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Um mundo sob nostalgia da autodeterminação
Colunista

Um mundo sob nostalgia da autodeterminação

 

Na autodeterminação das Gentes

A eternidade faz-se devagar

Não há precipitações ou pressas a despachar

Faz-se no sereno, brando fogo outonal

Que brande sua cripta fixativa

Perpétua deslocação espiritual expansiva

Dela não se quer evasiva

R.d’A

“No que toca à cultura, o que mais importa não é (…) a matéria (o conteúdo, digamos, do que se crê e afirma) mas o estilo do pensamento e a disciplina do exame.

(…)

Na cultura, o ponto essencial não é adquirir ideias, o de substituir noções: é o passar de um nível para outro nível, a saber: do nível mental da credulidade ingénua, do dogmatismo espontâneo, para o nível mental da disciplina crítica.

(…) é o dom de manter a liberdade do espírito acima da ideia que nos parece exacta, prontos para leva-la ao tribunal do intelectual; é estar bem acordado diante da ideia, para não a aceitarmos mecanicamente, de maneira passiva; (…) ”[1].

***

As pessoas de um modo geral não conhecem o seu destino, deixando a vida, como é comummente dito, ao destino, mas este também está nas nossas mãos; e o nosso espírito Emisferiano, genuíno e comum, tem conhecimento desse destino que é desconhecido ao comum dos mortais? Pergunto!

Mergulhei, mergulho a bastante profundidade. Agora não sei qual foi a minha força impulsionadora do mergulho, quero eu dizer a força resultante sobre o meu corpo físico e o produto entre massa e aceleração dessa equação, mais conhecida como a segunda Lei de Newton ou princípio fundamental da dinâmica[2]; mas tomei consciência da minha vontade em conhecer-me, em aprofundar o meu conhecimento, em auscultar e pressentir o meu caldo de existência, sabê-lo, ouvi-lo como um bom juiz ouvidor.

Senhoras e senhores, eu sigo este caminho pressentindo o que me reserva cada esquina ou curva que irão surpreender-me, mas devo estar muito melhor adaptado sentimental e intelectualmente para aquilo que não iria surgir, nem do modo mais inusitado, nas premonições da minha alma. Estas situações e esses momentos são os mais arrasadores, os que mais sentimentos nos fazem pregar de dor nas nossas fugas intelectuais ao real cultural e social que nos finca o pé ao chão sagrado da nossa Terra.

Senhores e senhoras, este caminho que eu percorro é caminho de descoberta, de pergunta, de encontro e reencontro. É caminho de encontrar muita desonestidade, muita falta de vontade em se ser verdadeiro e conhecer a verdade; é caminho de muita cópia falsificada e de bandidagem do ego e de muita dor sofrida e a sofrer de tristezas encontradas e a encontrar, em si próprio, na família, no grupo, na sociedade, nos países - estados e nas nações. Mas também estou certo, convicto e seguro que é caminho de muita alegria, porque sei que o nosso caminho é como aquela pessoa que sempre persegue as estrelas do firmamento e consciente que nunca consegue toca-las, sabendo, de antemão, que, igualmente à felicidade que não se almeja nem se toca, é um caminho a prosseguir e a perseguir.

Sabem, gente minha, sempre partimos para algum lado e sempre ficamos para alguém; sempre levamos as nossas origens e raízes – a nossa casa, nem seja a idealizada num maior sempiterno amor – e sempre deixamos as nossas melhores, amenas e amorosas recordações. “Corpo, qu´ê nêgo, sa ta bai; Coraçom, qu´ê forro, sa ta fica”[3].

E depois quando a partida é para um regresso à casa onde nunca estivemos, na busca e no reencontro das nossas origens já esquecidas e muito vagamente e nublosamente lembradas e sempre escutando, nesse caminho de regresso, vozes, meus senhores e minhas senhoras, vozes audíveis à alma indicando-nos a nossa primordial origem existencial. É o comandante e timoneiro de uma caravela nos indicando o caminho, traçando cuidadosamente, e com o carinho de um pai aos filhos, a alegria do regresso a casa de nossos avoengos. É o caminho de conhecimento e de re-conhecimento à sua própria recriação de vetusta e anterior criação, reconhecendo-se então no seu indelével vínculo de uma união transcendental.

