"O Estado de Cabo Verde tem um problema e, ao que parece, tem dificuldades ou não sabe como o resolver. Curioso é que, em privado, quase ninguém, mas quase ninguém, defende essa decisão do Tribunal Constitucional, mesmo aqueles que não subscreveram a Petição, desde gente com altas responsabilidades no aparelho do Estado, passando por académicos, alunos universitários, profissionais de todas as categorias (médicos, juristas, engenheiros, economistas, simples cidadãos) todos torcem o nariz face a decisão do Tribunal Constitucional de alterar, por sua livre iniciativa, a Constituição da República. No entanto, há quem teime em não entender ou a fingir que não entendeu a gravidade da situação, porque está mais preocupado em defender o seu time, a sua raiva contra outrem, os laços de interesses diversos, o seu camarada, a sua prole, do que defender a maior conquista desta Nação diaspórica que é a Constituição da República."
“A segurança exige a positividade do direito, enquanto a segurança jurídica é uma garantia que decorre da positividade, dando estabilidade às relações jurídicas que o homem estabelece no meio social, é uma garantia de certeza de que as relações jurídicas estabelecidas não serão modificadas de modo imprevisto, afastando a incerteza e a insegurança quanto ao futuro da situação constituída. Além disso, a segurança jurídica garante que cada pessoa saiba e conheça os seus direitos e deveres, a aplicação deles e que, para mudá-los, deverá seguir um determinado procedimento previamente fixado.
[…] A divisão de poderes tem como uma de suas principais funções proteger o cidadão contra as arbitrariedades dos poderes, visando eliminar a liberdade do juiz de aplicar o direito extraído do seu próprio senso de equidade ou da vida social, atribuindo ao legislador o poder de editar normas iguais para todos, mas também resguarda os cidadãos das arbitrariedades do Executivo, não atribuindo a este órgão o poder de legislar, mas, sim, a um órgão colegiado que age paralelamente àquele, com a consequente subordinação do Estado à lei” [1].
Mhardoqueu Geraldo Lima França - Doutor em Teoria do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - Brasil
Em Cabo Verde parece que tudo vai bem.
Temos um país independente e soberano;
Uma democracia instalada, baseada em grandes princípios, que norteiam a organização político social das sociedades que perfilham esse tipo de regime;
Há uma relativa paz social, estabilidade política e liberdade de expressão;
Temos um país em transformação a diversos níveis, numa procura incessante pelos caminhos que conduzam ao desenvolvimento;
Assumimos a condição de um país em transição: de modelos organizacionais, de referências, de paradigmas, de comportamentos e atitudes, de crenças e valores, em suma, parece que estamos a passar de um estágio para um outro superior.
No entanto, esta transição de um estágio para o outro determina, de certa forma, que o país viva num desassossego impercetível e numa tranquila indefinição, fruto desse regime transicional em que se navega entre as reminiscências do passado e as novas aquisições do presente.
Na realidade o que se passa, e numa análise em que se procura objetivar o máximo a situação que vivemos, é que nos encontramos a meio caminho entre o que fomos e o que realmente somos, entre o que desejamos ser e o que ainda somos, e em suma: em transição para um outro patamar que exige muito esforço, dedicação e contribuição de todos.
1. O país e as dinâmicas da transição democrática:
Somos um país formalmente com instituições democráticas, com uma Constituição que regula e organiza a nossa vida, com uma regime político assente na pluralidade e livre expressão do pensamento, assumimo-nos como um Estado de Direito Democrático e como uma sociedade civil organizada.
Porém, quando deslocamos a análise do campo meramente formal para a dimensão material, verificamos que existe um hiato entre o que proclamamos ser e o que na realidade somos ou praticamos. No plano do discurso somos mais democráticos que ninguém, mas já na esfera do comportamento expresso, portamo-nos como autoritários, absolutistas e intolerantes com o que é diferente ou com a diferença.
