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Pan-africanismo e lealdade bipartida (ou cissiparidade pátrida) entre os letrados nativistas e regionalistas caboverdianos e entre os intelectuais nacionalistas e independentistas cabverdianos – Continuação Parte I
Cultura

Pan-africanismo e lealdade bipartida (ou cissiparidade pátrida) entre os letrados nativistas e regionalistas caboverdianos e entre os intelectuais nacionalistas e independentistas cabverdianos – Continuação Parte I

Anote-se ... que as expressões mais manifestamente afro-crioulas da cultura caboverdiana são referidas em vários poemas de Jorge Barbosa e de Osvaldo Alcântara - pseudónimo literário para a poesia de Baltasar Lopes da Silva-, tendo sido Jorge Barbosa ademais o autor do poema “África”, trazendo ao palco da História uma África muito expectante da sua hora-clarim, bem como de vários poemas de denúncia anti-colonial, do trabalho serviçal nas roças de São Tomé e Príncipe bem como contra o segregacionismo racista anti-negro nos Estados Unidos, escritos sobretudo nos anos sessenta do século passado e mantidos em parte inéditos, em razão da vigência da censura colonial-fascista. Actualmente, poucos são os poetas caboverdianos nos quais se não detecte uma vertente afro-crioulista, anti-racista e fraternitária na sua apreensão e perceção da génese e da configuração actual da crioulidade caboverdiana.

(PRIMEIRA PARTE-CONTINUAÇÃO)

1.2. Interessante ainda é que nalguns nativistas a acima referida lealdade bipartida - ou  cissiparidade pátrida, na terminologia preferida por Manuel Ferreira - se conjugou tanto com  uma vertente hesperitana ou arsinária, como foram os casos clássicos da poesia cultivada pelos letrados José Lopes da Silva e Pedro Monteiro Cardoso na sua busca de uma origem mítica para Cabo Verde alternativa à matriz portuguesa dos descobrimentos marítimos quinhentistas, como também com uma vertente pan-africanista.

Pedro Cardoso é o exemplo mais representativo e paradigmático dessa vertente pan-africanista do ideário nativista caboverdiano. De tal modo é assim que se pode afirmar que a poesia caboverdiana da afro-crioulitide (ou, mais, impropriamente dito, da negritude ou/e da africanitude crioula, da negro-crioulitude) começou por ser uma poesia que se alimentava das mesmas ambiguidade e ambivalência identitárias, características do pan-africanismo nativista, republicano e luso-patriota dos letrados caboverdianos.

Pedro Cardoso, o Afro do seu muito profícuo pseudónimo para uma parte da sua produção jornalística, apóstolo do socialismo e de Marx, “o mestre venerando” (como consta do poema “Primeiro de Dezembro” de louvação do movimento sindical caboverdiano, in Jardim das Hespérides, Famalicão, Tipografia “Minerva” de Cruz, Sousa & Barbosa, Lda, 1926), que, procurando integrar-se na transpátria lusitana (na pátria monumental portuguesa, como prefere dizer Gabriel Fernandes), enquanto português de lei e de pleno direito, igualmente combateu pela igualdade entre brancos, mestiços e negros e entre “portugueses europeus e portugueses africanos”.  É esse mesmo Pedro Cardoso que também pugnou, em especial nos seus célebres poemas “Ao Egipto” (in Folclore Cabo-Verdiano, editado em 1933 com re-edição em 1986 da Solidariedade Cabo-Verdiana, organizada por Luís Silva com prefácio de Alfredo Margarido) e “Ode a África” (constante do supra-referenciado Jardim das Hespérides), e na sua coluna “A Manduco” do jornal praiense A Voz de Cabo Verde (Praia, Março de 1911 - Setembro de 1918) pelo orgulho da África mediterrânica, faraónica e esfíngica, da Cartago de Aníbal, da Abissínia (Etiópia) do Negus Menelik, da África do Norte resistente de Abdel Kader, da raça negra do Haiti alevantada com Toussaint Louverture contra o colonial-esclavagismo, bateu-se enquanto membro encartado do Partido Socialista Português pela justiça social e pela disseminação, numa perspectiva positivista, do saber e da instrução, enquanto baluartes da “civilização contra a barbárie” (na certeira interpretação do estudioso norte-americano Russel Hamilton, constante do seu livro Literatura Africana, Literatura Necessária, Volume II, Edições 70, Lisboa, 1984) e, finalmente, exaltou-se, exultando-se, pela valorização da mátria caboverdiana, da língua e das nossas raízes crioulas, ainda que com muitas reservas em relação às nossas manifestações culturais mais ostensivamente afro-crioulas (como o batuco e a tabanca de Santiago, no entanto recolhidas no seu Folclore Cabo-Verdiano, e, por isso, implicitamente valorizadas como manifestações culturais caboverdianas legítimas), ou em nítida contraposição às nossas matrizes afro-negras, consideradas gentílicas.

