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Seis coisas (im)possíveis (?) para se pensar antes do café da manhã
Ponto de Vista

Seis coisas (im)possíveis (?) para se pensar antes do café da manhã

No livro de Carroll o tema da “mudança” e da “metamorfose” passa também por uma visão de si, do tempo, do espaço e do outro. Se você encontra “verossimilhanças” (coisas que parecem à primeira vista, mas depois de um exame se demonstram bem diferentes), obviamente a Pomba está certa em afirmar que Alice com o pescoço alongado é uma serpente e logo, porque comem ovos, meninas e serpentes são da mesma natureza!

“Às vezes eu acredito em seis coisas impossíveis antes de tomar café.”

 Lewis Carroll

 

A frase acima faz parte da obra do matemático e escritor inglês Lewis Carroll que fez fama ao desenvolver princípios da Lógica e da Matemática em dois contos: “Alice no País das Maravilhas” e “Alice através do Espelho”.

Na época, os contos foram propositadamente endereçados ao público infantil, no entanto, o público adulto muito se interessou pelos problemas, em forma de adivinhas, propostos pelo autor de maneira muito divertida e em linguagem muito peculiar, desenvolvida para o próprio livro, respeitando muitos dos aspectos orais da cultura inglesa e a própria tradição contista daquele país. Um exemplo é o trecho retirado de “Alice Através do Espelho” onde a Rainha Branca propõe a seguinte advinha:

" Primeiro pesca o peixe.

Isso é bem fácil: até um bebé o consegue, creio eu.

Depois compra-o peixe.

Isso é bem fácil: um tostão chega, creio eu.

 

Agora, cozinha esse peixe!

Isso é bem fácil: não leva mais de um minuto.

Deixa-o ficar no prato!

Isso é bem fácil, porque ele já lá está...

 

Trá-lo para aqui! Quero jantar!

É bem fácil por o prato na mesa.

Tira-lhe a tampa que o cobre!

Ah, isso é tão difícil que receio não ser capaz...

 

Porque se agarra a ele como cola...

A tampa está colada ao prato e o peixe está lá dentro!

Qual das duas é mais fácil?

Descobrir o peixe ou a adivinha?

A solução envolveu e ocupou tanto adultos quanto crianças da época e ainda ocupa os matemáticos e lógicos de hoje em dia. Há quem se debruce sobre esses textos do século 19 com muito deleite e não poupe tempo para meditar sobre suas curiosas proposições.

No entanto, a frase que intitula este ensaio é um exercício proposto pela Rainha Branca: pensar em seis coisas impossíveis antes do café da manhã. É claro que o leitor poderá conferir o texto completo num exemplar disponível em um sebo ou numa livraria, aqui não nos interessa fazer a resenha do livro, mas dissertar sobre essa curiosa proposição.

Do ponto de vista do “senso comum”, ou seja, como dizia Aristóteles, do ponto de vista comum e comunicável entre todos os interlocutores, há pelo menos duas formas de se interpretar essa proposição ou “exercício da Rainha Branca”: você pode pensar em coisas “universalmente” impossíveis, ou seja, que são difíceis para a maior parte da Humanidade e as coisas que são impossíveis para si mesmo.

A natureza do “possível” ou “impossível” geralmente é determinada pela apresentação geral do problema e o trabalho de escolher um método apropriado para resolver o problema. Se um problema exige uma série de pré-condições ideais, difíceis de serem encontradas na realidade, o problema pode ser considerado de solução impossível. Já quando há, pelo menos, condições mínimas e circunstâncias favoráveis se diz que a solução do problema é possível. No entanto, há uma outra forma de interpretação para a sentença dos “seis problemas impossíveis” se pensarmos do ponto de vista da teoria das “probabilidades”.

É provável ou possível que a chuva seja benéfica em alguns lugares e maléfica em outros lugares, ou ainda, seria possível a chuva ser benéfica e maléfica ao mesmo tempo em todos os lugares?

Do ponto de vista das probabilidades, ainda poderíamos pensar o que é bom para nós e o que é bom para os outros e assim estabelecer uma série de cenários onde o que é bom para nós também é bom para os outros e o contrário também, certo?