Dor menor do desconhecimento e do desencontro desmembrado; dor de choro em alegria maior do conhecimento desconsciente do encontro abraçado.

E assim, meus senhores e minhas senhoras, mais uma vez retorno ao nosso espírito Emisferiano, genuíno e comum, perguntando se não somos todos nós: aqueles, esses, estes, eu, tu, ele e ela, nós, vós e elas e eles[4], as outras, os outros, aqueloutros e aqueloutras?

Não respondo!

Sim, o espírito vagueia e divaga e dirige-se diligente e serenamente ao passado, nos tempos das memórias e recordações escondidas, das histórias já contadas e já faladas, guardadas numa lembrança da alma eterna e interrogada pelo espírito vitalício da linguagem da pessoa e das pessoas, neste universo tão enorme e distante, quanto curioso, enigmático e próximo. É nesse regresso de reencontro do esquecido em lembranças vagas e nebulosas, num movimento sem tempo social, num movimento com tempo linguístico, das linguagens da vida universal, com tempo cultural e religioso que, ontologicamente, ganhamos e ganharemos sempre o nosso impulso e alento para a construção contínua da nossa Emisferianidade.

Senhoras e senhores, eu penso que devemos nos regozijar ao sentir e a sabê-lo constituído e formado, o nosso espírito genuíno e comum.

Minhas senhoras, meus senhores, - independentemente do nível e da formação académica, profissional ou cultural de cada dos nossos antigos – eu entendo, como disse António Sérgio, que “A cultura – trabalho do espírito sobre si próprio – não deverá confundir-se com a difusão do saber, com a simples recepção de informações científicas; e avaliando-se quanto é ela uma conversão e um esforço - e uma reacção da consciência intelectual do homem contra a sua consciência sensorial e espontânea, contra o fácil pendor de nos enjaularmos num dogma -, ajuizará da atitude de numerosas pessoas proclamar, que acham naturalíssimo que se abandone um dogma… para proclamar, com entusiasmo, outra ideia dogmática (quer dizer: dogmaticamente tomada e recitada) e que não vêem que mais vale, como cultura do espírito, uma velha doutrina realmente pensada que uma nova doutrina que se abraçou às cegas, e à qual se aderiu como «verdadeiro crente» ”[5].

Não posso deixar de concordar inteiramente com esta imensa pessoa, António Sérgio, pois que, na verdade, cultura não se confunde com saber adquirido por via académica e exercícios intelectuais escolares de sapiência. A cultura é algo anterior que permite outras criações do espírito humano. Cultura é matéria e é dialética transcendental, substância viva, é demonstração vital de vida em sociedade. E o nosso espírito genuíno e comum é eivado de cultura desde o seu surgimento, desde a sua fundação. O nosso espírito genuíno e comum é fusão e miscigenação que se transforma e evolui nos tempos da história emisferiana e se transporta no espaço geográfico da história; sendo que aí ele se transporta da mesma forma em que a nossa emisferianidade se foi transportando do Oriente para Ocidente; do Índico para o Atlântico, transformando-se e adaptando-se a novas realidades sociais, culturais e religiosas que foram, vão e serão, espero, reveladas, conforme a pessoa - em dialética permanente com o seu grupo e outros, com reflexo mediato na sociedade -, se determina a não concordar nem aceitar as coisas que se apresentam ao conhecimento e ao desconhecimento, sem uma interrogação crítica e especulativa prévia.

Como afirma Gabriel Le Bras, - Destin de la Sociologie, Revue de l´Enseignement Supérieur, Paris, 1-2, 1965, pp. 5 -10 - “ (…) Os homens não esperaram Augusto Comte, nem mesmo Aristóteles, para descobrir que toda a comunidade põe problemas de estrutura e de vida que têm a sua especificidade e a sua urgência. (…) ”.

Da autodeterminação

Assim, encontradas a língua e línguas – português e crioulo –, que permitiram a coesão de um grupo e consequente criação de produção e atividade cultural próprias e de uma identidade singular, a tendência para um afastamento relativamente à presença e autoridades oficiais portuguesas da Metrópole naquela área do globo e, logo, um afastamento ainda maior em relação ao povo e às autoridades centrais de Portugal é crescente.