A intransigente defesa do crioulo e a sua valorização poética mediante a estilização do folclore poético da sua ilha natal do Fogo constitui uma das vertentes mais notáveis e assinaláveis da faceta de intelectual de Pedro Cardoso. A poesia em crioulo desse nativista permite detectar as suas preocupações de justiça social e de dissecação da componente racialista da conflitualidade social caboverdiana da altura, como o atestam alguns textos poéticos publicados no acima referido Folclore Cabo-Verdiano e em outras obras da sua lavra.

Neste contexto, é de se destacar a luta extenuante desse grande nativista, do “Langston Hughes cabo-verdiano” (segundo qualificação de Teixeira de Sousa em entrevista a Michel Laban (Cabo Verde-Encontro com Escritores, Primeiro Volume, Fundação António de Almeida, Porto, s/d, 1989), na sua equiparação  da luta dos negros americanos pela real igualdade de direitos com a demanda cívico-política dos caboverdianos, em particular de Pedro Cardoso), esse importante precursor, com António Nunes, do nacionalismo caboverdiano no domínio da poesia,  em razão da sua pugna pela inclusão cívica e social da componente racial negra da nossa sociedade, particularmente pertinente se levarmos em consideração a exclusão social e a anatemização como preto-negros dos negros e mulatos pobres da ilha do Fogo, o derradeiro e quase inexpugnável santuário do racismo professado com especiais denodo e fervor pela  oligarquia branca crioula caboverdiana dessa mesma ilha. Tal combate inseria, como referido, uma componente de referência pan-africanista e/ou de exaltação e de recorrência rememorativa às glórias passadas da África cartaginesa e da África esfíngica, faraónica e mediterrânica (como referíramos já no ensaio “A Poética Caboverdeana e Os Caminhos da Nova Geração”, publicado no nº duplo 7/8 da revista de letras, artes e cultura Fragmentos, de Dezembro de 1991) e do seu crucial papel na formação da cultura greco-latina e da cultura euro-ocidental, bem como o desconforto intelectual e civilizacional provocado pelo jugo colonial ocidental.

Ainda assim, não pode o pan-africanismo de Pedro Cardoso obnubilar a sua compreensão dos Negros no duplo sentido de raça martirizada que escavou as bases para a edificação dos alicerces civilizacionais do mundo, mas também “do sertão os rudes e tisnados filhos/Almas de neve em corpos de carvão”, necessitados, para a sua entrada na modernidade, da instrução e das luzes missionárias da civilização cristã e ocidental, simbolizada nos predicadores da palavra da compaixão e do amor ao próximo de Jesus Cristo, nas lusas quinas e na língua de Camões. Assim, permanecia tal compreensão eivada de preconceitos jacobinos e assimilacionistas eurocêntricos, legitimadores de supostas mais-valias da empresa colonial e estigmatizantes da alegada barbárie do homem negro-africano “do mato”, aliás, na senda do dilema positivista civilização versus barbárie, conforme detecta certeiramente Russel Hamilton na obra acima referenciada.

