de Santa Cruz. E pode-se dizer que a verdadeira música moderna surgiu a partir de então. Katxás, que terá aprendido a executar os primeiros acordes com o guitarrista Armando Tito, quem ele acompanhava nas farras em noites de São Bento e Martim Moniz em Lisboa, depois de editar um LP (Long Play) intitulado Broda, com temas genuinamente elaborados a partir de Tradições Orais, levou de França para Cabo Verde, um conjunto de instrumentos elétricos e formou um grupo musical denominado Bulimundo. E começou desde logo a imprimir novos ritmos baseados nos dois géneros tradicionais: o Funaná e o Batuco, sem muita aceitação nacional ab initio. Na sua primeira deslocação à ilha de São Vicente, durante um espetáculo, vendeu pouco mais do que meia dúzia de bilhetes. Mas Katxás não se demoveu, muito menos desistiu da sua certeza de que havia de dar asas e fazer voar para os palcos do mundo a cultura tradicional cabo-verdiana. Porém, em muito pouco tempo, após uma desavença que saldou com a sua prisão, Katxás rumou-se para capital, levando consigo os instrumentos e alguns elementos que não regozijaram com a sua arbitrária prisão.
Zeca de Nha Reinalda tinha acabado de dar nas vistas, como vocalista do conjunto Opus 7, interpretando temas em crioulo de Guiné Bissau, nomeadamente composições de José Carlos Schwarz e Kobiana Djazz. Quando Katxás instalou a sede do Bulimundo na Capital, Opus 7 estava já desmoronado. E Zeca ingressou-se como vocalista do Bulimundo. Nessa altura vários conjuntos musicais se formaram. Na ilha de Santiago surgiram: África Show, Os Camponeses, Zeca Santos, Abel Djassy, Gama 80, Finason, Cimbodiana, etc. E nas diásporas: Tulipa Negra, África Star, Black Star, Black Power, entre outros. E assim ditou o fim do monopólio que antes detinha o Conjunto Voz de Cabo Verde, fundado em 1966, entre Dacar Senegal e Holanda, pelo Bana, Luís Morais, Morgadinho e Toy da Bibia. Em Portugal vários artistas se revelaram. Pedrinho Chalé, Blick Tchuk, Norberto Sanches, João Cirilo, Antonino Sanches, etc., com o apoio indispensável do multi-instrumentista Paulino Vieira, surgiram no palmarés da discografia crioula. Destacava-se ainda, entre os grandes instrumentistas e compositores da diáspora, Norberto Tavares, falecido há alguns anos nos EUA. Porém, nessa altura, havia censura que obstava a liberdade criativa. Houve músicas que foram proibidas na Emissora Nacional, por determinação do Governo, por serem consideradas de conteúdo reacionário. Houve poeta que foi duramente criticado pela Comunicação Social e até advertido pelo bispo por publicar poema considerado inconveniente.
Entretanto, o Teatro não foi tão além quanto a música porque não teve o apoio merecido. Quatro décadas após a independência nacional, apenas uma Associação de Teatro em Cabo Verde vem recebendo regularmente subsídio do Estado em centenas de contos, o que, à vista de muitos, cheira à corrupção, dado que, dentre os dramaturgos nacionais, um ex-ministro da Cultura é o mais representado nos festivais realizados por essa Associação. Pode-se constatar, entretanto, que das três peças que escreveu, todas já foram representadas nesses festivais e algumas por mais do que uma vez. Certamente, se aos outros grupos tivessem sido dadas essas justas oportunidades, o teatro e a dramaturgia cabo-verdianos estariam num patamar bem diferente. Não faltam talentos, e muito menos, interessados da parte de quem o pratica.
Sendo Cabo Verde um país de parcos recursos, desprovido de qualquer recurso natural, tirando o vasto mar que o circunda, apostar numa indústria de transformação de estórias tradicionais orais em destreza do palco, seria certamente uma mais-valia que, não só impulsiona o PIB nacional, divulga a nossa tradição, valoriza a nossa cultura, cria postos de trabalho, incentiva o turismo, dinamiza a arte cénica e inova a literatura dramática em Cabo Verde. Para isso, há que ter o teatro em linha de conta, visto com os mesmos olhos que vêm a música, deixando de ser tratado como enteado ou filho pródigo, mas, com a dignidade que merece, isto é, dando-lhe as oportunidades e tratamento em igual circunstância às demais atividades culturais, principais motores do desenvolvimento do arquipélago. Para tal, urge criar uma estrutura (independente), que opere exclusivamente na dinamização de atividades teatrais; promover concursos para a dramaturgia nacional; criar incentivos à produção (sem drama) da literatura dramática; patrocinar e financiar projetos de criação artística a todos os que apresentem um projeto viável e credível; reconhecer e valorizar os experimentados dinamizadores do teatro, convidando-os a colaborar na formação e capacitação técnica dos quadros nacionais e na organização de grupos locais; esquecer-se do revanchismo e despudorada política de “tu não és do meu Partido, não tenho trabalho para ti”, pensando apenas que, para um país avançar de forma desejável, é imprescindível a contribuição de cada um dos seus filhos.
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