V Parte - A propósito do livro "As Ilhas Crioulas de Cabo Verde - da Cidade-Porto ao Porto-Cidade" de Manuel Brito-Semedo, e da Desafricanização Geográfica, Geo-Política, Geo-Estratégica e Político-Cultural de Cabo Verde propugnada pelo seu Autor
Colunista

V Parte - A propósito do livro "As Ilhas Crioulas de Cabo Verde - da Cidade-Porto ao Porto-Cidade" de Manuel Brito-Semedo, e da Desafricanização Geográfica, Geo-Política, Geo-Estratégica e Político-Cultural de Cabo Verde propugnada pelo seu Autor

"E o que ocorreu depois na frente cultural da luta pela independência de Cabo Verde correspondeu plenamente ao apelo de Amílcar Cabral para a reafricanização dos espíritos, tendo havido nessa altura e nos tempos posteriores pós-coloniais uma grande explosão cultural de que beneficiaram todas as expressões e manifestações culturais da identidade crioula caboverdiana, doravante assumida na sua plenitude sem qualquer preterição ou qualquer obliteração de nenhuma das suas co-matrizes e das suas dimensões, incluindo da sua co-matriz negro-africana, da sua dimensão afro-crioula e da sua margem continental africana. "

6

AMÍLCAR CABRAL E A CIDADE DO MINDELO

 

6.1.Todos os que se têm debruçado sobre o percurso de vida de Amílcar Cabral, com grande destaque para Julião Soares de Sousa, o autor da fundamentalíssima e incontornável obra Amílcar Cabral-Vida e Morte de um Revolucionário Africano,  têm reconhecido o papel fulcral que a cidade do Mindelo desempenhou na maturação da sua personalidade e na sua formação humana, cívica e cultural como caboverdiano, na altura necessariamente sujeito por via primacialmente escolar aos castradores contrangimentos das políticas coloniais de assimilação cultural aos desígnios da pátria imperial lusa e da pátria monumental portuguesa, a par de papel análogo,  similar ou desigual desempenhado por outras ambiências e por outras cidades em que viveu, como as do meio rural de Santa Catarina, do meio urbano da cidade da Praia, do meio cosmopolita da cidade de Lisboa, do meio rural alentejano, dos meios urbanos e rurais guineenses ou dos meios rurais e urbanos angolanos. 

Considerado como o pulmão económico de Cabo Verde pelo próprio Amílcar Cabral, o Porto Grande de São Vicente era, na altura da estadia dessa futura personalidade histórica na cidade do Mindelo para encetar e concluir os estudos liceais,  também a principal plataforma de conexão de Cabo Verde com o mundo moderno, não só através do seu Liceu, na altura o único da colónia/província ultramarina portuguesa, do seu Porto Grande e da sua majestosa baía devidamente vigiada pelo seu Monte-Cara, mas também de infra-estruturas várias, como, por exemplo,  o telégrafo e o cabo submarino.