De uma coisa não devemos nós nunca pôr em dúvida e que é o facto da necessidade imperativa de demandarmos especulativa e filosoficamente no conhecimento dos aspetos mais íntimos da História, da Cultura, da Sociedade, da Religião e da Língua, crenças e tradições, usos e costumes dos diferentes povos, sociedades, comunidades e gentes falantes de língua portuguesa, realçando o que existe de mais essencial e humano nas suas multilaterais relações.

Todo o fim tem um início. Com isso, constato que o caminho de volta – Oriente/Ocidente – é completamente diferente do da ida. O dito caminho de volta revela todo um novo mundo, depois de Goa, 1581, setembro.

Imaginem uma onda que vai de ocidente para oriente; lá chegada, a mesma cai em Goa e lança-se pelo areal, indo até Macau, esticando ainda em esforço, braços e dedos, até ao Japão. Depois dá início ao movimento contrário. A onda, ao recolher, vai mostrando coisas que não existiam antes de ela por lá ter passado.

Ou imaginem uma circunferência no seu diâmetro: de uma lado Lisboa e do outro Goa. O sentido Lisboa-Goa já todos sabemos, genericamente falando. O caminho marítimo Goa-Lisboa (supondo o hemisfério sul da esfera) é que as pessoas se foram esquecendo do que foi acontecendo para existir o que existe hoje. Isto é que é a Emisferianidade: é passado e presente e talvez futuro. É dinâmica substantiva.

No espaço e no tempo podemos referir 1581, setembro, 3, como o primeiro sinal de afirmação identitária, devido à perda da independência de Portugal para Castela; o sentimento de perda fez com que, psicológica, social, cultural e politicamente, as gentes da Roma do Oriente se retraíssem afirmando com maior intensidade e vigor a sua própria identidade, mas com raízes profundas naquele que então tinha sido um país e perdeu a sua independência. Psicologicamente não deve ter sido fácil àquelas pessoas terem de enfrentar e lidar com esta nova realidade política, afastada naquele tempo histórico de uma nação que tinha perdido a sua independência política e lhe tinha provocado o surgimento da sua existência, Portugal de Camões que, por infelicidade, julgo eu, deve ter assistido àquele momento trágico do seu país. Será assim Goa o Berço espiritual da nossa Emisferianidade; quem fala de Goa estende um pouco mais ao Oriente: Goa, Damão, Diu, Malaca e Sri Lanka fundamentalmente. Este Berço surge por implicações históricas, religiosas, económicas, políticas e linguísticas da presença portuguesa naquele espaço geográfico.

O ano de 1640, Dezembro, 1, - a recuperação e restabelecimento da independência de Portugal - é outra data que marca e determina o desenrolar e o caminhar do mundo ultramarino português, especialmente a partir do século XVIII (depois do rombo asiático e continuação do mesmo) com a implementação da política do povoamento do reino que, nessa data, seria fundamentalmente o Brasil, a presença na Ásia e Pacífico: Goa, Damão, Diu, Timor e Macau, e em África: a Ilha de Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe.

Uma coisa que não devemos negligenciar na nossa Emisferianidade é o facto da extrema importância e influência a todos os níveis daquela que é designada pela Roma do Oriente exerceu em cada um nós entendidos como indivíduo, grupo, sociedade, comunidade, país e nação que se reflete ainda hoje e que estou certo de que se refletirá no provir dos tempos.

Mais do que em qualquer outra parte, região ou continente, a influência e os valores orientais miscigenados com valores lusitanos e latinos foram estruturantes e constituintes da nossa Emisferianidade.

Interessante aqui verificar e para reforçar tudo o que já vem sido afirmado, para além das Faculdades de Medicina e de Direito, foi a criação em 1832 da Biblioteca Pública de Nova Goa, vindo a tornar-se Biblioteca Nacional, equiparada assim à Biblioteca Nacional de Lisboa, em 1897, pelo decreto real de 15 de fevereiro, com o consequente benéfico efeito para as elites intelectuais goesas, nos estudantes, académicos, investigadores e funcionários públicos, com efeitos refletidos além das próprias fronteiras físicas de Goa e da Ásia.

