A ABERTURA POLÍTICA DEMOCRÁTICA DE 19 DE FEVEREIRO DE 1990 E AS SUAS DURADOURAS REPERCUSSÕES NA IRRUPÇÃO DE UMA DEMOCRACIA PLENA NA SOCIEDADE CABOVERDIANA
Colunista

A ABERTURA POLÍTICA DEMOCRÁTICA DE 19 DE FEVEREIRO DE 1990 E AS SUAS DURADOURAS REPERCUSSÕES NA IRRUPÇÃO DE UMA DEMOCRACIA PLENA NA SOCIEDADE CABOVERDIANA

Assinale-se, a título de enquadramento geral dos processos e eventos políticos ocorridos no ano inicial de transição política de 1990 e dos seus imediatos pressupostos temporais e políticos, que, para além das circunstâncias políticas especificas advenientes da Declaração de Abertura Política Democrática e que levaram à criação do MpD e à publicitação da sua Declaração Política num relativamente curto período de tempo, o PAICV tinha programado a realização das primeiras eleições autárquicas do Cabo Verde pós-colonial para o mês de Novembro/Dezembro de 1989, tendo para isso feito adoptar pela ANP, ainda em 1989, o respectivo pacote legislativo, designadamente a Lei nº 47/III/89 de 13 de Julho (Lei de Bases das Autarquias Locais) e a Lei nº 48/III/89 (Lei Eleitoral Municipal). Nessas eleições autárquicas deveriam ser admitidas listas de candidatos apresentados em cada município pelo PAICV e por grupos de cidadãos independentes. Segundo informa um dos fundadores do MpD e antigo Presidente da Mesa da ANP, António Espírito Santo Fonseca, na sua intervenção feita na Conferência intitulada O Percurso Constitucional de Cabo Verde, organizada, em Novembro de 2010, pelo Grupo Parlamentar do PAICV e constante da brochura homónima, desde essa altura que alguns círculos oposicionistas radicados em Cabo Verde vinham cogitando, ponderando e reflectindo sobre a necessidade da congregação das forças consubstanciadas nos grupos independentes de cidadãos e dispersas nos vários círculos eleitorais concelhios por forma a confrontar com um mínimo de unidade política as forças do PAICV unidas nas respectivas listas eleitorais. Terá sido essa a razão remota da relativa facilidade do surgimento do MpD em 1990 e, acrescentamos nós, da contraditória conduta, tanto do PAICV, como também do emergente MpD, no que se refere aos processos das respectivas adaptação/acomodação/rejeição ao/do novo figurino de eleições legislativas com a participação somente do partido único e de grupos de cidadãos independentes e correlativa competição entre as respectivas listas concorrentes de candidatos a deputados.