Ademais, o Mindelo é visto e vivenciado por Amílcar Cabral como um importante espaço de acontecimento de dinâmicas sociais e culturais, como,  aliás, comprovam i. a contestação do encerramento do Liceu Infante Dom Henrique, no ano de 1937, de início do ensino secundário por Amílcar Cabral, pelas elites mindelenses e pelas populações sanvicentinas e caboverdianas em geral, obrigando as autoridades coloniais/provinciais a reabri-lo, mesmo se  rebaptizado com o novo nome Liceu Gil Eanes; ii. a anterior revolta contra a fome, ocorrida no ano de 1934 e  liderada pelo marceneiro santantonense Ambrósio Lopes - depois mitificado pelo poeta Gabriel Mariano como o capitão  Ambrósio do celebrizado poema homónimo-, e cujos ecos devem ter chegado aos ouvidos do jovem estudante liceal; iii. a fundação das revistas Claridade e Certeza, etc, que têm como pano de fundo económico e social as crises cíclicas das estiagens, sendo as mais recentes as de 1930, com as correlativas mortandades por inanição e fome absoluta de um significatiivo número de caboverdianos, bem como os embarques no Porto Grande do Mindelo de trabalhadores braçais de todas as ilhas como emigrantes forçados para as roças de São Tomé e Princípe  e Angola, função essa de ermbarque também desempenhada por outros portos, se bem que mais limitada na sua abrangência, como o porto da Ribeira da Barca no concelho de Santa Catarina na ilha de Santiago. Nessas roças os trabalhadores  caboverdianos, fustigados pelas secas e ameaçados pelas fomes, iam trabalhar como serviçais ditos contratados sujeitos às severas agruras e às atrozes condições do trabalho semi-escravo, mesmo em se considerando e se auto-iludindo com uma mirífica condição de segundos europeus porque titulares nominais do estatuto de cidadãos portugueses e, por isso, supostamente  salvos do abjecto e degradante estatuto do indigenato a que estavam sujeitos os trabalhadores serviçais ditos contratados originários  de Angola, Cabinda  e Moçambique e a que eles, serviçais caboverdianos,  também foram efectivamente submetidos, conforme documentado e explanado pelo historiador português Augusto Nascimento nos seus diferentes livros sobre a situação dos trabalhadores caboverdianos em São Tomé e Príncipe ao longo dos tempos coloniais e pós-coloniais. Certo é que essa revoltante situação foi também abordada em várias letras musicadas, entre as quais na mítica canção “Sodade”, de António Zeferino Soares, mundialmente popularizada pela voz de Cesária Évora, tendo sido também  tratada por vários escritores caboverdianos, quais sejam Gabriel Mariano, nos seus poemas “Caminho Longe” e “Comissário Ad-Hoc”, Ovídio Martins,  nos seus poemas repletos de revolta e esperança integrantes do caderno “Caminho de Perdição” do seu livro Caminhada, Onésimo Silveira, no poema  “Teteia” e em outros poemas dos livros Saga e Hora Grande, Osvaldo Alcântara, no seu “Romanceiro de São Tomé”, Kaoberdiano Dambará, em alguns poemas do livro Noti,  Jorge Barbosa, no seu pungente “Memorial de São Tomé”,  publicado postumamente no livro Jorge Barbosa- Poesia Inédita e Dispersa, organizado e prefaciado ppor Elsa Rodrigues dos Santos, e que talvez seja o mais profundo e extenso poema escrito por um vate caboverdiano sobre a problemática da emigracão forçada para S. Tomé e Príncipe em razão de o próprio poeta Jorge Barbosa ter acompanhado como comissário ad-hoc os serviçais caboverdianos  no seu caminho longe de sofrimento e martírio. Relembre-se ainda que, além de poemas, Onésimo Silveira escreveu a esse propósito o conto Toda a Gente Fala: Sim, Senhor!, o primeiro texto ficcional caboverdiano sobre as vivências dos serviçais caboverdianos nas roças de São Tomé, e dedicou a essa problemática alguns capítulos do seu romance pós-colonial A Saga das As-Secas e das Graças de Nossenhor. Segundo vários depoimentos recolhidos na versão documentada do livro Um Partido, Uma Luta, Dois Países intitulado O Meu Testemunho, de Aristides Pereira, os flagelos das fomes e da emigração forçada de trabalhadores caboverdianos para São Tomé e Príncipe foram dos factores mais importantes para o despoletar da consciência revolucionária nas gerações nova-largadistas e nacionalistas das décadas de cinquenta e sessenta do século XX.

De grande relevância neste contexto é igualmente a crise por que passava o Porto Grande do Mindelo desde os fins do século XIX e os princípios do século XX em razão da incúria da Administracão colonial portuguesa e das companhias carvoeiras inglesas que, desde o surgimento e do  agravamento da concorrência protagonizada pelos vizinhos portos das Canárias e de Dacar, no Senegal, se abstiveram de tomar as medidas pertinentes e adequadas que se impunham para a revitalização e a dinamização do Porto Grande de São Vicente, como documentado, argumentado e comprovado no festejado livro Nos Tempos do Porto Grande do Mindelo, de António Leão Correia e Silva. Essas medidas deveriam passar pela construção de um novo cais acostável, como reiteradamente reivindicado  e finalmente conseguido e concretizado, em 1960,   pelo persistente e fervoroso deputado caboverdiano à Assembleia Nacional colonial-fascista portuguesa, Adriano Duarte Silva, em representação e como porta-voz do conjunto das elites letradas, comerciais e industriais mindelenses aliadas às elites comerciais, agrícolas e fundiárias das outras ilhas caboverdianas, as quais gravitavam à volta das respectivos Grémios e Associações e dos seus porta-vozes na imprensa, com destaque para o jornal mindelense Notícias de Cabo Verde, a mais longeva publicação periódica caboverdiana do período colonial, a revista oficiosa quinzenal praiense denominada Boletim de Propaganda e Informação, mais conhecida por Boletim Cabo Verde e considerada a mais eclética e importante revista caboverdiana do período colonial, e as estações de rádio sediadas nas cidades do Mindelo e da Praia. Ainda a este propósito, não se deve esquecer que, segundo depoimento de Baltasar Lopes da Silva constante do Volume I do livro Cabo Verde - Encontro com Escritores, de Michel Laban, foi a Associação Comercial, Industrial e Agrícola de Barlavento, na qual ele representava o pai sanicolausense proprietário agrícola, que esteve por detrás da revolta da fome do mestre Ambrósio Lopes, “um branco santantonense de olhos azuis e com perfil de profeta e sábio bíblico”, segundo o mesmo depoimento de Baltasar Lopes da Silva,  que Gabriel Mariano viria a transmutar no mulato Ambrósio do poderoso, gerundivo e mítico poema “Capitão Ambrósio”, para efeitos de autenticidade e representatividade telúricas do típico homem das ilhas segundo a sua óptica vazada no ensaio “Do Funco ao Sobrado ou o Mundo que o Mulato Criou”.