O país se encontra numa fase de desenvolvimento comportamental e cultural na esfera política que se assemelha um pouco àquela que ocorre no desenvolvimento do ser humano, no seu percurso ontogenético, que é caracterizada pela negação.
Trata-se de uma fase que antecede a emergência do sim, com tudo que isso acarreta de complicado, sobretudo quando se está naquela zona cinzenta entre o sim e o não.
E é nessa base que se procura entender a postura negacionista reinante nos atores políticos e com algumas ramificações sociais que tomou conta deste nosso ecossistema político-social, e que não permite e nem aceita a partilha e a colaboração sobre questões centrais do desenvolvimento do país.
É um negacionismo onde vale apenas o que um lado planeja e faz;
Em que o outro não aceita o plano de aqueloutro, recusando-se a participar e a colaborar nas soluções provenientes da parte contrária;
Em que todos tratam com desdém o que uns e outros fizeram e contribuíram;
Em que a democracia proclamada por uns e outros se limita ao seu espaço e reserva existencial;
Em que a proposta promovida por uns e outros nunca cabe nos parâmetros democráticos definidos por cada ator;
Em que os que questionam são tolerados, até para que as contas da democracia batam certas quando se se apresenta perante terceiros.
Estes são os traços caraterísticos das contradições inerentes a fases de transição. Pois, enquanto fizer o seu percurso, e não se estabilizar num ponto, o desassossego manter-se-á. A situação só se supera quando se atinge a etapa final do estágio, onde as novas condições virão a permitir que o sossego se instale e a acalmia passe a reinar.
A nossa democracia verdadeiramente está a realizar essa transição, não de caráter organizacional, mas de índole cultural e comportamental, onde coabitam as diferentes dinâmicas, democráticas e não democráticas, numa relação de anulação permanente quase inconciliável, mas que, por força da pressão da realidade, acabarão por se consolidar numa síntese positiva num ponto qualquer do futuro .
Este é retrato mais ou menos fiel da realidade que vivemos e que temos de melhorar, malgrado a inércia transicional. É preciso acelerarmos os passos de crescimento e maturação democráticos para que esta transição não se eternize.
Temos, é verdade, uma democracia que ostenta dificuldades de debater, de dialogar e de estabelecer acordos sobre questões prioritárias para o país, tudo porque as reminiscências da cultura da unicidade e do pensamento único ainda persistem e, infelizmente, condicionam o comportamento dos protagonistas do presente.
Uma democracia cuja essência deveria ser a expressão da liberdade dos cidadãos, mas que muitos, infelizmente, se refugiam na clandestinidade, formando milícias digitais para combater as ideias e posições dos outros, prática essa, que é realizada, não de cara destapada pelos seus protagonistas, que preferem, antes, ostentar o estatuto de encapuzados.
Temos uma democracia que tem receio da intromissão de formas não tradicionais de intervenção política constitucionalmente estabelecidas, e que procura de todas as maneiras abafá-las, usando argumentos artificialmente construídos para que essa via de participação política não singre, evitando que se discuta assuntos sérios, sensíveis e de Estado, cujo tratamento exigiria a assunção do sentido de responsabilidade, coragem e conhecimento de causa para que sejam encontrados os melhores caminhos e soluções.
Temos uma democracia cujos eleitores colocam questões aos seus representantes e estes, parecendo amedrontados, refugiam-se em evasivas e formalismos inconsequentes, em nome de uma absoluta e inexpugnável “separação dos poderes”.
A propósito dos fantasma erigidos nas últimas semanas sobre a problemática de separação dos poderes para que, a todo o custo, não fosse dado provimento a uma petição pública promovida por um grupo de cidadãos, vejamos o que diz um respeitável Professor de Direito, Constitucionalista, Juiz do Supremo Tribunal de Justiça do Brasil, Luís Roberto Barroso[2]: “A independência do Judiciário é um dos dogmas das democracias contemporâneas. Em todos os países que emergiram de regimes autoritários, um dos tópicos essenciais do receituário para a reconstrução do Estado de direito é a organização de um Judiciário que esteja protegido de pressões políticas e que possa interpretar e aplicar a lei com isenção, baseado em técnicas e princípios aceites pela comunidade jurídica. Independência e imparcialidade como condições para um governo de leis, e não de homens. De leis, e não de juízes, fique bem entendido”.