1.Como é por demais sabido, a admissão oficial da possibilidade da pluralização política da sociedade caboverdiana e, logo depois, a multipartidarização de facto do país decorreram a partir da Abertura Política Democrática, de 19 de Fevereiro de 1990, e consistiram na actuação em expectante (semi-)legalidade e, imediatamente depois,  à luz plena do dia no terreno político das ilhas caboverdianas de grupos oposicionistas anteriormente ligados aos CED (Círculos de Estudos para a Democracia), responsáveis pela publicação de alguns textos académicos de crítica aberta e de assumida contestação política do regime político caboverdiano de partido único socializante, ao GRIS (Grupo Revolucionário de Intervenção Socialista) e aos CCPD (Círculos Cabo-Verdianos para a Democracia), todos fundados em Portugal, a partir de 1980/1981 em meios oposicionistas integrados por  intelectuais, estudantes universitários, empregados e operários, oriundos primacialmente do passado fraccionismo e da antiga dissidência trotskistas no seio do ramo caboverdiano do PAIGC, bem como ao partido político (a UCID) fundado, a  13 de Maio de 1978, na cidade de Roterdão, nos Países Baixos, popularizada entre os cabovrerianos pelo nome  Holanda) e à Liga Cabo-Verdiana dos Direitos Humanos, fundada em Portugal, nos inícios dos anos oitenta do século XX, pelos advogados António Caldeira Marques e Felisberto Vieira Lopes  e por outros quadros caboverdianos também oriundos dos círculos oposicionistas de exilados políticos. Todos esses grupos políticos e cívicos vinham actuando, mais ou menos abertamente, nos países, primacialmente  ocidentais, de acolhimento das comunidades emigradas e das diásporas caboverdianas, e agindo na ilegalidade e na clandestinidade no chão das ilhas, como comprovaram os acontecimentos do 31 de Agosto de 1981, no concelho da Ribeira Grande da ilha de Santo Antão, e ilustravam os panfletos que, especialmente e com grande recrudescência a partir dos meados dos anos oitenta do século XX, tornaram-se muito frequentes nos meios urbanos caboverdianos. A mesma pluripartidartidarização política de facto viria a consubstanciar-se na fundação do Movimento para a Democracia (MpD), a 14 de Março de 1990, na escola primária da zona do Brasil, no bairro praiense da Achada de Santo António, na aprovação no acto da sua fundação da sua Declaração Política e na sua posterior subscrição por mais de seiscentos cidadãos caboverdianos de todas as ilhas e de todos os extractos sociais, na recepção em audiência do seu Coordenador Provisório Carlos  Veiga pelo Presidente da República Aristides Pereira e no início das suas actividades públicas, a partir da sua formalização como associação política, designadamente com a realização, a 5 de Maio de 1990, de uma conferência de imprensa no Hotel Praia-Mar, no bairro praiense da Prainha, e a realização, a 5 de Junho de 1990,  de uma muito concorrida sessão de esclarecimento (também entendida como o seu Primeiro Encontro Nacional com delegações oriundas de todos os  concelhos e ilhas do país, à excepção da Brava, do Maio, da Boavista e de São Nicolau) no Centro Social Primeiro de Maio, sito no bairro da Fazenda, também localizada na cidade-capital do país. Como é sabido, a pluripartidarização de facto da sociedade caboverdiana viria a ser irrestritamente consagrada e plenamente instaurada de jure com a Revisão Constitucional de 29 de Setembro de 1990. Antecedendo a Revisão Constitucional de 29 de Setembro de 1990, e conforme já referido em informações anteriormente expendidas no livro de que o presente texto é parte integrante e no livro intitulado Contributo para a  História Político-Constitucional de Cabo Verde (1974-1992), de Mário Silva, que, aliás, confirma essas mesmas informações e adita outras relevantes informações, esclarecendo,  em síntese, que a ANP se tinha reunido no mês de Maio para aprovar algumas Leis fundamentais para a conjuntura de Abertura Política Democrática vivida nesse momento crucial  para a sociedade e a vida  política caboverdianas, quais sejam: a Lei sobre as Associações Políticas; a Lei sobre as Associações Empresariais; a Lei que Regulamenta os Direitos de Reunião e de Manifestação; a Lei que revoga  algumas medidas coloniais e pós-coloniais restritivas dos direitos, liberdades e garantias, como, por exemplo, a Lei do Boato, constante do Decreto-Lei nº 37/77, adoptada sensivelmente dois anos depois da conquista da independência nacional, a Lei que revoga a norma que atribui competência à Direcção Nacional de Segurança enquanto Polícia Judiciária para instruir processos contra réus presos sem culpa formada por mais de seis meses, podendo este prazo ser prorrogado por mais três meses. Ainda antecedendo a Revisão Constitucional, de 29 de Setembro de 1990, realizou-se, em Julho de 1990, o Congresso Extraordinário do PAICV, convocado pelo Conselho Nacional do PAICV na sua reunião de Abril de 1990 e que veio mudar radicalmente o perfil e a extensão da Avbertura Política Democrática inicialmente prevista na Declaração do mesmo Conselho Nacional, de 19 de Fevereiro de 1990. O Congresso de Julho do PAICV adoptou as Linhas Gerais da Revisão Constitucional a empreender na programada sessão legislativa da ANP a ser efectivada em fins de Setembro de 1990, bem como de uma mais alargada Revisão Constitucional a ser promovida já depois das eleições legislativas previstas para serem realizadas no mês de Fevereiro ou no mês de Março de 1991.

