
"Do aeródromo ao centro, vinte e cinco curvas de hiace. Contei-as uma a uma, como quem reza. Quando revelei esse número à senhora da pensão Paraíso, ela ficou espantada: — Nunca tinha pensado nisso, disse. E eu pensei: é sempre o estranho quem revela o óbvio. Sou da espécie que repara no que não aparece na fotografia. Foi assim que, numa noite qualquer, percebi que entre centenas de pessoas, só uma estava verdadeiramente bem vestida: Trinité, a única beleza deliberada daquela rua em frente ao polidesportivo. Talvez homem, talvez mulher, talvez apenas presença. Em São Nicolau, Trinité está quase a ofuscar a estátua, e a fama de Baltasar Lopes da Silva. Quase."
Para se entrar em São Nicolau, não basta apanhar um barco no Tarrafal nem um avião com escala no Mindelo em direção e Ribeira Brava. É preciso, antes de tudo, merecê-la. A ilha não se abre a qualquer um. Exige uma espécie de confirmação de alma, como se a própria terra testasse quem chega. Eu entrei não pela via marítima, nem pela aérea, mas por essa terceira porta: a constatação viva de que o que se diz do seu povo é verdade, calmo, educado, com ouvidos abertos como janelas voltadas ao mar.
Depois disso, fiz-me perguntas. Qual será, afinal, o caminho menos árido, menos estreito, menos anestesiado, para se sentir um coração verdadeiramente apertado? Um coração como o das crianças de Gaza, onde a fome mora nos olhos e a guerra soletra sílabas de medo à volta da inocência. Ou como o dos velhos de ombros gastos pelo tempo, que esperam, sem alarde, o milagre de um pão que tarda e, às vezes, nunca chega. Haverá, neste mundo desencontrado, um beco mais humano? Uma rua mais gentil? Um chão onde a dor não seja fardo solitário, mas linguagem comum?
Há muito que ensaiava visitar esta ilha. A terra de João Lopes, José Lopes, Baltasar e tantos outros que, entre curvas de palavras e serranias da memória, ajudaram a escrever Cabo Verde. Não é que a viagem entre Praia e Mindelo tenha sido atribulada, mas carrega-se sempre uma preocupação. Um medo com tempo de faltas e atrasos, como se o prazo tivesse aprendido a falhar em certas geografias da navegação inter-ilhas.
No Mindelo, parámos brevemente. Cinco minutos apenas. Tempo suficiente para o desencontro do que poderia ter sido um café quente e acabou por ser um pão seco com qualquer coisa. Comi-o com a sensação de ter sido enganado. E, ainda assim, senti-me saciado, talvez pelo próprio engano. As lanchonetes dos aeroportos vendem mais do que comida: vendem desistência. Vendem pressa sem carácter. É por isso que, nos aeroportos, a alma perde parte do seu nome.
São Nicolau recebeu-me como se eu já lá tivesse vivido. O Tarrafal e a Ribeira Brava são espelhos de si próprios: no verão e carnaval, o rumor alegre das férias escolares; no resto do ano, o silêncio e um ruído vegetal que cresce para dentro.
Ao entrar na ilha por via aérea, sobrevoei o céu mais próximo da terra que alguma vez vi. Uma coberta azul tão baixa que parecia deitar-se sobre o cimo das montanhas. Do aeródromo ao centro, vinte e cinco curvas de hiace. Contei-as uma a uma, como quem reza. Quando revelei esse número à senhora da pensão Paraíso, ela ficou espantada: — Nunca tinha pensado nisso, disse. E eu pensei: é sempre o estranho quem revela o óbvio.
Sou da espécie que repara no que não aparece na fotografia. Foi assim que, numa noite qualquer, percebi que entre centenas de pessoas, só uma estava verdadeiramente bem vestida: Trinité, a única beleza deliberada daquela rua em frente ao polidesportivo. Talvez homem, talvez mulher, talvez apenas presença. Em São Nicolau, Trinité está quase a ofuscar a estátua, e a fama de Baltasar Lopes da Silva. Quase.
Sim, porque a estátua está lá. Imóvel. Talhada em dignidade. Escutando, todos os dias, o mesmo gato preto e branco que lhe faz companhia. O presidente da câmara, que, aliás, é o mesmo que vi na televisão, talvez tenha, na estátua, o seu único assessor silencioso.
Visitei a Biblioteca Municipal. Ou melhor, uma sala com livros, dentro de uma escola. A mesma extensão da vergonha nacional que paira sobre tantas bibliotecas municipais e escolares do país. Os presidentes das camaras não ligam para as bibliotecas. Perguntei pelas obras de João Lopes Filho, José Lopes, Baltasar Lopes. Nada. Nem livros, nem leitores. A funcionária presente era estagiária, vinda de um curso de cozinha. A vereadora, soube depois, colocou-a ali “por enquanto”, por causa de um problema de saúde. Parece anedota. Mas é espelho.
Perguntei-lhe se conhecia José Luís Tavares. Ela assustou-se. Não por reconhecê-lo, mas por ter de fingir que sim. Tomei nota mental: o maior poeta vivo do país é um desconhecido na terra dos grandes letrados. Como se Camões fosse ignorado em Lisboa. Como se Chiquinho fosse apenas nome de praça. Como se o livro tivesse morrido, e a sua lápide estivesse ali, entre pó, abandono e um menino que fingia ler o que não compreendia.
A biblioteca, essa metáfora nacional, falha como política, como cultura e como consciência. E não é só Ribeira Brava: é o país inteiro. Faltam planos municipais de leitura. Falta formação de bibliotecários enquanto agentes educativos e culturais. Faltam livros de autores nacionais nas prateleiras públicas. Falta, sobretudo, amor pelo que somos quando lemos.
O silêncio das noites em Ribeira Brava não é ausência: é a presença absoluta do som que se cala. A arquitetura, na ilha é a polícia da pulcritude e vigia, parece desenhada por Niemeyer depois de um sonho com esta ínsula durante a viagem mais rápida do mudo. Há ali qualquer coisa de suave e circular, como se o tempo tivesse aprendido a andar de mansinho.
E lembrei-me do gato, o que visita Baltasar Lopes todas as tardes. Esse gato sabe mais sobre a ilha do que muitos homens. É uma espécie de filósofo do entardecer. Conselheiro dos que não têm quem os escute. E, como Trinité, talvez também presidente de alguma coisa.
 Os comentários publicados são da inteira responsabilidade do utilizador que os escreve. Para garantir um espaço saudável e transparente, é necessário estar identificado.
 O Santiago Magazine é de todos, mas cada um deve assumir a responsabilidade pelo que partilha. Dê a sua opinião, mas dê também a cara.
 Inicie sessão ou registe-se para comentar.
Comentários