«Em Cabo Verde, o Parlamento parece estar proibido de abrir a boca sobre os efeitos de uma decisão do Tribunal Constitucional sobre a Constituição, com o argumento habilidoso de que se estaria a discutir a decisão daquele órgão jurisdicional, e com isso, limitar a soberania desse órgão constitucional»
Governo de leis (e leis democráticas) e não de homens, como bem sublinhou Roberto Barroso, porque só assim é possível evitar arbitrariedades, abusos do poder e o desrespeito pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, e sobretudo o respeito à constituição.
A independência dos tribunais e a liberdade dos magistrados decidirem de acordo com as regras, facto que ninguém questiona, não podem ser transformadas em dogmas de tal modo que nem os seus efeitos podem ser discutidos, e quem os ousar questionar corre um sério risco de cometer um sacrilégio ou de ser simplesmente excomungado por suscitarem questionamentos sobre a forma como o Estado estará a funcionar.
O mundo sempre pulou e avançou com inconformismo, com questionamentos e com críticas, caso assim não fosse, ainda estaríamos submetidos ao pensamento dominante dos tempos passados, segundo o qual era o Sol que girava à volta da Terra e não a Terra à volta do Sol.
Falou-se tanto, nas últimas semanas, em separação dos poderes, e se esqueceu deliberadamente de se referir sobre o equilíbrio e a interdependência entre os poderes, como se o princípio de separação dos poderes significasse a constituição de 3 mundos separados por betões intransponíveis, quando, na realidade, se trata de um único mundo, o Estado, com divisão de funções entre os seus diferentes orgãos, exatamente para evitar cometimento de abusos e excessos de qualquer um deles.
Aliás, se essa visão de separação dos poderes (separação absoluta) prevalecer, o parlamento jamais teria o poder de derrubar decisões do Tribunal Constitucional em sede de fiscalização preventiva da constitucionalidade (nºs 2 e 4 do artigo 279º da Constituição da República), porque se o fizesse estaria a interferir, a desobedecer ou a alterar uma decisão dessa instância jurisdicional.
Jorge Miranda[3] escreve, num trabalho intitulado “Juízes constitucionais e Parlamentos - A experiência de Portugal”, com uma clareza cristalina que “O Parlamento goza sempre, naturalmente, de toda a liberdade para rediscutir todos os problemas políticos, económicos, sociais e culturais ligados a uma norma declarada inconstitucional, de modo a editar outra que seja suscetível de não sofrer o destino da primeira”.
Pois é, em Cabo Verde, o Parlamento parece estar proibido de abrir a boca sobre os efeitos de uma decisão do Tribunal Constitucional sobre a Constituição, com o argumento habilidoso de que se estaria a discutir a decisão daquele órgão jurisdicional, e com isso, limitar a soberania desse órgão constitucional. Parece que o que alguns pretendem, com base nessa tese, é o de condicionar ou limitar a liberdade dos deputados e do parlamento de se pronunciarem soberanamente sobre matérias constitucionais, cuja clarificação poderia conduzir ou a uma alteração ou ajustamento da própria Constituição.
A ideia, que alguns querem vender, é que o problema político e constitucional, que temos entre mãos, pode e deve ser discutido pela sociedade civil e por todos os outros grupos organizados, porém o seu debate está vedado aos orgãos políticos que são, afinal, as únicas entidades com poderes e responsabilidades para o resolver.