2. Muito importante foi igualmente a alteração da Lei da Nacionalidade,  durante o consulado de Corsino Fortes como Ministro da Justiça (em substituição de  José Araújo, que, por sua vez, substituíra David Hopffer Almada nessa pasta ministerial, antes de ter sido nomeado Ministro da Educação e da Cultura em substituição de Corsino Tolentino, nomeado embaixador extraordinário e plenipotenciário em Lisboa, em substituição de Carlos Reis que, por sua vez,  substituíra Corsino Fortes, então designado para dirigir a Missão Diplomática de Cabo Verde na capital angolana, Luanda,  e para representar Cabo Verde como Embaixador Extraordinário e Plenipotenciário não residente em todos os países da África Austral, com excepção de Moçambique, que dispunha de uma Missão Diplomática e de um Embaixador caboverdianos próprios). A nova Lei caboverdiana da Nacionalidade visava permitir que os emigrantes caboverdianos que, por terem adquirido a nacionalidade dos seus países de acolhimento, tinham perdido de forma automática a nacionalidade caboverdiana, e que, entretanto regressados e radicados no país natal, quisessem readquirir a mesma nacionalidade caboverdiana.

3.Nesta primeira fase sequente à Abertura Política Democrática, de 19 de Fevereiro de 1990, e imediatamente anterior à Revisão Constitucional que, a 29 do mês de Setembro de 1990 e mediante a aprovação da Lei Constitucional nº 2/III/90, procedeu à extirpação da Constituição Política caboverdiana dos execrados artº 4º, arº 46º e artº 93º da ainda vigente Constituição Política caboverdiana, de 5 de Setembro de 1980/de 14 de Fevereiro de 1981, são também encetadas negociações entre o PAICV e os  partidos da oposição emergente, designadamente a UPICV-R (Reconstruído), de José André Leitão da Graça, e o MpD, exigindo a UCID, segundo se afirma no acima referido  livro de Mário Silva intitulado Contributo para a  História Político-Constitucional de Cabo Verde (1974-1992), que o PAICV se deslocasse aos Estados Unidos da América para com ela negociar a transição política para uma democracia plena, vindo depois a delegar no MpD os poderes políticos para a representar nas conversações com o PAICV. É provavelmente essa delegação de poderes no MpD por parte da UCID, acrescida da circunstância de a UCID não ter conseguido legalizar-se junto do Supremo Tribunal de Justiça de Cabo Verde, que suscitou a acusação ou, pelo menos, a suspeita, que a UCID se teria “vendido” ao MpD através de John Wahnon, então Presidente da UCID e primo dos irmãos Carlos Wahnon de Carvalho Veiga e José Tomás Wahnon de Carvalho Veiga, respectivamente Presidente e membro proeminente da Direcção Nacional do MpD. Tanto mais que, depois da vitória esmagadora do MpD nas eleições legislativas de 13 de Janeiro de 1991, John Wahnon tornou-se um simpatizante muito próximo desse partido político, tendo liderado a Delegação oficial caboverdiana à Exposição Mundial da Instituição Smithsonian, dos Estados Unidos da América.

