A propósito da polémica à volta dos resultados da sondagem sobre a qualidade da democracia e boa governação
Ponto de Vista

A propósito da polémica à volta dos resultados da sondagem sobre a qualidade da democracia e boa governação

Há algumas décadas os cidadãos têm estado anestesiados com uma governação maravilhosa reclamada por quem, momentaneamente, está nas rédeas do poder até que o povo seja chamado a dizer da sua justiça sobre a boa ou má governação do partido incumbente! Na realidade os números macroeconómicos não são tão brilhantes como defendem os acérrimos militantes, amigos e camaradas.

A inusitada polémica, porém, desnecessária, uma vez que a empresa responsável pelo estudo tem um excelente track record na elaboração de estudos semelhantes para entidades públicas e privadas assim como para organizações internacionais. Portanto, tem a sua credibilidade afirmada no mercado por mérito próprio, da sua equipa, que não pode ser desconsiderada por fundamentalismos partidários. Ainda mais, quando a bengala tem, também, os seus telhados de vidro e é responsável, em grande medida por esse inebriamento coletivo e alguma dose de bazofaria. Alguns comentadores têm sustentado as suas análises nos dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) para suspeitarem da fiabilidade e razoabilidade dos resultados do referido estudo.

Antes de mais temos de reconhecer que o INE evoluiu de forma impressionante nas últimas décadas, mesmo com parcos recursos, como é natural no nosso país, graças à dedicação, acreditamos, dos seus quadros técnicos e administrativos como dos sucessivos dirigentes. Graças a este processo evolutivo temos, hoje, dados estatísticos de melhor qualidade em relação àqueles que tínhamos há décadas atrás. Mas, não podemos a partir daí colocar o INE num pedestal como entidade que, supostamente, tenha atingido a Excelência estatística cujos produtos e resultados estejam acima de quaisquer questionamentos e escrutínio. Estamos muito longe disso se compararmos com institutos congéneres de países desenvolvidos por razões óbvias.

Porque será que 65% dos cabo-verdianos “considera que o país vai na direção errada”?

Porque será que cerca de 54% dos cabo-verdianos “considera que as condições económicas do país são muito más”?

Porque será que cerca de 84% dos cabo-verdianos “considera que os políticos pouco ou nada fazem para ouvir as suas opiniões e preocupações”?

Os dois primeiros resultados da sondagem têm diversas explicações, mas a mais provável é de ordem económico-social. Antes de tentarmos dar a nossa modesta explicação para esses resultados convém recordar a situação do país desde a independência.

O país enfrenta desequilíbrios estruturais que perduram desde da independência e outros que se agravaram nas últimas décadas:

i)                    Um défice externo estrutural;

ii)                   Um défice interno elevado, superior a 20%. O Produto Interno Bruto (PIB) cobre apenas cerca de 80% da procura interna;

iii)                 Poupança interna negativa, fraca capacidade de investimento sendo o seu financiamento coberto pelas transferências externas (organismos internacionais bilateral e multilateral);

iv)                 Fraca ou incipiente capacidade produtiva.

v)                   Elevada dívida pública

 

O PIB real do país cresceu durante estes quase 50 anos de independência entre 5,5-6%, em média. Mas, esse valor depende da série de dados que for tida em consideração. Como se sabe com a alteração do ano base para a contabilidade das contas nacionais por duas vezes em menos de uma década (2007 e 2015) houve uma verdadeira rutura das séries estatísticas. Há pelo menos 3 opções de série para cálculo dos agregados macroeconómicos. Mas, o que importa realçar, neste caso, é a discrepância das taxas de crescimento do PIB real entre o INE e o Fundo Monetário Internacional.

Fonte: Elaboração própria com base nos dados do INE

 

Como se pode ver as diferenças entre as taxas de crescimento estimadas pelo FMI têm vido a diminuir ao longo dos anos fruto da melhoria da qualidade de produção estatística do INE.

No entanto, este crescimento médio de 5-6% foi insuficiente para criar emprego para uma população em crescimento que esconde enormes problemas.

Ora, segundo o Censo de 2021, a Taxa de Atividade foi de 61,7%. Esta taxa indica para um determinado país, o nível geral de participação da população ativa no mercado de trabalho. A média dos últimos anos é de, aproximadamente, 57%, portanto, reflete um nível de participação da população com mais de 15 anos, baixíssima. A outra face da moeda é um elevado nível de desemprego. Estas duas variáveis estão estreitamente correlacionadas. O número de população inativa em 2021 é mais de 135.000 indivíduos e, em 2025, deverá ter atingido os 150.000!

Mesmo admitindo que os cálculos e a metodologia estatística de inquérito foi aplicada corretamente, não é pelo fato dos inquiridos terem respondido que não estavam à procura ativa de emprego na semana anterior à semana de referência que devemos aceitar passivamente que cerca de 38/40% da população com mais de 15 anos, não querem trabalhar. Se tomarmos em consideração os indivíduos com mais de 25 anos e menos de 60 anos, que são cerca de 46.893 indivíduos (21,6%), não é razoável pensar e aceitar que não querem trabalhar, isto é, estão realmente numa situação de desemprego.

Fonte: Elaboração própria com base nos dados do INE

 

Assim, estimamos que a taxa real de desemprego seja superior a 30% (21,6%+10,7%) e a taxa de subemprego superior a 10%. E o resultado de 1/3 da população na situação de pobreza é explicada pelo elevado nível de desemprego e subemprego. Se o nível de desemprego fosse de 10,7% o nível de pobreza seria menor, definitivamente.

Fonte: Elaboração própria com base nos dados do INE

A subestimação do nível de desemprego e subemprego tem criado a ilusão de que a economia vai bem e a todo o vapor. Assim, o INE tem contribuído para que os políticos e o Governo estarem convencidos que o país vai bem e recomenda-se. Errado!

Os resultados do estudo da Afrosondagem corroboram esta análise da situação económica e social do país, isto é, a situação do país não é boa, longe disso!

Podemos, ainda, incluir outras dimensões tais como as finanças públicas cujo orçamento é absorvido, essencialmente, pelas despesas de funcionamento e cada vez mais pelos encargos da dívida pública com tendência para o aumento do défice público. Sem margem para o financiamento do investimento público e considerando a aversão ao risco do sector privado no investimento no sector produtivo a situação tem tendência para a deterioração.

Na nossa modesta opinião, a sondagem reflete corretamente a opinião dos cabo-verdianos que se encontram numa situação de desespero devido ao desemprego e ausência de perspetivas de melhoria das suas condições de vida.  Aliás, num outro estudo da mesma empresa, indicava que mais de 50% dos cabo-verdianos estavam disponíveis para emigrarem se fosse possível.

Citando James Carville: “É a economia, estúpido!”

 

* Economista e Empresário

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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