Ora, perguntem aos congressistas norte-americanos o que fizeram quando o Supremo Tribunal de Justiça americano decidiu acabar com o direito constitucional ao aborto ou à igualdade no casamento de pessoas do mesmo sexo. Pois, com a decisão do Supremo Tribunal, os congressistas se mobilizaram e passaram a discutir outras garantias constitucionais que poderiam estar ameaçadas, e adotaram medidas legislativas que viabilizassem a realização de tais direitos. Não revogaram a decisão do Supremo, e não podiam fazê-lo, mas atuaram sobre os efeitos da decisão daquele.
Pois bem, isso nos sugere uma coisa: não é a sociedade civil que compete ou que vai dizer ou resolver se nº 1 do artigo 148º continua a ser uma norma/regra constitucional de eficácia plena ou não. Isso só poderá ser equacionado por quem tem o poder de alterar a constituição, decorrente da análise que fizer e da conclusão a que se chegar: não há outra saída ou então o que se pretende é inviabilizar qualquer solução, utilizando o velho esquema de “pescadinha com o rabo na boca” (o que equivale a separação absoluta dos poderes, ainda que, no caso em apreço, segundo os especialistas na matéria “As decisões (do TC) que não declaram a inconstitucionalidade ou a ilegalidade (decisões negativas) – como é o presente caso da resolução 3/X/2021 – não fazem caso julgado, podendo a questão ser reposta no futuro” (Relatório do Tribunal Constitucional Português - Conferências Tripartidas Portugal, Espanha e Itália dos Tribunais Constitucionais – maio, 2001).
O Estado de Cabo Verde tem um problema e, ao que parece, tem dificuldades ou não sabe como o resolver. Curioso é que, em privado, quase ninguém, mas quase ninguém, defende essa decisão do Tribunal Constitucional, mesmo aqueles que não subscreveram a Petição, desde gente com altas responsabilidades no aparelho do Estado, passando por académicos, alunos universitários, profissionais de todas as categorias (médicos, juristas, engenheiros, economistas, simples cidadãos) todos torcem o nariz face a decisão do Tribunal Constitucional de alterar, por sua livre iniciativa, a Constituição da República.
No entanto, há quem teime em não entender ou a fingir que não entendeu a gravidade da situação, porque está mais preocupado em defender o seu time, a sua raiva contra outrem, os laços de interesses diversos, o seu camarada, a sua prole, do que defender a maior conquista desta Nação diaspórica que é a Constituição da República.
Parece evidente que o poder político, involuntariamente, tarda a perceber alguns sinais que estão a emergir da sociedade. Iniciativas cidadãs e manifestações de diversa magnitude revelam alguma inquietude, inconformismo e necessidade de exteriorização energética que, por enquanto, estão a desenvolver-se dentro das fronteiras do institucionalmente permitido.
O poder político não pode ignorar esses sinais, uns claros e outros mais difusos, de que a sociedade está a querer sacudir e a soltar-se da amarra letárgica a que, talvez (in)voluntariamente, se submeteu, sobretudo quando o poder político, por razões aparentemente não compreensíveis, ou se desconeta da realidade social ou, então, cria um mundo à parte, onde não ouve, não vê e não sente, imitando um pouco o Titanic: navegando na direção errada, apesar de todos os avisos, até se embater no iceberg.
É preciso que poderes públicos, todos sem exceção, entendam que numa república democrática o poder pertence ao povo, e que é preciso que todos respeitem a vontade do povo quando este escolhe os seus representantes para gerir a Nação. A Constituição é a emanação da vontade do povo que delega num poder constituinte as atribuições para a sua elaboração e, consequentemente, para traduzir a sua vontade em normas que devem nortear a sociedade. Qualquer alteração da constituição só poderá ocorrer nos termos em que a constituição a estabelecer sob pena, de quem a fizer à sua revelia, de a violentar e de subverter a vontade popular consagrada nela.