1.3. É o que uma leitura, ainda que breve, das belas estrofes do célebre, mas pouco divulgado, poema «Ode a África» (re-publicado na íntegra por Manuel Ferreira na terceira edição, de 1985, de A Aventura Crioula), deixa entrever e transparecer: 

“África minha, das Esfinges berço,

Já foste grande, poderosa e livre:

Já sob os golpes do teu gládio ingente

Tremeu o Tibre!

 

Como o soberbo baobá frondente,

Os longos braços levantando aos céus,

Ao longe fôste em iberinas plagas

Erguer troféus!

 

Do Tigre os vales e da Ibéria os ecos

O nome teu em tempos aprenderam;

E ao teu poder da Babilónia os filhos

Valor perderam!

 

Dos teus ousados barinéis ovantes

As ondas bravas do Interior aradas,

Por longos anos de opressão gemeram

Avassaladoras!

 

Entre os antigos já Cartago e Egipto

Foram empórios de poder e fama

Por fim caíram… foram-lhe Calvário,

Pelúsio e Zama.

 

Sim, foste grande, dominaste o mundo;

Mas hoje jazes sem poder sem nada.

E ao férreo jugo das potências gemes

Manietada.

 

Sôbre o teu corpo, ó meu leão dormente,

Vieram bárbaras nações sentar-se;

E quais harpias truculentas, feras,

Nele cevar.

 

Ó Pátria minha idolatrada e mesta,

Quando nos campos de batalha erguias

Teus estandartes, forte,

Não sonharas tão tristes dias!

 

Se foste tu quem acendeu o facho

Que fez da Grécia a Glória peregrina

Porque hoje vergas para o chão a fronte

Adamantina?!

 

Vós que do túmulo dormis à sombra,

«Quebrando a lousa do feral jazigo»,

Surgi! Erguei-vos desse pó, guerreiros

Do Egipto antigo

 

E tu, Aníbal, imortal caudilho,

Que a teus pés viste Roma prosternada,

Ergue-te e empunha novamente a lança

P’la Líbia amada!

 

Cavalheiroso Abdel Kader e Negus

E vós, valentes filhos dos sertões,

A lanças, chuços, expulsai-me todas

Essas nações!

 

Mas que digo? Antes repousai, guerreiros

Bem-vinda seja a paz, seja bem-vinda!

Longe, canhões a vomitar metralhas

E a paz infinda!

 

África minha, das Esfinges berço,

A voz escuta que te chama e brada:

“Não vês além erguer-se a madrugada?

 

Por tanto tempo à luz cerraste os olhos,

A doce lei de Cristo desprezando.

Mas eis agora o fim da ignava noite

E o sol raiando!

 

Curvai os ramos ´té o chão, olaias!

Leões, rugi na vossa soledade,

Saüdando a estrêla fulgorosa e linda

Da liberdade!

 

Deixai, deixai que se derrame prestes

A luz da fé no inóspito sertão,

E, a-par-e-passo, profligando as trevas,

A da instrução!

 

Missionários mais que heróis ousados,

Sede bem--vindos! Nobres mensageiros

Da Boa Nova por Jesus pregada,

Sóis verdadeiros!

 

Não cobiçais riquezas deslumbrantes,

Não vindes, não, pelo oiro que seduz;

Ferro homicida não vibrais: vossa arma

É uma cruz!

 

No cumprimento da missão sublime

Tudo afrontais em nome do Senhor

Golpes, insultos, frio e fome, doenças,

A morte, o horror!

 

Buscar não vindes, trazer sim, pioneiros!

Da augusta crença a árvore frondosa

Plantai, Apóstolos da paz, na Líbia

Triste e inditosa!

 

A amar as lusas quinas ensinai-lhes

E a orar a Deus na língua de Camões!

Breve outros vates ouvireis cantando

Novos varões/

 

Egipto! berço da Isis lacrimosa,

Do sacro Nilo de caudais enchentes:

Pátria do Faraós armipotentes

E da Hipatia e Cleópatra formosa!

