Entre o Thug e o Trauma: O que está por trás da delinquência juvenil na Cidade da Praia não é resistência consciente. É confusão
Ponto de Vista

Entre o Thug e o Trauma: O que está por trás da delinquência juvenil na Cidade da Praia não é resistência consciente. É confusão

O problema não é apenas a pobreza ou a influência estrangeira. Está mais perto de nós: nos lares partidos, nas feridas emocionais não tratadas, e na passividade das instituições. A ciência confirma isso. Winnicott e Siegel mostram como a ausência de vínculos afetivos seguros, sobretudo da figura paterna simbólica, compromete o amadurecimento emocional e moral. O “thuglife”, longe de ser um ato consciente de resistência, é, muitas vezes, uma expressão confusa de carência afetiva e cognitiva.

É com consideração e sentido de urgência que submeto à sociedade este artigo de opinião/reflexão, fruto de uma investigação de longo curso sobre o fenómeno da delinquência juvenil urbana em Cabo Verde.

A motivação remota surgiu quando o problema entrou pela janela da minha própria família — literalmente — através de uma bala que atravessou o vidro e cravou-se na parede da casa de uma tia, num bairro da Praia. A bala vinha atrás de um “thug” da casa.
A motivação atual desta partilha surgiu com a Semana Nacional dos Professores e, particularmente, durante a Semana Santa de 2025, ao assistir ao programa Em Debate, da TCV, sobre a criminalidade infantojuvenil. O episódio, transmitido no simbólico ano dos 50 anos da independência nacional, foi um espelho revelador de uma das maiores fragilidades do país independente: a incapacidade estrutural de lidar com a delinquência juvenil, sobretudo na cidade da Praia — mas agora, também, em aldeias do interior.

Durante décadas, esse fenómeno foi visto com distanciamento, como um problema das periferias urbanas. No entanto, os “thugs” — jovens sem rumo, sem apoio emocional e sem modelos familiares positivos — estão a multiplicar-se em bairros, escolas e pequenas localidades rurais, perante a perplexidade das instituições e o silêncio das políticas públicas.

Este artigo nasce de 16 histórias de vida reais, recolhidas entre 2006 e 2011, e analisadas até 2018. Nele proponho uma leitura que ultrapassa as explicações sociológicas tradicionais, focadas nos fatores externos, para mergulhar nas causas emocionais, familiares e educativas do fenómeno.

É urgente colocar este tema no centro do debate nacional, não como um problema de segurança apenas, mas como falha coletiva na formação do caráter juvenil e na estruturação dos lares em rutura.

Muitas vezes olhamos para os jovens envolvidos em pequenos crimes e violência urbana com desconfiança ou medo. Chamamo-los “thugs”, importando um termo dos bairros americanos. Mas o que descobri nestas entrevistas foi mais profundo: nenhum desses jovens era religioso, muitos nem batizados. Não conheciam o que era ser acólito, escuteiro ou desportista. Nunca participaram de qualquer movimento de socialização estruturado. Vieram, quase todos, de famílias humildes do interior da ilha de Santiago e do Fogo. Metade reprovou já no 2º ano. Mesmo com 16 ou mais anos, muitos não liam nem escreviam com fluência. Todos apresentavam sinais evidentes de hiperatividade ou TDAH não diagnosticado.

O ponto mais marcante foi outro: em todos os casos, a relação mãe-pai era conflituosa, com discursos maternos que anulavam a imagem do pai. Mesmo quando presente fisicamente, a sua figura simbólica estava destruída. Sem modelos masculinos saudáveis, esses rapazes encontraram nos líderes de gangues e nos “repatriados” referências distorcidas da masculinidade.

O problema não é apenas a pobreza ou a influência estrangeira. Está mais perto de nós: nos lares partidos, nas feridas emocionais não tratadas, e na passividade das instituições.

A ciência confirma isso. Winnicott e Siegel mostram como a ausência de vínculos afetivos seguros, sobretudo da figura paterna simbólica, compromete o amadurecimento emocional e moral. O “thuglife”, longe de ser um ato consciente de resistência, é, muitas vezes, uma expressão confusa de carência afetiva e cognitiva.

O que proponho é simples, mas profundo: olhemos para este fenómeno como um sinal claro da falta de perdão. Mães feridas pelos seus companheiros reproduzem, sem saber, esta desordem nos filhos. Após quase 20 anos a refletir sobre estes dados, proponho:

Redes de apoio às mães, nos mercados, nas escolas e nos postos de trabalho;
Revalorização dos valores espirituais e menor abandono da religião;
Mais atenção à saúde psíquica dos professores e equipas escolares mais competentes;
Formação contínua de professores em educação emocional;
Reconstrução comunitária das referências de masculinidade positiva.

E sobretudo, ensinar o perdão. Ensinar aos rapazes, futuros pais, que a melhor forma de paternidade é amar a mãe dos filhos. O resto… elas farão.

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Comentários

  • Leniente Lopes, 22 de Abr de 2025

    O crime em Cabo Verde é derivado do dominio dos juristas no poder que tornaram o crime uma galinha de ovo de ouros. Por isso, não mexam nos seus bandidinhos.

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