Pode-se admitir, e é normal que se aceite, que nos encontramos num processo de transição e que a cultura do Estado de Direito Democrático ainda não se encontre totalmente consolidada, e que, de vez em quando, em resultado disso, possam surgir, aqui e acolá, sinais ou impulsos para o autoritarismo, fruto dessa dinâmica transicional, consubstanciada, como já percebemos, na luta entre o velho e novo. As reminiscências do autoritarismo manifestam-se sempre que haja situação nova, críticas e ousadias que fujam aos padrões toleradas pela ordem vigente, ainda que os mecanismos utilizados para as promover sejam aquelas previstas no quadro legal e institucional.
No entanto, o país não está morto: importará, pois, sublinhar e saudar a ousadia de um grupo de cidadãos que, pela primeira vez em Cabo Verde, tiveram a coragem de se erguer na defesa da Constituição, utilizando mecanismos previstos na lei, para interpelar diretamente os orgãos de soberania sobre questões que se prendem com o funcionamento do Estado, envolvendo o Parlamento e o Tribunal Constitucional.
As pessoas saíram da sua zona de conforto e, unidos à volta da Constituição, quiseram saber se a Constituição continua a ser a lei mãe e se ela é a mesma que o povo outorgou aos constituintes em 2010 para produzir e definir a organização e funcionamento do Estado e da vida coletiva da Nação.
E como bem assinala Roberto Barroso, quando aborda o papel da constituição e dos juízes refere que “O mundo do direito tem suas fronteiras demarcadas pela Constituição e seus caminhos determinados pelas leis. Além disso, tem valores, categorias e procedimentos próprios, que pautam e limitam a atuação dos agentes jurídicos, sejam juízes, advogados ou membros do Ministério Público. Pois bem: juízes não inventam o direito do nada. Seu papel é o de aplicar normas que foram positivadas pelo constituinte ou pelo legislador. Ainda quando desempenhem uma função criativa do direito para o caso concreto, deverão fazê-lo à luz dos valores compartilhados pela comunidade a cada tempo. Seu trabalho, portanto, não inclui escolhas livres, arbitrárias ou caprichosas.
Seus limites são a vontade majoritária e os valores compartilhados.
Na imagem recorrente, juízes de direito são como árbitros desportivos: cabe-lhes valorar fatos, assinalar faltas, validar gols ou pontos, marcar o tempo regulamentar, enfim, assegurar que todos cumpram as regras e que o jogo seja justo. Mas não lhes cabe formular as regras” [4].
Na parte final desta citação, Barroso faz alusão a metáfora utilizada pelo atual Presidente do Supremo Tribunal de Justiça dos Estados Unidos da América, quando na audição que antecedeu a sua nomeação como presidente dessa instância jurisdicional afirmou que os “Juízes são como árbitros desportivos (umpires). Eles não fazem as regras; eles as aplicam. O papel de um árbitro, assim como o de um juiz, é muito importante. Eles asseguram que todos joguem de acordo com as regras. Mas é um papel limitado” [5].
Como muito bem acentuou Roberto Barroso, não compete aos juízes produzir regras, esta competência é dos legisladores.
É este o ponto e o nó da questão que alguns querem meter a cabeça na areia, qual avestruz(?), fingindo que nada aconteceu, e que tudo está bem neste nosso reino.
Hoje, mais do que nunca, verifica-se que o lançamento da petição se justificou e se justifica, uma vez que as dúvidas e inquietações por ela suscitadas mantêm-se e são generalizadas. Os subscritores estão conscientes que fizeram a sua parte e cumpriram com a sua obrigação.
O pedido foi feito e o aviso foi dado a quem de direito.
A história encarregar-se-á de determinar o lado certo, mais tarde ou mais cedo.
«O processo de Amadeu de Oliveira, condenado injustamente por crimes de responsabilidade, está a correr os seus trâmites no Supremo Tribunal de Justiça e a sua defesa, nessa instância, é feita nos termos da lei processual. O que está em causa e que suscitou a petição ao Presidente da República, na realidade, é um outro processo, desencadeado por 15 deputados da Assembleia Nacional, em que o Amadeu de Oliveira não é parte litigante, onde, face às dúvidas que resultaram da aprovação da Resolução 3/X/2021 pela Comissão Permanente da Assembleia Nacional, que curiosamente é constituída por oito deputados, decidiram solicitar ao Tribunal Constitucional a fiscalização abstrata da constitucionalidade dessa resolução.»
