Cabo Verde está num precipício. A crise de credibilidade política alimenta o risco de soluções autoritárias ou de populismos vazios. No entanto, o país tem histórico de resiliência. Foi a força coletiva que ergueu uma democracia num arquipélago sem recursos naturais. É essa mesma força que pode resgatá-la. A mudança começa quando um cidadão exige transparência, quando um jovem candidato independente desafia as máquinas partidárias, e quando a sociedade percebe que a política não é um espetáculo distante, mas o alicerce do pão, da saúde e da dignidade. Como escreveu o poeta cabo-verdiano Ovídio Martins: “Não há ilhas para ilhar o sonho.” Resta saber se o sonho de uma política renovada ainda habita o arquipélago.
A política cabo-verdiana, outrora celebrada como exemplo de estabilidade democrática em África, vive hoje um paradoxo: mantém a forma institucional, mas perde substância. O país que surpreendeu o mundo ao transitar pacificamente para o multipartidarismo nos anos 1990 hoje enfrenta uma erosão silenciosa — não de golpes ou violência, mas de desencanto, clientelismo e uma desconexão crescente entre elites políticas e cidadãos.
A herança histórica e o peso da estagnação
Cabo Verde construiu a sua identidade política na resistência anticolonial e na utopia de uma sociedade igualitária. No entanto, após décadas de alternância entre o PAICV e o MPD, os dois principais partidos, instalou-se um ciclo de gestão, não de transformação. A política tornou-se um jogo de cargos, não de ideias. Prova disso é a repetição de promessas não cumpridas: desde a descentralização efetiva (ainda engessada pela centralização do poder em Praia) até o combate à corrupção, que avança a passos tímidos, apesar de vários casos emblemáticos que expôs redes de favorecimento no setor público.
Corrupção e clientelismo: o câncer da confiança
Embora Cabo Verde não esteja entre os países mais corruptos do mundo (ocupando a 35.ª posição no Índice de Perceção de Corrupção de 2023), a corrupção de baixa intensidade mina a credibilidade do sistema. Licitações manipuladas, nepotismo em cargos públicos e uso partidário de recursos estatais são denúncias frequentes, mas raramente resultam em punições exemplares. O clientelismo, por sua vez, substitui o mérito: projetos sociais e empregos públicos são distribuídos como moeda de troca eleitoral, perpetuando dependência e apatia.
A polarização vazia e a crise de representatividade
Nos últimos anos, a política cabo-verdiana tem se polarizado em torno de personalidades, não de projetos. Discussões essenciais — como o combate às desigualdades entre ilhas, o impacto das mudanças climáticas na economia ou a reforma do sistema educativo, bem como do sistema de saúde — são ofuscadas por brigas retóricas e ataques pessoais. As redes sociais, em vez de ampliar o debate, tornaram-se palco de desinformação e tribalismo, com perfis anónimos financiados por interesses obscuros a inflamar divisões.
Ao mesmo tempo, a juventude, que representa mais de 60% da população, sente-se excluída. A taxa de desemprego jovem ronda os 20%, e muitos veem a emigração como única saída. Quando os partidos não dialogam com essa geração (a não ser em épocas eleitorais), alimenta-se um círculo vicioso: desinteresse → abstenção → perpetuação do status quo.
Caminhos para a renovação: mais ética, menos egos
A degradação política não é irreversível, mas exige mudanças estruturais:
Fortalecimento institucional: A Justiça precisa de independência real para investigar casos de corrupção, sem interferência de “compadrios” partidários. Órgãos como a Polícia Judiciária e o Tribunal de Contas devem ter recursos e autonomia.
Reforma do financiamento partidário: limitar doações privadas e tornar públicas as fontes de financiamento, evitando que grupos económicos sequestrem a agenda política.
Inclusão da juventude: Cotas para jovens em listas eleitorais e criação de espaços de participação não partidária, como conselhos municipais juvenis.
Educação cívica: reviver o espírito crítico através de programas escolares e comunitários que expliquem o valor do voto e da accountability (prestação de contas).
Média responsável: combater o sensacionalismo e investir em jornalismo investigativo, que priorize a verdade, fundamentado no interesse da justiça social e defesa dos direitos humanos.
Conclusão: A política como serviço, não como troféu
Cabo Verde está num precipício. A crise de credibilidade política alimenta o risco de soluções autoritárias ou de populismos vazios. No entanto, o país tem histórico de resiliência. Foi a força coletiva que ergueu uma democracia num arquipélago sem recursos naturais. É essa mesma força que pode resgatá-la.
A mudança começa quando um cidadão exige transparência, quando um jovem candidato independente desafia as máquinas partidárias, e quando a sociedade percebe que a política não é um espetáculo distante, mas o alicerce do pão, da saúde e da dignidade. Como escreveu o poeta cabo-verdiano Ovídio Martins: “Não há ilhas para ilhar o sonho.” Resta saber se o sonho de uma política renovada ainda habita o arquipélago.
Nota: Este artigo combina dados concretos (ex.: índices de corrupção, taxas de desemprego) com análise crítica, evitando tanto o pessimismo estéril quanto o otimismo ingénuo. O objetivo é fomentar reflexão e ação, não apenas denúncia.
Comentários
Aguinaldo Monteiro, 17 de Fev de 2025
UM SABIO OLHAR SOBRE A NOSSA MADRASTA REALIDADE! SUA IDEIA NOS GUIA A DAR NOVA FORMA AO QUE ESTAMOS A FAZER E QUANDO ESTAMOS FAZENDO, POSSIBILITANDO INTERFERIR NA SITUAÇÃO EM CONCRETA.
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Evora Da Silva Marcelino, 16 de Fev de 2025
Gosto. E espero por mais
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