Objecto das negociações entre o PAICV, por um lado, e o MpD e a UPICV-R, por outro lado, foram a calendarização da transição política e o teor da Revisão Constitucional programada para ser feita em fins de Setembro/inícios de Outubro de 1990, persistindo várias e sérias divergências entre o PAICV e o MpD no que respeitava tanto ao sistema de governo a ser instituído como à amplitude da Revisão Constitucional a ser adoptada. Com efeito, o PAICV era favorável a um sistema de governo semipresidencial forte enquanto que o MpD era favorável ao chamado parlamentarismo mitigado ou semi-presidencialismo fraquíssimo. Segundo o livro acima referido de Mário Silva, o MpD defendia que nessa fase de transição política a Revisão Constitucional deveria ser a mínima possível, restringindo-se única e somente à revogação dos artigos 4º e  46º (e nessa sequência, acrescentamos nós, e necessariamente do artº 93º) da Constituição Política caboverdiana de 1980/de Fevereiro de 1981 para viabilizar a emergência de jure do pluripartidarismo político e  possibilitar a realização de eleições pluralistas, livres e competitivas, alegando ademais que essa mesma Revisão Constitucional mínima deveria  ter tido  lugar já na sessão legislativa de Maio da ANP. Anote-se que na sessão legislativa da ANP realizada em Maio de 1990, Carlos Veiga apresentara uma proposta de Lei sobre Associações Políticas que previa que as associações políticas pudessem apresentar candidaturas independentes às eleições nos diferentes círculos eleitorais do país, quiçá no pressuposto que o PAICV mantinha o perfil inicial do seu projecto de Abertura Política Democrática, anunciado por Pedro Pires no dia 19 de Fevereiro de 1990, realizando eleições legislativas em Dezembro de 1990, mas somente com a participação do PAICV e de grupos independentes de cidadãos. Atente-se que por altura da realização das negociações entre o PAICV e a oposição emergente, o PAICV  tinha já aceitado, na reunião do seu Conselho Nacional, de Abril  de 1990, a exigência do MpD, constante da sua Declaração Política, de 14 de Março de 1990, segundo a qual o Presidente da República devia ser eleito por sufrágio universal, igual, directo e secreto, tendo o PAICV proposto ademais a calendarização da realização de eleições presidenciais directas para o mês de Novembro de 1990, isto é, para  antes da realização das eleições legislativas, agendadas para o mês de Fevereiro ou para o mês de Março de 1991 e a serem convocadas pelo novo Presidente da República eleito por sufrágio universal, directo, igual e secreto. Ademais, nessa mesma reunião de Abril de 1990, o Conselho Nacional do PAICV calendarizara a aprovação de uma Lei de Associações Políticas e das Leis da Reunião e da Manifestação para a sessão legislativa de Maio da ANP, tendo outrossim programado para a sessão legislativa de Setembro a Outubro de 1990 da ANP a Revisão Constitucional de revogação do artº 4º e dos artigos com ele conexos da Constituição Política caboverdiana de 1980/de 1981, bem como a aprovação das Leis dos Partidos Políticos, do Estatuto da Oposição Democrática, da Greve e da Proibição do Lock Out, das Leis para a Eleição do Presidente da República e para a Eleição dos Deputados da ANP, bem como da Lei do Direito de Antena, da Lei da Resposta e da Réplica Políticas e da Lei relativa ao Estatuto dos Jornalistas.

Nas negociações com o PAICV, o MpD conseguiu impor ou, melhor dito, conseguiu fazer  aceitar pelo seu adversário político directo  a sua exigência da realização das eleições legislativas em período anterior às eleições presidenciais, todavia não tendo logrado impor as suas outras exigências, reiteradamente repetidas nos seus comunicados e aparições públicas, quais sejam a extinção imediata da chamada polícia política, a despolitização/despartidarização das Forças Armadas e das Forças Policiais, a demissão do Ministro da Informação e a sua substituição por uma “personalidade independente”  e a criação de um Conselho de Comunicação Social para garantir o tratamento isento, imparcial e equitativo das actividades de todas as forças políticas em presença, o fim dos subsídios estatais ao PAICV e a algumas organizações de massas, como a JAAC-CV e a OMCV, consideradas pelo MpD organizações  políticas satélites do PAICV.  Por seu lado, o PAICV manteve a calendarização da Revisão Constitucional para o mês de Setembro de 1990, entendendo a Revisão Constitucional mínima como compreendendo necessariamente a extensão e a devida adaptação para o regime democrático pluripartidário do sistema semipresidencial de governo constante da Constituição de 5 de Setembro de 1980/de 14 de Fevereiro de 1981, bem como a realização das eleições legislativas no período compreendido entre os meses de Janeiro e Março de 1991. Assinale-se que a proposta do PAICV relativa a um sistema de governo semipresidencial forte mereceu o pleno acordo da UPICV-R e do seu líder José André Leitão da Graça, que anteriormente defendera um sistema de governo presidencial.