 

Ergue-te, pois! e o jugo anglo-otomano

Sacudindo, proclama soberano

A tua independência entre as nações!

 

Que no halo envolto de uma glória infinita,

Do alto dessas pirâmides ainda

Lanças ao mundo rútilos clarões

 

Vós sois, vós sois

Pirâmides de Mênfis

De heróicos feitos poema imorredoiro

Em que se gravam dos Menés, os nomes

Em letras de ouro! (..)

 

Rubras de glória, as Águias napoleónicas

Viste passar altivas, vencedoras…

E hoje, que é delas? Pó e cinzas, trevas/

Aterradoras!

 

Cantai, tem cada povo a sua Ilíada!

Cantai da Líbia as sempiternas glórias!

Que pergaminhos há de tão brilhantes

E altas memórias”.

Dir-se-ia que o poema se espartilha, dilacerado, entre i. uma consciência eufórica, rebelde e pan-africanista, originalmente constante do poema “Ao Egipto” e agora também integrante do presente poema (“Ode a África”), que celebra o próprio Egipto antigo e exalta figuras gloriosas da História africana da Antiguidade, como Cléopatra e o cartaginês Aníbal, bem como alguns proeminentes heróis e mártires da resistência africana à empresa colonial, como Abdel Kader ou o Négus da Abissínia, e ii. uma consciência conformada - atente-se que posteriormente aditada, como parte antecedente do  poema “Ao Egipto” e constante do verso iniciado em “Mas que digo“ e concluída em  “a orar a Deus na língua de Camões”-, manietada pela educação escolar cristã-ocidental e pela percepção da inelutabilidade, da inevitabilidade, tida, todavia, por necessária, da colonização “civilizadora” europeia, ou domesticada pelo patriotismo luso e pela crença nas vantagens da disseminação da civilização cristã e ocidental, não pela força das armas, mas pela força persuasiva do cristianismo e da sua “intrínseca bondade” difundida pelos missionários. Trata-se, pois, segundo Pedro Cardoso, da salvação do homem africano não só da pagã ignorância em relação à doutrina cristã, como também do seu desconhecimento não só das suas glórias próprias, passadas, e do seu contributo para a edificação da civilização ocidental, como também do seu resgate das trevas de uma alegada barbárie, radicadas, iletradas e pré-científicas, no sertão africano, mas também na glória efémera da altivez dos conquistadores europeus, representados pelas águias napoleónicas, carregadas de orgulhosa fatuidade. Afinal, as pirâmides de Mênfis sobreviveriam à sanha colonial, para testemunhar a eternidade, qual “poema imorredoiro” da “África, das esfinges berço”, e o ressurgimento de uma África vindoura, próspera e orgulhosa dos seus feitos, protagonizados por “novos varões” africanos e devidamente cantados pelos seus vates (“Breve outros vates ouvireis cantando/Novos barões”), pois que “cada povo tem a sua Ilíada” e são “sempiternas as glórias da Líbia” (neste caso, sinónima da África toda) e “brilhantes os seus pergaminhos” e “altas as suas memórias”.

Anote-se  outrossim que as expressões mais manifestamente afro-crioulas  da cultura caboverdiana são referidas em vários poemas de Jorge Barbosa e de Osvaldo Alcântara - pseudónimo literário para a poesia de Baltasar Lopes da Silva-, tendo sido Jorge Barbosa ademais o autor do poema “África”, trazendo ao palco da História uma África muito expectante da sua hora-clarim, bem como de vários poemas de denúncia anti-colonial, do trabalho serviçal nas roças de São Tomé e Príncipe bem como contra o segregacionismo racista anti-negro nos Estados Unidos, escritos sobretudo nos anos sessenta do século passado e mantidos em parte inéditos, em razão da vigência da censura colonial-fascista.

Actualmente, poucos são os poetas caboverdianos nos quais se não detecte uma vertente afro-crioulista, anti-racista e fraternitária na sua apreensão e perceção da génese e da configuração actual da crioulidade caboverdiana. 

 

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