Devemos ainda por demonstração de condutas, atitudes e comportamentos constatar que este movimento cultural, religioso, social e linguístico que veio surgindo pelo tempo da história, indelével, místico e enigmático, se afirma de facto politicamente por uma autodeterminação e uma tentativa de independência de Goa em relação a Portugal, em 1787, agosto, 10, com a designada “revolta dos Pintos em Goa”, dirigida espiritualmente pelo Abade Faria, iluminado pelas ideias iluministas de França da época, onde inclusivamente dedicou parte da sua vida ao viver e conviver com a realidade e filosofias Iluministas daquele país, em pleno século XVIII. Esta revolta ou conspiração dos Pintos acontece dois anos antes da Inconfidência Mineira do Brazil e antes mesmo da revolução francesa.

O abade Faria, criador da hipnose, foi para Portugal de Goa levado por seu pai ainda jovem, tendo vindo a doutorar-se pela Universidade de Roma em Filosofia e Teologia, onde depois, mesmo em Portugal, destacou-se pelas suas virtudes morais e capacidades intelectuais, como também como grande orador e pregador, mas nunca devidamente reconhecido neste país ibérico pelas fortes influências deixadas nas classes intelectuais, religiosas e políticas.

O mundo europeu naquela altura estava envolto e profundamente influenciado pelas ideias iluministas de igualdade, liberdade e fraternidade; do entendimento político da separação dos poderes e o reconhecimento da “coisa pública” e não como propriedade de um grupo social restrito e dominante, com justificação divina, bem como novos entendimentos de uma nova classe em ascensão, a burguesia, sobre o que é o ser humano e a sociedade. Ao mesmo tempo estas novas atitudes, condutas e comportamentos das elites burguesas europeias vêm a refletir-se, primeiro, em Goa, subsidiada financeiramente por uma família de comerciantes de Candolim, os Pintos, e espiritualmente inspirada e dirigida pelo abade Faria, com a tentativa de independência, apesar de palaciana.

Esta revolta ou conspiração terá surgido entre padres goeses católicos insatisfeitos com as autoridades religiosas portuguesas da Metrópole pelo facto de, devido à sua condição indiana, serem discriminados na hierarquia da Igreja; o mesmo sucedendo com as hierarquias militares de origem goesa que não conseguiam ascender na carreira militar. Esta demonstração do sentimento de insatisfação foi comunicada pessoalmente por dois padres goeses, Caetano Francisco Couto, de Panjim, e José António Gonçalves, de Divar - pretendiam ascender a bispos -, às autoridades religiosas portuguesas em Portugal, que viram as suas pretensões frustradas e negadas, por discriminação e segregação étnico-racial, como pelas superiores capacidades intelectuais e espirituais demonstradas pela convivência inevitável. Como consequência da negação por parte das autoridades religiosas portuguesas, esse dois padres dirigiram-se a Paris, onde sabiam que iriam encontrar o abade Faria, de nome completo José Custódio Faria.

O objetivo era o de organizarem e dirigirem uma revolta ou conspiração com a finalidade de conseguirem a independência de Goa. Também os conspiradores já teriam promessas de um futuro governo revolucionário e republicano de França, derivadas das boas relações que o abade Faria mantinha à época com as elites intelectuais e revolucionárias de França e da Europa, contando igualmente com o apoio do sultão de Tipu.

Acontece que, ao que parece, como em muitas revoluções palacianas, houve fuga ou passagem de informações e a revolta foi abortada pelas autoridades portuguesas, com consequências gravíssimas, desde condenações à morte por forca, degredos, para Angola, Moçambique, Timor, Cabo Verde, Bengala, entre outros pontos daquele vasto império, como também condenações às galés. E assim deu-se aquilo que em Direito Criminal anteriormente era usual designar-se, e que eu me atrevo a dizer - com o respeito que me é devido e com a concordância absoluta conceptual da eliminação dessa figura no Direito Criminal -, uma tentativa frustrada de independência, a primeira demonstração de afirmação de uma comunidade já constituída cultural, social, religiosa, linguista e politicamente estruturada, singular e diferente daquela que inicialmente levou os interesses de Portugal ao Oriente, e até já com o seu próprio corpus iuris, de origem latina.

