1. No dia 20 de março, alunos e professores foram para a casa, numa antecipação de quatro dias das férias da Páscoa. As justificações apresentadas foram confusas e tímidas. Deu para perceber que havia algum desnorte no seio dos responsáveis pelo sistema educativo e, consequentemente, no seio do Governo. Agora, confirma-se: o Ministério da Educação está a dar mostras de não conhecer a realidade do país e – não sei o que será pior – veio comprovar o quão está longe de entender o alcance desta situação de pandemia que se está a viver;
2. Vamos por partes. Primeiro, esta nova basofaria de "tele-trabalho" e "tele-ensino". Há dois factos tremendamente distintos: (i) um país estar devidamente preparado para funcionar em regime de tele-trabalho ou de ensino à distância e (ii) o país ver-se obrigado a arrancar com um sistema de tele-trabalho ou de ensino à distância, num contexto de proibição repentina de se voltar ao local de trabalho ou à sala de aula. Para além de toda a planificação e elaboração de materiais específicos que estas situações exigem – mas que podem ser elaborados e ultrapassados –, há um aspeto seguramente inultrapassável: trata-se da necessidade de haver computadores disponíveis em casa das pessoas;
3. Vamos lançar só um olhar. Qual é a realidade do país em termos de posse de um computador? O Instituto Nacional de Estatísticas de Cabo Verde (INE) tem vindo a realizar o Inquérito Multi-Objetivo Contínuo (IMC), abarcando diversas áreas da realidade caboverdeana. Nesse inquérito, referente a 2018, sobre as Estatísticas das Famílias e das Condições de Vida, o INE analisou a questão do acesso às tecnologias de informação e comunicação. Os dados revelam que apenas 37% de famílias têm um computador em casa, seja um computador de mesa (desktop), um portátil (laptop) ou um tablete/Ipad. Faz sentido falar em “tele-alguma” coisa com cerca de 63% de caboverdeanos sem computador em casa? A situação torna-se ainda mais grave nas áreas rurais onde sobe para quase 83% os agregados familiares que não têm pelo menos um desses tipos de computador. Isto equivale a afirmar que em cada 100 casas, há 83 que não têm computador de mesa, nem portátil, quanto mais tablete. Alguém tem a coragem de falar em tele-ensino num país assim?!
4. Sendo estes dados para o país no seu todo, se formos analisar a posse de computador por concelho, teremos uma noção mais aprofundada sobre a enorme desigualdade existente em Cabo Verde. Praia (51,6%), Sal (48,4%), São Vicente (43,2%) e Santa Catarina do Fogo (37%), são os concelhos onde há mais casas com computadores, embora apenas na Praia as famílias com computadores atingem a marca de metade das casas do concelho. Mas, há um grande destaque pela negativa para os sete concelhos, Ribeira Grande, Porto Novo, Maio, Santa Cruz, São Domingos, São Salvador do Mundo e Brava, onde há cerca de 80% de famílias sem computador. Por isso, qualquer processo de ensino tomando o computador como recurso central, será o próprio Estado a concretizar uma terrível desigualdade no acesso à educação, mesmo em tempos de pandemia;
5. Caso o Ministério da Educação decida por aulas ministradas por meio da televisão pública, a TCV, estará também a fazer uma aposta errada, contribuindo para a inaceitável discriminação de cerca de 20% de famílias que não têm um aparelho de televisão nas suas casas. Há sete concelhos do país onde essa discriminação estaria a deixar de fora do sistema de ensino um pouco mais de 30% de agregados familiares. São os concelhos de Ribeira Grande (30,1%), Paul (30,4%), Tarrafal (31,3%), Santa Cruz (36,2%), São Miguel (35,1%), Mosteiros (32,6%) e Santa Catarina do Fogo (41,1%);
6. Por outro lado, voltar às aulas coloca o desafio de se garantir que não haverá risco de contágio. Quais são as condições que têm de ser observadas para se garantir a ausência desse risco, a tempo de se retomar as aulas? Uma vez que persistem estas dúvidas, ambiente que não é de todo adequado para o regresso de professores e alunos às salas de aulas, parece-nos razoável que o Ministério da Educação pondere um terceiro cenário de não retoma das aulas para o presente ano letivo 2019/2020;
7. Face tanto à impossibilidade de se avançar com um sistema de ensino à distância (cenário i), como de se garantir a tempo a ausência de risco de contágio e o consequente arranque de aulas (cenário ii), ficam aqui as seguintes propostas para o encerramento do ano letivo (cenário iii):
a) Avaliação do ano letivo terá como base as avaliações aos quais os alunos já foram submetidos até agora;
b) Criação de um pacote de ensino à distância para os estudantes, (i) mas que não tenha como meta a realização de novas avaliações dos alunos, devido à impossibilidade de todos terem acesso ao computador, à televisão ou à internet (30% de excluídos). Este pacote cumpriria o (ii) objetivo de uma melhor ocupação do tempo de confinamento em casa, com um eventual prolongamento, dependendo do fim do período de isolamento e que poderia ir até final de junho; e, finalmente, (iii) o pacote teria três disciplinas: Língua Portuguesa, Matemática e uma transversal, com combinação de matérias selecionadas, com os alunos agrupados por ciclos ao longo do primário e do secundário;
c) Criação de um pacote de formação à distância dirigido aos professores, de modo a reforçar os seus conhecimentos em áreas selecionadas para os diferentes níveis de ensino. As formações seriam voluntárias com garantia de certificados que dariam direito à progressão nas carreiras – seguindo o princípio de tempos excecionais, medidas excecionais!
INE (2018), Acesso e utilização das tecnologias de informação e comunicação, Inquérito Multi-Objetivo Contínuo (http://ine.cv/wp-content/uploads/2019/07/imc-2018-estatisticas-das-tics-final.pdf)
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