A revitalização e a dinamização do Porto Grande da ilha de São Vicente poderiam ter também passado, como defende António Leão Correia e Silva no seu já muito referenciado livro Nos Tempos do Porto Grande do Mindelo, pela promoção da concorrência interna inter-insular com o fito de fazer baixar os preços do carvão e dos subsequentes combustíveis com a criação de um outro porto carvoeiro e/ou adaptado a esses subsequentes combustíveis na cidade da Praia, tal como ocorreu nas Canárias, onde havia dois portos concorrendo entre si para estimular a baixa dos preços, primeiramente, do carvão e, depois, dos outros combustíveis fósseis.

6.2. No Mindelo Amílcar Cabral pôde experimentar na pele e para o seu próprio benefício imediato os efeitos da modernização e da democratização relativa do ensino secundário, referidas no seu artigo “Breves Apontamentos sobre a Poesia Cabo-Verdiana”, publicado, em 1952, no praiense Boletim Cabo Verde, comparativamente ao elitismo e ao classicismo do ensino anteriormente ministrado no antigo Seminário-Liceu de São Nicolau,  frequentado pelo seu pai Juvenal Cabral, à semelhança, aliás, de grande parte dos letrados caboverdianos da sua época, depois maioritariamente recrutados como funcionários públicos colocados tanto em Cabo Verde como também nas outras colónias/províncias ultramarinas portuguesas. 

É no Liceu Gil Eanes que Amílcar Cabral se eleva como aluno brilhante e distinto, atleta de mérito e dirigente associativo congregador e comprometido. É também no Liceu de São Vicente que o jovem Amílcar Cabral, aliás, Larbac, se inicia nas lides literárias, frustrando-se todavia as suas tentativas de ingressar na estudantil Academia Cultivar que depois seria responsável pela publicação da folha-revista Certeza, de intenção neo-realista e feição neo-claridosa e onde o admirado poeta António Nunes publica o seu “Poema de Amanhã”, de radical ruptura com a sua poesia anterior constante do livro ultra-romântico Devaneios. Relembre-se que o “Poema de Amanhã” é expressamente considerado  por Amílcar Cabral no artigo acima referenciado, a par do “Poema” do seu amigo e camarada Aguinaldo Fonseca - a quem, aliás, já em Lisboa viria a incentivar e convencer a publicar com a chancela da CEI - Casa dos Estudantes do Império o livro de poemas Linha do Horizonte -,  como forte e indubitável índicio do surgimento em Cabo Verde de uma nova poesia susceptível de “transcender”, isto é, de  profetizar “a criação de uma outra terra dentro da nossa terra” e superar na sua substância mensageira esperançosa o evasionismo resignativo da poesia claridosa, que, todavia, também é enaltecida por Amílcar Cabral por considerá-la mais próxima das preocupações das gentes comuns caboverdianas do que a anterior poesia caboverdiana, dita pré-claridosa, e considerada elitista e desfasada dos reais problemas do povo caboverdiano, com alguma ressalva do lirismo amoroso vazado em idioma crioulo pelo grande Eugénio Tavares.  