Da relativa intransigência política do PAICV e do MpD, depois reflectida na relativa intransigência negocial das delegações das duas partes, doravante em inédita e renhida liça política, resultou que:

i. Por um lado, o MpD pudesse arvorar-se o estatuto de líder de um cada vez mais amplo e abrangente movimento político-social contra o regime de partido único que, segundo a impressão política esperta e manhosamente trazida a público, e diga-se também, inteligentemente veiculada, aliás, com inegável sucesso, pelo mesmo partido político da oposição emergente, continuaria vigente até  à Revisão Constitucional  de 29 de  Setembro de 1990 (devendo-se relembrar neste contexto que essa mesma vigência era somente  de jure em face da visível, inequívoca e vibrante pluripartidarização de facto da sociedade caboverdiana das ilhas e diásporas, ademais jurídico-legalmente consagrada, mais do que simplesmente tolerada, desde a Abertura Política Democrática, decidida pelo Conselho Nacional do PAICV e anunciada pelo Secretário-Geral Adjunto desse partido político, a 19 de Fevereiro de 1990).  Como tempestivamente alegado e denunciado pelo MpD, do adiamento da Revisão Constitucional advinham numerosas vantagens políticas e financeiras para o PAICV e para as suas organizações sociais de massas e organismos dele dependentes, designadamente a JAAC-CV, a OMCV, a OPAD-CV e o Instituto Amílcar Cabral, que continuariam a beneficiar-se dos subsídios constantes do Orçamento Geral do Estado para 1990 e a usufruir da posse e do gozo das instalações, das viaturas e de outros equipamentos habitualmente disponibilizados pelo Estado caboverdiano a esse mesmo partido e a essas mesmas entidades e instituições adstritas ao mesmo. O papel do MpD,  que o colocava e estatuía como força liderante de um amplo e abrangente movimento político-social contra o ainda formalmente vigente regime político caboverdiano de partido único socializante, ficaria reforçado com o facto de o mesmo partido político/movimento político-social emergente ter ficado praticamente sozinho no terreno da quotidiana mobilização política e social das populações de todas as ilhas e diásporas, durante largos meses, provavelmente desde antes da sua primeira actividade política aberta ao grande público, efectuada a 5 de Junho de 1990. Entrementes e por outro lado, os dirigentes do  PAICV  estavam e ficaram ocupados, até imediatamente depois da realização do Congresso Extraordinário do PAICV de Julho de 1990, a tentar convencer a sua própria massa militante, designadamente os responsáveis e militantes nos níveis intermédios e locais, da oportunidade, da tempestividade e da pertinência políticas das mudanças políticas então em curso,  bem como a criar as condições político-institucionais e juridico-legais para uma transição política tranquila, pacífica e controlada de um regime político monopartidário para uma democracia pluripartidária. 

ii. Por outro lado, o PAICV pudesse outorgar-se o estatuto de líder político-institucional da transição política democrática, pois que, na verdade,  foram  da sua iniciativa política a Abertura Política Democrática e a calendarização da transição política democrática, em parte previamente concertada e negociada com a oposição política emergente. Com esse continuado estatuto formal de força política dirigente da sociedade e do Estado, o PAICV conseguiu efectivamente que a transição política democrática fosse juridicamente regulada, e que essa mesma regulação decorresse no quadro político institucional de referência que era a ANP. Anote-se neste contexto que as últimas sessões da última legislatura monopartidária da ANP se tornaram, segundo afirma Mário Silva no seu livro Contributo para a História Político-Constitucional de Cabo Verde (1974-1990), as mais produtivas de toda a sua História.   Relembre-se, ademais, que o PAICV dispunha da maioria esmagadora dos deputados da ANP, se bem que por esses dias se tivesse constituído informalmente no seu seio uma pequena minoria oposicionista integrada pelos deputados independentes Carlos Alberto Wahnon de Carvalho Veiga, que, como sabido, era o Coordenador Provisório do MpD, Carlos Albertino de Carvalho Veiga e Tomé Varela da Silva, todos anteriormente eleitos, como deputados independentes, nas listas únicas do PAICV. 