Tal revolta dos Pintos é meu entendimento que levou a cedências por parte dos poderes centralizados na Metrópole, obrigando a descentraliza-los. Provocou alterações nas relações das hierarquias militar e eclesiástica de Portugal, surgindo com isso, por exemplo, médicos e padres militares vocacionados para exercerem nas colónias do Império Português as suas funções, abrindo também mais espaço nas jurisdições eclesiásticas e dioceses ultramarinas, como é o caso do Padroado Português do Oriente, para sacerdotes nascidos nos espaços coloniais. Entendo igualmente que aquela séria ameaça política de cisão entre Goa e Lisboa foi consequência direta, mas deferida no tempo da criação do Seminário-Liceu de São Nicolau, criado pelo Decreto-Lei de 3 de Setembro de 1866 e extinto pela Lei n.º 701, de 13 de Junho de 1917, em Cabo Verde[6]. Julgo que a reabertura do Seminário de São José, em Macau, em 1783 - fechado desde 1762, devido à perseguição aos jesuítas -, por eclesiásticos lazaristas goeses era prenúncio e sintoma também de mudanças no seio católico e eclesiástico português.[7] O mal-estar era uma evidência.

Pois falemos agora dos pés escaldados de Angola e Moçambique e aos quadris aquecidos deste, mas antes dar nota do enorme pulmão brasileiro, que já fora obrigado a ver reprimida uma tentativa de autodeterminação da sua vida cultural, social, religiosa e política, com a Inconfidência Mineira, representada na pessoa do alferes Tiradentes, em 1789, movimento de cariz separatista, influenciado igualmente pelo iluminismo, como também influenciado pela ideias e notícias chegadas de Goa, dos acontecimentos ocorridos em 1787, devido à revolta dos Pintos, vindo a culminar com a independência oficial do Brasil, que ocorreu a 7 de setembro de 1822, em que ecoou, segundo consta, o "Grito do Ipiranga".

Fundado durante esse período escaldante dos ingleses e outros países europeus do século XIX - com pés e quadris escaldados -, sendo a expressão máxima desse ambiente político internacional vivido o Ultimatum Inglês / Mapa Cor-de-Rosa, continuando com consequências negativas durante a Primeira Guerra Mundial nas batalhas em África contra os alemães - na fronteira do sul de Angola com o sudoeste africano alemão e na fronteira norte de Moçambique com a África oriental alemã -, o período africano rapidamente vê surgir, durante o século XX, movimentos de rejeição da presença colonial portuguesa, nos respetivos países, afirmando-se uma vez mais a autodeterminação cultural, social, religiosa e política dos povos que veio a ser representada e marcada com a independência política dos mesmos: Angola, Cabo Verde, Guiné, Moçambique, S. Tomé e Timor e a afirmação internacional de Portugal como país em liberdade, democrático e sem colónias.

É, pois, nesse movimento de expansão e adaptação permanente e contínuo que o espírito Emisferiano se vem revelando, provocando para fora de si desencontros, conflitos e atritos de ajustes e desajustes, oscilações emocionais fortes e desequilibradoras do espírito da pessoa e do grupo, como de toda uma sociedade. São esses movimentos que no correr do tempo histórico se vão diluindo e como que uma amnésia se vai apoderando do grupo e de toda uma sociedade, sentida individualmente e muitas vezes de modo turbulento, que nos faz interrogar sempre pelas nossas ausências e pelas ausências dos outros que nos leva a um choro interior de insatisfação, de perda, antes de ganharmos o choro alegre do reencontro abraçado, quando ao olharmos e sentirmos que nos pertencemos e nos juntamos e continuamos juntos, sem obrigação e sem qualquer dever legal ou jurídico. É o recontro em reencontro das e nas Origens! Se eu dissesse juntamo-nos não para matar as saudades, mas sim para vivê-las e revivê-las com outro ganho e energia, talvez fosse uma preposição mais acertada.

