Trinité é Presidenta em São Nicolau - Parte I
Colunista

Trinité é Presidenta em São Nicolau - Parte I

"Do aeródromo ao centro, vinte e cinco curvas de hiace. Contei-as uma a uma, como quem reza. Quando revelei esse número à senhora da pensão Paraíso, ela ficou espantada: — Nunca tinha pensado nisso, disse. E eu pensei: é sempre o estranho quem revela o óbvio. Sou da espécie que repara no que não aparece na fotografia. Foi assim que, numa noite qualquer, percebi que entre centenas de pessoas, só uma estava verdadeiramente bem vestida: Trinité, a única beleza deliberada daquela rua em frente ao polidesportivo. Talvez homem, talvez mulher, talvez apenas presença. Em São Nicolau, Trinité está quase a ofuscar a estátua, e a fama de Baltasar Lopes da Silva. Quase."

Para se entrar em São Nicolau, não basta apanhar um barco no Tarrafal nem um avião com escala no Mindelo em direção e Ribeira Brava. É preciso, antes de tudo, merecê-la. A ilha não se abre a qualquer um. Exige uma espécie de confirmação de alma, como se a própria terra testasse quem chega. Eu entrei não pela via marítima, nem pela aérea, mas por essa terceira porta: a constatação viva de que o que se diz do seu povo é verdade, calmo, educado, com ouvidos abertos como janelas voltadas ao mar.

Depois disso, fiz-me perguntas. Qual será, afinal, o caminho menos árido, menos estreito, menos anestesiado, para se sentir um coração verdadeiramente apertado? Um coração como o das crianças de Gaza, onde a fome mora nos olhos e a guerra soletra sílabas de medo à volta da inocência. Ou como o dos velhos de ombros gastos pelo tempo, que esperam, sem alarde, o milagre de um pão que tarda e, às vezes, nunca chega. Haverá, neste mundo desencontrado, um beco mais humano? Uma rua mais gentil? Um chão onde a dor não seja fardo solitário, mas linguagem comum?

Há muito que ensaiava visitar esta ilha. A terra de João Lopes, José Lopes, Baltasar e tantos outros que, entre curvas de palavras e serranias da memória, ajudaram a escrever Cabo Verde. Não é que a viagem entre Praia e Mindelo tenha sido atribulada, mas carrega-se sempre uma preocupação. Um medo com tempo de faltas e atrasos, como se o prazo tivesse aprendido a falhar em certas geografias da navegação inter-ilhas.

No Mindelo, parámos brevemente. Cinco minutos apenas. Tempo suficiente para o desencontro do que poderia ter sido um café quente e acabou por ser um pão seco com qualquer coisa. Comi-o com a sensação de ter sido enganado. E, ainda assim, senti-me saciado, talvez pelo próprio engano. As lanchonetes dos aeroportos vendem mais do que comida: vendem desistência. Vendem pressa sem carácter. É por isso que, nos aeroportos, a alma perde parte do seu nome.

São Nicolau recebeu-me como se eu já lá tivesse vivido. O Tarrafal e a Ribeira Brava são espelhos de si próprios: no verão e carnaval, o rumor alegre das férias escolares; no resto do ano, o silêncio e um ruído vegetal que cresce para dentro.

Ao entrar na ilha por via aérea, sobrevoei o céu mais próximo da terra que alguma vez vi. Uma coberta azul tão baixa que parecia deitar-se sobre o cimo das montanhas. Do aeródromo ao centro, vinte e cinco curvas de hiace. Contei-as uma a uma, como quem reza. Quando revelei esse número à senhora da pensão Paraíso, ela ficou espantada: — Nunca tinha pensado nisso, disse. E eu pensei: é sempre o estranho quem revela o óbvio.

Sou da espécie que repara no que não aparece na fotografia. Foi assim que, numa noite qualquer, percebi que entre centenas de pessoas, só uma estava verdadeiramente bem vestida: Trinité, a única beleza deliberada daquela rua em frente ao polidesportivo. Talvez homem, talvez mulher, talvez apenas presença. Em São Nicolau, Trinité está quase a ofuscar a estátua, e a fama de Baltasar Lopes da Silva. Quase.

Sim, porque a estátua está lá. Imóvel. Talhada em dignidade. Escutando, todos os dias, o mesmo gato preto e branco que lhe faz companhia. O presidente da câmara, que, aliás, é o mesmo que vi na televisão, talvez tenha, na estátua, o seu único assessor silencioso.

Visitei a Biblioteca Municipal. Ou melhor, uma sala com livros, dentro de uma escola. A mesma extensão da vergonha nacional que paira sobre tantas bibliotecas municipais e escolares do país. Os presidentes das camaras não ligam para as bibliotecas. Perguntei pelas obras de João Lopes Filho, José Lopes, Baltasar Lopes. Nada. Nem livros, nem leitores. A funcionária presente era estagiária, vinda de um curso de cozinha. A vereadora, soube depois, colocou-a ali “por enquanto”, por causa de um problema de saúde. Parece anedota. Mas é espelho.

Perguntei-lhe se conhecia José Luís Tavares. Ela assustou-se. Não por reconhecê-lo, mas por ter de fingir que sim. Tomei nota mental: o maior poeta vivo do país é um desconhecido na terra dos grandes letrados. Como se Camões fosse ignorado em Lisboa. Como se Chiquinho fosse apenas nome de praça. Como se o livro tivesse morrido, e a sua lápide estivesse ali, entre pó, abandono e um menino que fingia ler o que não compreendia.

A biblioteca, essa metáfora nacional, falha como política, como cultura e como consciência. E não é só Ribeira Brava: é o país inteiro. Faltam planos municipais de leitura. Falta formação de bibliotecários enquanto agentes educativos e culturais. Faltam livros de autores nacionais nas prateleiras públicas. Falta, sobretudo, amor pelo que somos quando lemos.

O silêncio das noites em Ribeira Brava não é ausência: é a presença absoluta do som que se cala. A arquitetura, na ilha é a polícia da pulcritude e vigia, parece desenhada por Niemeyer depois de um sonho com esta ínsula durante a viagem mais rápida do mudo. Há ali qualquer coisa de suave e circular, como se o tempo tivesse aprendido a andar de mansinho.

E lembrei-me do gato, o que visita Baltasar Lopes todas as tardes. Esse gato sabe mais sobre a ilha do que muitos homens. É uma espécie de filósofo do entardecer. Conselheiro dos que não têm quem os escute. E, como Trinité, talvez também presidente de alguma coisa.

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