Refira-se ainda neste contexto, e a mero título de curiosidade, que na sessão legislativa da ANP, de 29 de Maio de 1990, o deputado Carlos Veiga quis fazer passar um projecto de Lei de Revisão Constitucional para suprimir o artº 4º da Constituição Política de Cabo Verde, de 5 de Setembro de 1980/de 14 de Fevereiro de 1981, e instituir o pluripartidarismo político. O mesmo projecto de Lei de Revisão Constitucional recolheu somente seis a sete assinaturas, notoriamente insuficientes para o desencadeamento de um processo de Revisão Constitucional, o qual teria de ser desencadeado pelo Governo ou por um mínimo de um terço dos deputados em efectividade de funções, isto é, segundo Carlos Veiga, por 29 deputados. Por isso, o processo de desencadeamento da Revisão Constitucional seria somente possível por iniciativa do PAICV, conforme esclarece o próprio Carlos Veiga na sua primeira e longa entrevista ao semanário estatal Voz di Povo, concedida ao jornalista Daniel dos Santos e publicada em Junho de 1990. Relembre-se nesta circunstância que na sua primeira sessão de esclarecimento realizada no dia 5 de Junho de 1990, com casa cheia, no Centro Social Primeiro de Maio, o MpD fez aprovar por aclamação uma Moção com todas as suas exigências políticas imediatas, com destaque para a revogação imediata do artº 4º e dos artigos conexos da Constituição Política vigente e a correlativa aprovação da Lei dos Partidos Políticos.

Curiosamente, nem sempre fora assim. Com efeito, na sua Declaração Política, de 14 de Março de 1990, o MpD tinha apresentado, em reacção à Declaracão de Abertura Política do PAICV, de 19 de Fevereiro de 1990, o que se pode considerar o primeiro esqueleto do seu Programa Político e que deveria ser matéria de Revisão Constitucional a ser feita no futuro. Desse esqueleto de Programa Político do MpD destacavam-se as exigências da eleição do Presidente da República por sufrágio universal, directo e secreto, da limitação do mandato do Presidente da República, da criação livre de partidos políticos concorrentes em pé de igualdade com o PAICV, da criação de um Tribunal Constitucional, da liberdade sindical e da criação de um poder local forte e autónomo. Como medida imediata, o MpD propunha a alteração da Lei das Associações por forma a nela inserir as associações políticas, bem como a revogação de alguns artigos, considerados mais repressivos ou ambíguos, da Lei de Imprensa, adoptada em 1986. Nessa altura, apesar de criticar a metodologia proposta pelo PAICV para as eleições legislativas seguintes, com a participação somente do partido único e de grupos independentes de cidadãos, ficando as eleições legislativas pluripartidárias agendadas para o quinquénio seguinte, isto é, para 1995, depois da constituição de uma relativamente pluralista V legislatura da ANP que procederia à necessária Revisão Constitucional de mudança do regime político (conforme também constava da estratégia ínsita na intervenção de David Hopffer Almada, na reunião do Conselho Nacional do PAICV, realizada de 12 a 19 de Fevereiro  de 1990, em  continuação da reunião iniciada em Novembro/Dezembro de 1989), o MpD parecia ter como dado adquirido irreversível a realização, no  estrito cumprimento do calendário eleitoral constante da Lei Eleitoral então vigente (Lei nº 45/II/84), da realização das eleições legislativas em Dezembro de 1990, segundo o figurino inicial e originalmente proposto pelo  PAICV na sua Declaração de Abertura Política, de 19 de Fevereiro de 1990.  