Temos, no entanto, de assinalar como muito negativo o facto de se ter deliberadamente associado o processo desencadeado pela Petição Pública e o processo relativo ao Amadeu Oliveira, apesar de todo o esforço feito para que as duas situações não fossem confundidas.
O processo de Amadeu de Oliveira, condenado injustamente por crimes de responsabilidade, está a correr os seus trâmites no Supremo Tribunal de Justiça e a sua defesa, nessa instância, é feita nos termos da lei processual.
O que está em causa e que suscitou a petição ao Presidente da República, na realidade, é um outro processo, desencadeado por 15 deputados da Assembleia Nacional, em que o Amadeu de Oliveira não é parte litigante, onde, face às dúvidas que resultaram da aprovação da Resolução 3/X/2021 pela Comissão Permanente da Assembleia Nacional, que curiosamente é constituída por oito deputados, decidiram solicitar ao Tribunal Constitucional a fiscalização abstrata da constitucionalidade dessa resolução.
A decisão do Tribunal Constitucional sobre esse pedido dos 15 deputados e sobretudo os seus efeitos, em sede da fiscalização da constitucionalidade, é que geraram esse sobressalto cívico, em resultado de fortes dúvidas e inquietações sobre os efeitos produzidos por esta decisão na Constituição da República, facto que levou que mais 2500 cidadãos, através de uma Petição Pública, se dirigissem aos orgãos de soberania a pedir a clarificação do estado constitucional atual, objetivadas em questionamentos precisos e objetivos e que careciam de respostas clarificadoras de quem de direito.
O grande problema que se coloca e que o poder político cabo-verdiano finge não entender ou por receio de qualquer coisa ou porque se está perante um poder político fraco, é que nos encontramos perante uma violação grave do princípio de separação dos poderes, não provocada ou patrocinada pela Petição Pública, mas claramente cometida pelo Tribunal Constitucional, quando em sede de fiscalização da constitucionalidade de uma Resolução da Comissão Permanente da Assembleia Nacional decidiu duas coisas:
1) Não avaliar a constitucionalidade do ato legislativo da CP da Assembleia Nacional de acordo com a constituição, como era sua obrigação e competência constitucional; e
2) Derrogar uma norma/regra constitucional que determina quando e em que circunstâncias a Comissão Permanente poderá substituir a Assembleia Nacional (Plenário).
A revogação, quer parcial ou total, de normas constitucionais só poderá ser feita em sede da revisão constitucional e pelo órgão competente constitucionalmente previsto, sendo claramente uma violação da constituição e do princípio de separação dos poderes, se orgãos outros produzam atos contra essa determinação constitucional.
Segundo Mhardoqueu Geraldo Lima França que cita José Souto Maior Borges, autor da obra “O contraditório no processo judicial: uma visão dialética”, Quando se trata de critérios de validade da lei, recai-se no campo do controlo de constitucionalidade, devendo a lei inconstitucional ser invalidada e retirada do ordenamento jurídico” [6].
Lima França acrescenta, ainda, na mesma obra, que “A jurisprudência, por seu turno, apesar de encontrar algumas decisões contra legem, praticamente ignora o assunto, deixando de usar ou estabelecer critérios racionais/científicos para a tomada dessas decisões nas poucas oportunidades que se têm, uma vez que esta forma de decidir é utilizada em casos excecionais, …., sob pena de cometimento de arbitrariedades e violação ao Estado de Democrático de Direito”.