É também no Mindelo, como anteriormente em Santa Catarina e na cidade da Praia, na ilha de Santiago, que Amílcar Cabral se confronta com as dificuldades e as agruras da vida das classes laboriosas, aliás, fielmente personificadas na sua mãe Iva que trabalha como operária numa fábrica de conservas de peixe e como costureira para prover às necessidades da família praticamernte monoparental e à educação escolar de Amílcar Cabral, do seu filho mais velho Ivo e das gémeas Armanda e Arminda.

Como atestado na monumental obra A Imprensa Cabo-Verdiana - 1842 a 1975, do malogrado historiador João Manuel Nobre de Oliveira, bem como no livro acima referido de Julião Soares Sousa, a frequência do Liceu Gil Eanes por parte de Amílcar Cabral e as elevadas classificações obtidas durante o seu percurso liceal e em seu resultado fazem-no merecer uma bolsa de estudos concedida pela própria Caixa Escolar do Liceu Gil Eanes providenciada pelo então Reitor, o goês Luís Terry, e uma bolsa de estudos concedida a partir da Metrópole colonial pela Casa dos Estudantes de Cabo Verde, na altura dirigida por Aguinaldo Veiga, para frequentar o Curso Superior de Agronomia em pleno coração do mundo português e do seu império colonial que era a cidade de Lisboa de então. Relembre-se neste contexto que a Casa dos Estudantes de Cabo Verde seria uma das futuras Casas fundadoras, com a Casa de Angola e a Casa de Goa,  da célebre CEI-Casa dos Estudantes do Império, de que,  agregada a São Tomé e Príncipe e à Guiné dita Portuguesa, viria a tornar-se uma Secção com Amílcar Cabral como Vice-Presidente e responsável pela área da cultura e, assim, pela edição do célebre boletim/revista Mensagem, onde, aliás, faz publicar o texto “O Monstro” do pai Juvenal Cabral sobre as fomes em Cabo Verde. 

Curiosamente, o encarregado de educação de Amílcar Cabral durante a sua estadia de quase sete anos completos na ilha de São Vicente foi o célebre Manuel Ribeiro de Almeida, mais conhecido por Leça Ribeiro, como já referido, e que era o dono da fábrica de conservas de peixe, onde trabalhou a mãe de Amílcar, Iva Pinhel Évora, e o  proprietário, editor e director do jornal Notícias de Cabo Verde, de que o pai de Amílcar, Juvenal Cabral, era o correspondente na ilha de Santiago. Por isso, é de se crer que, apesar de aparentemente ausente  nas lides de financiamento dos estudos liceais do filho, Juvenal Cabral terá desempenhado um qualquer papel importante junto de Manuel Leça Ribeiro de Almeida no sentido de ele empregar a mãe de Amílcar na fábrica de conservas de peixe e, deste modo, poder sustentar a família, e  de o ilustre senhor, confrade e amigo mindelense aceitar ser o encarregado de educação do filho Amílcar Cabral, depois de, numa primeira fase, esse papel ter sido desempenhado pela própria mãe Iva. Neste contexto, é assaz possível que o curioso aluno liceal Amílcar Cabral tenha tido contacto com as constantes dissensões e rivalidades, incluindo no plano desportivo,  entre as cidades do Mindelo e da Praia e entre as ilhas de S. Vicente e de Santiago, tanto mais que elas eram temas abordados recorrentemente na vida quotidiana e na imprensa provincial de que Manuel Ribeiro de Almeida era um dos mais importantes e poderosos representantes. O facto de ser natural da Guiné e de a sua família ser oriunda da ilha de Santiago, onde passou a viver, desde a sua vinda com oito anos de idade da Guiné dita Portuguesa, primeiramente na zona da Achada Falcão, no concelho de Santa Catarina, e, depois, na cidade da Praia,  não poderia deixar de jogar algum papel na sua adolescentina e juvenil percepção das coisas. 