Entretanto e como já referido, na sua reunião de Abril de 1990, para além de ter convocado  a realização antecipada de um Congresso Extraordinário para o  mês seguinte de Julho de  1990, em lugar da  realização desse mesmo Congresso Extraordinário para o ano seguinte de 1991, como anteriormente  previsto na Declaração de Abertura Política, o PAICV tinha aceitado a proposta da aprovação de uma Lei sobre as Associações Políticas,  bem como  o princípio da eleição do Presidente da República por sufrágio universal, igual, directo e secreto, tal como proposto na Declaração Política do MpD, de 14 de Março de 1990, dando, outrossim, a entender, de forma clara e inequívoca,  que a primeira eleição do Presidente da República de Cabo Verde por sufrágio universal, igual, directo e secreto seria efectuada  já no mês de Novembro de 1990, realizando-se depois as eleições legislativas entre os meses de Fevereiro e de Março de 1991. Ao Presidente da República eleito no mês de Novembro de 1990 caberia, segundo o novo entendimento da Abertura Política Democrática por parte da Direcção do PAICV, convocar as eleições legislativas de Fevereiro/Março de 1991 e assumir o papel de garantir uma transição política tranquila e pacífica no quadro político institucional estabelecido, devendo o Presidente da República, por isso mesmo, manter-se isento e equidistante dos partidos políticos.  Na sua reacção, em comunicado de 16 de Abril de 1990, às deliberações dessa reunião de Abril (a V Ordinária) do Conselho Nacional do PAICV, o MpD congratulou-se com o que considerou ser a irreversibilidade do processo de Abertura Política Democrática, considerando todavia inútil a eleição por sufrágio universal, igual, directo e secreto, no mês seguinte de Novembro de 1990, de um Presidente da República que seria sempre provisório, já que segundo o seu entendimento, haveria necessariamente novas eleições presidenciais depois da aprovação de uma nova Constituição Política da República de Cabo Verde, que clarificaria definitivamente as matérias relativas aos poderes e às competências presidenciais e ao sistema  de governo. O MpD exigiu, ademais, a revogação imediata dos artigos 4º e 46º da Constituição da República vigente já na sessão legislativa de Maio da ANP, bem como a realização das eleições legislativas antes da realização da eleição presidencial. Não tendo conseguido impor a sua exigência de revogação imediata do arº 4º e dos artigos conexos da Constituição Política vigente, o MpD optou através do “seu deputado oficioso” Carlos Veiga pela apresentação na sessão legislativa de Maio da ANP de um projecto de Lei  que outorgava às associações políticas a prerrogativa de apresentar candidaturas às eleições legislativas, parecendo assim (co)responder à exigência do PAICV de realização de eleições legislativas com a participação somente do partido único  e de grupos independentes de cidadãos, conforme constava  da Declaração de Abertura Política. Foi somente quando esse projecto de Lei das Associações Políticas foi liminarmente rejeitada é que se aprovou um outro projecto de Lei das Associações Políticas na mesma sessão legislativa de Maio da ANP, todavia sem que as associações políticas ficassem autorizadas a apresentar candidaturas às eleições legislativas.

Assinale-se, a título de enquadramento geral dos processos e eventos políticos ocorridos no ano inicial de transição política de 1990 e dos seus imediatos pressupostos temporais e políticos, que, para além das circunstâncias políticas especificas advenientes da Declaração de Abertura Política Democrática e que levaram à criação do MpD e à publicitação da sua Declaração Política num relativamente curto período de tempo, o PAICV tinha programado a realização das primeiras eleições autárquicas do Cabo Verde pós-colonial para o mês de Novembro/Dezembro de 1989, tendo para isso feito adoptar pela ANP, ainda em 1989, o respectivo pacote legislativo, designadamente a Lei nº 47/III/89 de 13 de Julho (Lei de Bases das Autarquias Locais) e a Lei nº 48/III/89 (Lei Eleitoral Municipal).  Nessas eleições autárquicas deveriam ser admitidas listas de candidatos apresentados em cada município pelo PAICV e por grupos de cidadãos independentes. Segundo informa um dos fundadores do MpD e antigo Presidente da Mesa da ANP, António Espírito Santo Fonseca,  na sua intervenção feita na Conferência intitulada O Percurso Constitucional de Cabo Verde, organizada, em Novembro de 2010, pelo Grupo Parlamentar do PAICV e constante da brochura homónima, desde essa altura que alguns círculos oposicionistas radicados em Cabo Verde vinham cogitando, ponderando e reflectindo sobre a necessidade da congregação das forças consubstanciadas nos grupos independentes de cidadãos e dispersas nos vários círculos eleitorais concelhios por forma a confrontar com um mínimo de unidade política as forças do PAICV unidas nas respectivas listas eleitorais. Terá sido essa a razão remota da relativa facilidade do surgimento do MpD em 1990 e, acrescentamos nós, da contraditória conduta, tanto do PAICV, como também do emergente MpD, no que se refere aos processos das respectivas adaptação/acomodação/rejeição ao/do novo figurino de eleições legislativas com a participação somente do partido único e de grupos de cidadãos independentes e correlativa competição entre as respectivas listas concorrentes de candidatos a deputados.

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