Os casos excecionais que o autor aponta são aqueles onde se verifica a existência de leis injustas, produzidas em determinados contextos históricos ou políticos e que põem em causa os princípios da justiça. Quando se verifica esse confronto entre a letra da lei e a justiça, deve prevalecer o princípio e o valor da justiça, o que não foi o caso da Resolução 3/X/2021.
Para mais, no nosso país, a Constituição da República não prevê outras formas de verificação da conformidade constitucional, senão através daquelas por ela própria estabelecidas.
O conceito da fiscalização da constitucionalidade, de acordo com a doutrina, consiste, melhor deveria consistir, num exercício em que “a fiscalização da constitucionalidade tanto é uma garantia de observância da constituição, ao assegurar, de forma positiva, a dinamização de sua força normativa, e de forma negativa, ao reagir através de sanções contra a sua violação, como uma garantia preventiva, ao evitar a existência de atos normativos, formal e substancialmente violadores de normas constitucionais” (Gomes Canotilho)[7]
De acordo com Gomes Canotilho, não há outra forma de se aferir da constitucionalidade de uma norma pelo Tribunal Constitucional, que não seja através da verificação da sua conformidade à constituição, sobretudo num Estado que se afirma reger-se pelo princípio da constitucionalidade, e que se declara, solenemente, que o Estado se submete à ela e que os seus atos só serão válidos se estiverem de acordo com a constituição (nºs 2 e 3 do artigo 3º da CRCV).
Acontece, porém, que quando se questiona esta violação concreta do princípio de separação dos poderes de que poucos falam ou que muitos têm receio de falar, o que nos parece é que até dá jeito a alguns prosélitos da fórmula de “olho por olho e dente por dente” que isso assim seja. O silêncio lhes serve de amparo ilusório o que lhes permite, sem remorsos, fazer o seu ajuste de contas, que nem Pilatos, face ao inocente “impostor imaginário” que, por sinal, acabou por morrer na cruz, ao lado de dois ladrões, sendo um a reclamar da sua inocência.
A palavra de ordem, ao que parece, é o de “LAVAR AS MÃOS”III
«O Estado de Cabo Verde tem um problema e, ao que parece, tem dificuldades ou não sabe como o resolver. Curioso é que, em privado, quase ninguém, mas quase ninguém, defende essa decisão do Tribunal Constitucional, mesmo aqueles que não subscreveram a Petição, desde gente com altas responsabilidades no aparelho do Estado, passando por académicos, alunos universitários, profissionais de todas as categorias (médicos, juristas, engenheiros, economistas, simples cidadãos) todos torcem o nariz face a decisão do Tribunal Constitucional de alterar, por sua livre iniciativa, a Constituição da República.»
2. O país parece estar, também, em transição patriótica:
Cabo Verde comemorou no dia 5 de julho último, os seus 48 anos de independência nacional, aproximando-se velozmente do seu cinquentenário.
O dia nacional teria passado despercebido, não fosse a realização de uma acanhada sessão especial da Assembleia Nacional, numa sala muito mal composta em termos de presença do público, com discursos da praxe de todas as cores.
Assistiu-se pela televisão pública a projeção de uma imagem que se situou entre a elitização de um dia nacional que deveria ser marcado pela manifestação popular e um alheamento preocupante do povo de um evento histórico e marcante, daquele mais relevante em qualquer país soberano que se preze.
A Televisão pública, pelo que mostrou, também entrou na festa da indiferença ao realizar uma péssima transmissão da cerimónia, com graves problemas técnicos, para lá de não ter apostado em nenhuma programação especial alusiva à efeméride, ainda que, para tal, pudesse ter que se socorrer do seu arquivo, mas nem isso aconteceu, facto que não deixa de ser sintomático.
Entre o dito e o não dito nos discursos proferidos, parece que também, neste ponto, nos encontramos numa fase de transição.
