Manual de instruções para não ser Colónia (Outra Vez)
Ponto de Vista

Manual de instruções para não ser Colónia (Outra Vez)

Há uma foto, de um jovem com cara de poucos amigos e farda de muitos combates segura o microfone como quem segura o destino de um continente, ou o controle remoto da revolução que tem invadido as redes sociais. De boina vermelha e olhar de quem não tem tempo para frivolidades, Ibrahim Traoré parece pronto para discursar... ou para convocar um leão. Mas senhor Traoré o que me irrita no senhor é que eu sou mais velho do que tu e ainda nem fiz renovação do meu BI caducado e o senhor já vai numa revolução, mas, o Senhor é um golpista sim, querido, mas é. Pronto, disse.

Respirem. Sim, vocês aí com a t-shirt com imagens de algum herói caído made in Bangladesh e os sapatos da Zara revolucionária. Respirem fundo e, por favor, deixem as imagens da canva em paz. Esta crónica não tem QR Code, não foi avaliada por pares e nunca passou perto de um seminário com coffee-break e certificado digital.

Isto aqui nasceu no pojo de realidade. Não daquelas que os turistas lambem com os olhos ao sol, mas daquela poeira teimosa, íntima, que se mete nos ouvidos, nas promessas, nas entranhas. A poeira do Tarrafal que já viu mais História do que a Wikipédia em dia de temporal. Foi ali, entre a sombra melancólica do Monte Graciosa e o hálito quente do FMI, que me caiu em cima, enquanto se assistia o kabungo a plantar os mais novíssimos coqueiros na república de Tarrafal, enquanto isso me veio a captura irreparável, não uma ideia, mas um arrepio: o Panafricanismo.

Sim, o Panafricanismo. Não o de slides, nem o das pastas em couro sintético com selo da União Africana. Mas o outro. O da rua. Da perna inchada. Do cabelo mal domado. Aquele que vem aos tropeções, que tropeça em fronteiras desenhadas por ingleses embriagados e que, ainda assim, insiste em caminhar.

É esse. O que não precisa de passaporte. O que não assina tratado. O que não cabe num organograma nem num currículo Lattes. Esse Panafricanismo é mais verbo do que tese. Mais suor do que ata. Mais batuque no terreiro de Maninha Borges do que flyer animado.

E não é que, em pleno século XXI, quando pensávamos que tudo se resolveria com emojis, planilhas e democracias de hashtag, aparece um tal de Ibrahim Traoré? Um jovem com cara de Sankara e farda justa, que parece ter saído de um filme censurado pelo FMI, EU e afins. O homem teve o desplante de dizer: "Chega de mandar urânio e receber memes de condolência e beijinhos na testa."

Simples. Claro. Revolucionário. Tão fora do script que até fez o Asterix e Obelix engasgar em la catedral. Claro que os jornais ocidentais, sempre tão neutros como manteiga em frigideira quente. traduziram isso como “ruptura institucional”, essa elegante maneira de dizer: “o pessoal lá do mato partiu a porcelana da vovó Europa e agora vão ter de ir ao Minimercado do Calo e Ângela ou Primark comprar uma nova.”

Mas nos WhatsApps das tias e tios revolucionários, nos grupos clandestinos que misturam Fela Kuti com recados da Dona Maria, que nunca deixaram a utopia sankariana morrer, aquilo foi entendido como o que é: um tambor que bate mais forte do que a ONU consegue ouvir. Só que calma. Nem tudo o que reluz é revolução. E é aqui que entra o lado B do disco africano. O lado que ninguém gosta de tocar porque cheira a sangue, a silêncio e a comunicados da ONU que começam com “lamentamos profundamente”. Porque já vimos este filme. E ele não tem final feliz.

Burkina Faso, 1987: Sankara apanhou uma bala e quem atirou foi o próprio camarada Compaoré. Resultado? 27 anos de corrupção, repressão e francês técnico. Guiné-Bissau, 1980: Nino Vieira virou-se contra o próprio amigo e abriu a era dos governos descartáveis. Sudão, 1989: Bashir disse que falava com Deus. Depois falou só com armas. Nigéria, 1983: Buhari trocou a urna pelo coturno. Guiné, 2008: Capitão Dadis achou que a democracia era alvo de paintball. Burundi, 1993: Mataram Ndadaye. O país nunca mais dormiu em paz. Chade, 2021: Déby Itno herdou o país como se fosse um galinheiro. E quando as galinhas protestaram, lançou-lhes gás.

Estes foram os golpes que não trouxeram pão, nem poesia. Só gráficos tristes e relatórios sem alma. Por isso, quando um Traoré surge a distribuir discurso em vez de balas, a gente não sabe se dança, se desconfia ou se liga para o Mbembe a perguntar: “isto ainda é de comer quente ou já está estragado?” Mas uma coisa é certa: Panafricanismo não é culto a farda. É culto a futuro. Não se trata de pôr todos os africanos a marchar na mesma direção como num desfile da Coreia do Norte com pandeiro. Trata-se de permitir que cada um ande ao seu ritmo, na sua língua, com o seu Deus ou sem nenhum, mas com dignidade na mochila.

E nós, aqui em Cabo Verde? Nós somos o slide bem “feito” da África. Transformámos o país em condomínio com vista para o Atlântico e alugamos o futuro à elite de Prainha, Palmarejo Grande e cidadela, aquela que canta morna com sotaque de Coimbra até Harvard. Diz-se "popular" com vinho de porto na mão e frango assado de convenção no prato. No entanto, que fique claro, gosto mais dos churrasco da Rosa feito no calor da estrada e a frente do Santo Amaro que tudo vê e tudo testemunho no Tarrafal.

Aqui há um grupo liderado por uma elitizinha xatiadu si que se nega o eletismo e se afirmam e dizem contra as elites da capital. Que absurdo e curioso é que têm o sotaque do Chega em Portugal. Só que em crioulo. E sem um claro Ventura, mas quer aventura. E os nossos pensadores? Estão lá. Na sombra. A fazer o trabalho de formiguinha com megafone desligado: Porque o panafricanismo, e agora repitam comigo, como se estivessem num terreiro, não é catálogo da UNESCO. É resistência com ginga. Quando um africano decide levantar-se, ele não pede desculpa. Pede passagem.

E se tiver de passar por cima de tratados, fronteiras com esquadro, estátuas de colonos ou políticos sonâmbulos, ele passa. Com poeira no cabelo. Com tambor no peito. E com o futuro ainda por inventar. Se isto te parecer radical, lembra-te: às vezes, a poesia é a forma mais educada de dizer BASTA.

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Comentários

  • Jaku amarante, 4 de Mai de 2025

    Tens coragem de chamar o Traoré de Golpista, os desavisados deverão cair te em cima. O homem parece um santo, na visão deles. Mas gostei do humor.

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