Neste tópico, proponho suspender, pausando este texto com o movimento da sua abertura, retomando, assim, a leitura de Raphael d´Andrade.

 

Emisferíada Saudade

Agora que sei desta minha saudade ecoando em mim

meiga, retornada, intemporal

mais saudades sinto dela

Foi meu caminho de ida me fez chegar ao destino

Nele estacar meu canto de criação

e que,

no regresso entrando

me pôs sós saudar a partida

restando

apenas

quase olvidada mui distante lembrança

de mui saborosa morna divagante

Revelou-se

Manifestando-se

Preservadora!

Constante!

Saudosa!

Impulsionadora!

Corajosamente recriadora

 

Morna que não é só dor

I

Morna que não é só dor

É sentimento de pertencer

É filosofia das gentes de horizonte prolongado

Alargado ao longe

É vida já vivida

Muito navegada

II

Caminhos aquosos de sal salpicando tua pele

A raiar ao sol raiado

P’las costas dos teus mares ultrapassados

Turvos

Turbulentos

Límpidos

Suaves

Lânguidos

Cansados

Mornos mares que outrora foram

Mornas que foram as tuas águas

Te levam

Te encaminham

Só Deus

Nosso Senhor

Te poderá dizer

Mas às Ilhas

Ao salgado mar

Arrefecido e afastado do oeste

Tu foste dar

Só Deus

Nosso Senhor te poderá dizer…

 

O mar trouxe gente e notícia

E o mar veio com eles

E

Eles vieram com o mar

O mar trouxe gente

Muitas gentes

Trouxe notícia de outra banda dos oceanos navegados

Notícias miscigenadas de outro mundo

A tornar-se noutro

E trouxe o mapa do tesouro

Tesouro desaparecido nas intempéries das tempestades

Da Índia à África

Da África à Índia

Tesouro que aportou às ilhas

À ocidental costa africana

Tesouro que não iludiu no papeamento

Mas

Também

Ideias novas de luz trouxe o mar

Pensadas na sua linguagem crioula

De livre pensamento e expressão

O livre viver sua decisão

Na igualdade e fraternidade dos seres

O mar veio com eles

E

Com o mar vieram eles

O mar trouxe gente e notícia

O mar trouxe muitas gentes!

[1] António Sérgio, Introdução Geográfica-Sociológica à História de Portugal, Lisboa, Sá da Costa, 3ª ed., 1976, pp. 10-11.

[2] .

[3] O corpo, que é escravo, vai; O coração, que é livre, fica… batuques da ilha de São Tiago, de Cabo Verde, in “Chiquinho” de Baltasar Lopes da Silva.

[4] “El” e “Ez” em crioulo; não é necessário especificar o sexo.

[5] António Sérgio, idem, obra citada.

[6] A elevação de Cabo Verde a bispado em 1533 trazia consigo a ideia de fundar um estabelecimento de ensino secundário para a instrução do Clero. Deste modo, por carta Régia de 12 de Janeiro de 1570 foi decidida a criação de um Seminário na Vila da Ribeira Grande de Santiago. Contudo, tornou-se letra morta a carta régia, apesar dos esforços empregados pelo então bispo de Cabo Verde, D. Francisco da Cruz. As ideias foram-se esboroando sem que o Seminário se efetivasse.

[7] O Seminário de São José foi fundado em 1728 pelos jesuítas que prestavam obra ao Império português, integrados no acordo do Padroado português. Este seminário constituiu a base principal para a formação de missionários católicos para o Extremo Oriente, principalmente para a China. O currículo académico do Seminário era equivalente ao de uma universidade ocidental. Os jesuítas expulsos e obrigados a abandonar este seminário em 1762, pelas autoridades portuguesas, durante o movimento de eliminação da Companhia de Jesus. Após este acontecimento, o Seminário suspendeu as suas atividades até 1783, quando veio a reabrir pelas mãos dos lazaristas vindos de Goa. Rapidamente, esta instituição de ensino ganhou forte reputação e formou muitos padres chineses. É a segunda mais antiga instituição universitária de Macau, a seguir ao Colégio de São Paulo, construído pelos jesuítas em 1594, mas destruído por um incêndio em 1835.

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