Os discursos proferidos andaram entre a exaltação do dia e os feitos históricos dos protagonistas e a proclamação da epopeia colonialista e escravocrata;
Navegou-se entre ter história e negar a história;
Entre cultivar e ensinar os valores históricos e o seu julgamento de acordo com a narrativa que se quer impor;
Entre promover o conhecimento e a compreensão dos fenómenos históricos e a realização do revisionismo histórico, como se fosse possível fazer a história sem o passado, ou pior, contra o passado;
Andamos entre ter pátria e os valores patrióticos e, simultaneamente, negar ou apropriar-se do património comum construído por gerações mais distintas do povo cabo-verdiano sob as mais diversas formas;
Estamos, pois, em transição!
O dia nacional não foi assinalado nas escolas com os alunos, cuja aprendizagem da história e dos valores a ela associada são fundamentais para garantir a existência, a sobrevivência e continuidade da nação com a sua identidade própria e com destino partilhado.
Temos de aprender e a saber valorizar aqueles que deram a vida pela pátria;
Que perderam os melhores períodos da sua vida a lutar para que hoje houvesse uma pátria para ser exaltada;
Que abandonaram os estudos, as universidades e o trabalho para participarem na luta armada ou para entrarem na clandestinidade;
Que foram presas, deportadas ou que fizeram resistência sob diversas formas para o país hoje fosse livre e soberano.
Reconhecer isso e dar os devidos louvores a essas ilustres figuras só engrandece a quem o faz, e diminuto e pequeno ficam todos aqueles de espirito inferior que são incapazes de reconhecer o mérito a quem o tem.
Estamos nessa transição pautada por uma relação dicotómica entre o sim e o não, entre tudo e o nada, entre ser e o não ser que poderá nos conduzir a uma triste condição de um país sem história e sem referências históricas.
Esta geração, que não vivenciou alguns episódios menos bons da nossa história recente, tem obrigação de ter uma postura de maior abertura, de mais tolerância e de menos antagonismos, muitas vezes, artificialmente criados.
O país não poderá continuar eternamente nessa transição louca e nesse desassossego permanente com a sua história e com seu passado;
É preciso e é um imperativo que façamos uma paz com a nossa história e com o nosso passado, para que possamos concentrar a nossa atenção e esforço no presente e para que possamos projetar com otimismo e determinação o nosso futuro.
Penso que Cabo Verde não terá necessidade de instituir uma “Comissão de Verdade e Reconciliação”, para que possamos fazer a exorcização e expulsar todos os demónios que povoam e pululam o nosso imaginário, porque, afinal, somos um povo de morabeza, e é preciso levar também a morabeza à política.
O país não poderá ficar refém ilegitimamente quer da apropriação da legitimidade histórica de uns, quer da apropriação da legitimidade democrática de outros: o país é de todos e todos devemos unir-se em torno dos objetivos essenciais do desenvolvimento deste país e desta Nação.
Todos os países hoje democráticos, e que nos são próximos, tiveram no passado as suas vicissitudes históricas, às vezes, marcadas por episódios tristes e dramáticos, mas todos conseguiram superar os seus “traumatismos” históricos, em nome de um bem maior: a Nação e o bem comum.
Bibliografia:
] FRANÇA, Mhardoqueu Geraldo Lima: “As decisões contrárias às leis na teoria de Robert Alexy” – Editora Dialética – 2020
[2] BARROSO, Luís Roberto: “Constituição, Democracia e Supremacia Judicial” - Revista Jurídica da Presidência | Brasília, Vol. 12 n° 96 | Fev/Mai 2010
[3] MIRANDA, Jorge: “Juízes constitucionais e Parlamentos: A experiência de Portugal” - Edit. Instituto de Ciências Juridico-Políticas (CJP) e Centro de Investigação de Direito Público (CIDP)
[4] BARROSO, Luís Roberto: idem
[5] BARROSO, Luís Roberto: idem
[6] FRANÇA, Mhardoqueu Geraldo Lima: idem
[7] CANOTILHO, Gomes: “Direito constitucional e teoria da constituição” – 7 ed. Coimbra: Almedina, 2003
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