Contudo, alguns alegarão que nas palavras e na cabeça tudo funciona muito bem, mas que nas circunstâncias materiais e históricas até a coisa mais simples parece ser um dos 12 trabalhos de Hércules…

Pensemos, hipoteticamente, na forma que conduzimos a nossa vida diariamente.

Ao acordar, nesse lapso de tempo entre o sair da cama e tomar o primeiro gole de café para ir para o trabalho nossa cabeça com certeza não pensa nas “impossibilidades”, pensamos somente no que temos de fazer e que deve acontecer custe o que custar! Não importa se irá chover ou se sofreremos um acidente, o que se espera, ao despertar, é finalizar o dia que é medido para quantidade de tarefas que o compõe. Não pensamos no impossível, pois o impossível não nos interessa… ele é “impossível”, oras! Devemos realizar o “possível” e, geralmente, o possível é da ordem da rotina ou do status quo, o “impossível” exige que saiamos da “zona de conforto” e nos lancemos em terrenos ou raciocínios incertos. Porém, é precisamente o temor ou a dificuldade de inovar que torna impossível a mudança…

No livro de Carroll o tema da “mudança” e da “metamorfose” passa também por uma visão de si, do tempo, do espaço e do outro. Se você encontra “verossimilhanças” (coisas que parecem à primeira vista, mas depois de um exame se demonstram bem diferentes), obviamente a Pomba está certa em afirmar que Alice com o pescoço alongado é uma serpente e logo, porque comem ovos, meninas e serpentes são da mesma natureza!

O leitor pode ler a frase acima e dizer: “Isso não passa de um grande absurdo!”, contudo, se aplicar o mesmo exame à coisas corriqueiras do seu dia a dia, da política às suas decisões pessoais verá que tem vezes que se comporta com a “Pomba” do conto de Carroll…

A pobre Alice, ainda tendo de lidar com as mudanças, que cada circunstância lhe proporciona nas aventuras no País das Maravilhas, não consegue responder corretamente ou satisfatoriamente a nenhuma das questões que lhe são propostas. Ela ainda não saiu de seu mundinho, que inclusive considera entediante, e diante do maravilhoso mundo do País das Maravilhas, mal consegue entabular uma conversa sem se sentir completamente confusa diante de seus interlocutores que a consideram também bastante inconsciente de sua nova condição. Será que a Alice é bem orientada e aconselhada? Parece-me que não! Ela não consegue tirar bom proveito de nenhuma situação, pois simplesmente não compreende a lógica por detrás deles, e por conseguinte, não consegue mudar sua própria visão de si e de seu mundo.

Como disse, Lewis Carroll era um matemático e lógico. E por que uma coisa é diferente da outra? O próprio trabalho de Carroll, no formato de contos infantis com silogismos e non-sense, são a prova de que também para aquele autor, matemática é uma coisa, lógica é outra, mas ambas pautam o pensamento humano e este, por sua vez, determina nossos propósitos e o teor de nossas ações.

Em alguns trechos dos contos, Carroll propõe questões matemáticas simples, que Alice simplesmente não consegue responder. E por quê? Alice não sabe? Não é bem assim… O problema é que Alice não pensava utilizando-se da “lógica”, que também possui um tipo de  “matemática”, pois é esta, a Lógica Matemática, quem resolve tanto o problema “oito menos nove”, quanto a adivinha sobre os peixes. Alice estava presa a um raciocínio viciado da língua e da linguagem, raciocínio este obtido pelo treino e pela repetição de conteúdos que Alice ignorava as origens ou causas. Para Alice responder às difíceis questões que lhe eram apresentadas pelos habitantes do País das Maravilhas, deveria mudar sua forma lógica de encarar os problemas, passando a compreender que tudo possui uma origem, uma causa e uma consequência.

Talvez esse fosse o sentido apresentado na sentença proposta pela Rainha Branca à Alice ao declarar que pensar em seis problemas impossíveis antes do café não era difícil, era apenas uma questão de hábito. Se Alice o fizesse todos os dias começaria a perceber que o que parecia ser impossível era muito provável.

Até hoje, o conto de Carroll nos instiga a fazer esse exercício: quais são os seis problemas impossíveis que nos passariam pela cabeça entre o despertar e o momento do desjejum? Seriam tão impossíveis assim ou apenas não paramos para refletirmos sobre eles?

 

 

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