Justitiae!... ou a crónica de um linchamento anunciado
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Justitiae!... ou a crónica de um linchamento anunciado

Sem pedir licença, digo já: o processo de julgamento de Amadeu Oliveira - que sequer aconteceu, e estava previsto para os dias 6, 7 e 8 deste mês - é uma aldrabice. Podem o deter, algemar, humilhar e até condenar, mas não deixa de ser uma ardil arquitectura do sistema para escamotear o que, realmente, se passa dentro do 'império' judicial cabo-verdiano.

“A justiça é demorosa, burra e cega”, costuma se dizer. Verdade? Bom, vamos nos entender primeiro: Amadeu Oliveira, esse irrequieto e irredutíivel advogado de causas, ex-Procurador da República e defensor acérrimo da mais transparente justiça em Cabo Verde, acusou e ainda acusa juizes, sobretudo os do Supremo Tribunal de Justiça, de desmerecerem a toga que envergam, porque fraudulentam percursos, trâmites e processos sem lógica coerente - perdoam os seus e condenam inimigios reais e imagináveis apenas porque sim.

Eu, tal como Amadeu Oliveira, sou defensor da transparência na Justiça, ainda que isso implique acutilar cabeças e liquefazer a armadura de ferro na qual a Justiça, digo, os actores judiciais se escudam. Mas dizê-lo assim pode não ser boa ideia neste país. Porque, tal como ele, Amadeu, arrisco a ser detido, julgado e condenado.

A Justiça está enferma. Vero. E tenho por mim que esta patologia de que padece o sistema judicial cabo-verdiano não deve ser vista ou analisada apenas como consequência do corporativismo - guetto judicial - da classe. Sim, existe essa mania de proteccionismo de grupo, mas antes há o indivíduo e a sua consciência, a moral pessoal e o equilíbrio da sociedade para uma sã convivência. Ignorar isto é ser puramente egoista, prepotente e injusto. Uma radiografia do STJ, acredito, revelaria isso tudo, deles todos, do sistema todo.

Autores vários postulam que o "justo é o proporcional". Quer dizer, a justiça tem de significar equidade. De facto, a percepção de "inequidade" acaba por gerar distress, e este estado emocional desagradável (raiva na vítima e culpa no vitimador) impulsiona, muitas vezes, as pesssoas envolvidas a reagir cognitiva ou comportamentalmente para o reduzir ou o eliminar, a fim de restabelecer a equidade. É claro que a Justiça não se resume à equidade, mas também é verdade que não pode ser unidimensional como os juizes do STJ vêm fazendo. E isso incomoda.

Com efeito, quem sofre injustiça sente esta invasão na esfera de afirmação do próprio corpo. Mas, como venho referindo, é importante ressaltar que o praticante da injustiça também está sendo injusto consigo mesmo. O sentimento de remorso é uma espécie de confissão involuntária do praticante da injustiça do seu acto. Um sentimento turvo de que aquilo que está a fazer é, no fundo, a sua identidade. Schopenhauer definira isso.

Ora bem, o que está a acontecer com Amadeu Oliveira começa numa viela pessoal (de carácter), para, corporativamente, se querer vender como uma avenida pública. Essa agregação, para o STJ, justificaria a condenação de quem desfere a flecha hoodiana, fazendo uma espectacularização da justiça na sua pseudo-crença do "Et pluribus unum", isto é, todos por um.

Todos os cabo-verdianos sabem que a justiça não funciona, ou, se funciona, está encavalitada, demorada, burra e cega. Só os do Supremo, pelos vistos, não entendem ou fingem não entender essa percepção da sociedade cabo-verdiana, porquanto preferem eliminar pública e judicialmente quem ousa desafiar o status quo na Justiça e levantar o dedo indicador em riste.

Amadeu Oliveira, quer tenha razão, quer não a tenha, buliu com o sistema e fez efervescer um assunto (vergonhosamente) tabu para as autoridades políticas deste país. Vai pagar caro por isso - será julgado por juiza "amicus curiae" -, mas teve a coragem de abrir todas as portas e janelas da Justiça para que nelas possamos adentro entrar e reivindicar. Com firmeza.

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SOBRE O AUTOR

Hermínio Silves

Jornalista, repórter, diretor de Santiago Magazine

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