É certamente a percepção da estratificação classista da sociedade caboverdiana e da correlativa dicotomização entre as culturas urbanas e rurais dessa mesma sociedade islenha e directamente observadas nas cidades da Praia e do Mindelo, tanto as vivenciadas pelas classes trabalhadoras como  as patentes nos comportamentos das elites letradas, comerciais, funcionárias e pequeno-burguesas em geral, na altura muito ciosas dos seus privilégios de classe e do seu estatuto económico-social e cultural que lhes permitia manter um certo distanciamento em relação aos integrantes socialmente mais vulneráveis e despojados das classes laboriosas chamados pés-descalços, bem como nos campos de Santa Catarina e, em geral, no interior da ilha de Santiago, onde tomou conhecimento da exploração semifeudal dos camponeses através dos sistemas da renda e da parceria, que,  certamente, levarão Amílcar Cabral a, primeiramente, expressar a sua simpatia pela poesia e pela literatura próximas do povo simples, humilde e anónimo das ilhas, nas expressivas palavras de Jorge Barbosa, e cultivada tanto pelos claridosos, como também pelos certezistas e pelos émulos da Nova Largada político-cultural, muitos deles seus amigos, confrades e confidentes, e, mais tarde, já na sua fase de amadurecimento e comprometimento revolucionários com as causas da independência política e do progresso social dos povos da sua especial predilecção afectiva e de  dois países irmanados pelo sangue, pela  História e pelo sofrimento que passou a considerar como destinados a construir em tempos vindouros uma comum pátria africana unida, forte e progressiva, a apelar à re-africanização dos espíritos dessas elites assimiladas e alienadas no mimetismo à cultura europeia dominante. Para tanto, o teórico Amílcar Cabral soube distinguir entre as manifestações culturais urbanas, sobretudo as cultivadas pelas elites assimiladas caboverdianas, e as manifestações culturais rurais, menos contaminadas pela presença colonial portuguesa e europeia, em geral, pela correspondente alienação veiculada pela escola e por outros aparelhos ideológicos do Estado colonial e pela sua indefectível aliada de sempre, desde os tenebrosos tempos escravocratas de outrora, a Igreja Católica, Apostólica, Romana. Nessa sua démarche de retorno às fontes - de regresso às raízes, Amílcar Cabral concentrou-se e centrou a sua atenção primacialmente nos aspectos mais inegável e irrefutalmente  afro-crioulos da cultura caboverdiana, isto é, nos quais era mais visível e patente a co-matriz negro-africana ou afro-negra da identidade crioula caboverdiana, aliás, a mais sistematicamente reprimida, ostracizada e/ou ocultada, com o fito de os capitalizar, optimizar e funcionalizar em prol do combate contra o assimilacionismo colonial e para a produção da catarse cultural conducente à total ruptura com esse mesmo assimilacionismo cultural colonial e com os poderes materiais e simbólicos que o engendravam, representavam e sustentavam. É nesse sentido e nesse contexto que se deve entender o realce que Amílcar Cabral deu a esses mesmos aspectos afro-crioulos tanto no que respeita à cosmogonia do homem comum caboverdiano, consabidamente inundada do pensamento mágico-animista característico das culturas negras, e sincretizado, em maior ou menor grau, com as crenças e os ritos religiosos veiculados pela Igreja Católica dominante, como também no que respeita, por exemplo, ao ritmo de algumas músicas e danças caboverdianas,  ritmo esse tipicamente afro-negro mesmo se amiúde interpretado com instrumentos europeus, como são os casos do colá sanjon, do batuco, da tabanca, do funaná, da coladera, da colexa, da talaia-baixo e, até, da morna, perpassada da sua característica síncope. E o que ocorreu depois na frente cultural da luta pela independência de Cabo Verde correspondeu plenamente ao apelo de Amílcar Cabral para a reafricanização dos espíritos, tendo havido nessa altura e nos tempos posteriores pós-coloniais uma grande explosão cultural de que beneficiaram todas as expressões e manifestações culturais da identidade crioula caboverdiana, doravante assumida na sua plenitude sem qualquer  preterição ou qualquer obliteração de nenhuma das suas co-matrizes e das suas dimensões, incluindo da sua co-matriz negro-africana, da sua dimensão afro-crioula e da sua margem continental africana.  Nada, aliás,  substancialmente diferente do que ocorreu e vem ocorrendo em outras sociedades e comunidades crioulas do Atlântico, do Índico, das Antilhas-Caraíbas, das Américas e, até, com as minorias negras, africanas e afro-crioulas da Europa.

Partilhe esta notícia

Comentários

  • Este artigo ainda não tem comentário. Seja o primeiro a comentar!

Comentar

Caracteres restantes: 500

O privilégio de realizar comentários neste espaço está limitado a leitores registados e a assinantes do Santiago Magazine.
Santiago Magazine reserva-se ao direito de apagar os comentários que não cumpram as regras de moderação.