O poeta tem lutado, à sua maneira, contra a “tara da nacionalidade” e as “peias da identidade”, que a instituição, veículo societário movido a energia social, tende a impor-lhe a contrapelo de sua vontade, mas é justo salientar, quanto à crítica, que ele tem fornecido o arsenal significante e significativo que autoriza a sua radicação no arquipélago. Aliás, não podia ser de modo diferente. Que o poeta se avantajou e ultrapassou a condição arquipelágica, a insularidade do sujeito, das ilhas e da sociedade nacional, para se expandir pelas comunidades de língua portuguesa, e de outras línguas que o traduzem, concedem-lhe, aos poucos, um estatuto internacional tendente à universalidade. Tombadas as paredes do local, a linguagem plástica e as problemáticas de sempre e de todos – com a veemência e virulência que o definem como um anjo endiabrado — alargam-lhe os horizontes, tocam na medula das sociedades banalizadas e impõem-lhes um choque de realidade poética haurida nos cavernames dos movimentos individuais e societários violentos e propícios ao escândalo.
O poeta José Luiz Tavares obriga-nos ao julgamento, a uma tomada forte de posição, desde que apareceu com o livro do seu “trovão” atroador. Toda a estrutura da instituição literária é obrigada a remanejar os pontos de vista e a requalificar conceitos e estratégias perante tal força poética insurgente, ou, então, tenta fazer de conta que nada acontece. Se não conseguisse resolver esse impacto da tempestade poética, isso significaria, por certo, sintoma de incapacidade autocrítica e crítica. Muito pior seria se a instituição não reconhecesse que, para lá do fundibulário, estamos em presença de um senhor vate à moda antiga, um aedo com sua costela neorromântica, impertinente, impetuoso e visionário. Um Boca do Inferno dantesco, shakespeariano e poundiano. Mas isso é apenas uma das facetas desse intelectual que parece não gostar de assumir tal papel de mediador entre as escritas e as instituições que se encarregam de expandir as obras pelo mundo.
Ora estes poetas de língua solta e oficina apuradíssima, revoltados e cáusticos, obsessivos e compulsivos, trabalhadores eméritos e muito cientes e ciosos do seu valor, não pedem prebendas, mas exigem respeito, afeto e receção do trabalho que às musas tudo deve. O poeta está consciente das musas da poesia, todas aquelas que, desde sempre, conseguiu ler e assimilar, portanto, sabe o que sofre com a sua obsessiva doença de dar saúde às palavras, com as quais vive e interpreta o mundo, sondando os seus sinais para perscrutar o futuro.
Tal sentido intelectual de intervenção desta sua “pedra” lançada contra o “firmamento”, logo de entrada, fica muito claro. Esse “firmamento” é o mundo, o universo, e, numa interpretação mais metafísica, o lugar dos deuses, o céu, e também o alcantilado onde se alcandoraram os humanos que se julgam deuses e procedem como juízes divinos sem mandato e com algumas insígnias, aparentemente protegidos pela vanglória. Pelo menos assim se pode imaginar o pretexto para tamanhas catilinárias e diatribes, que é o de conseguir demonstrar a irritação da república das letras face à crítica, que, como todos os poderes, se ofende facilmente com quem perturba a ordem estabelecida e rezinga, não por mau perder, mas por bem mostrar como se faz poesia, que é manifestamente a sua atividade predileta e quase se pode afirmar que a única que, para ele, fautor, faz o mundo ter sentido. Ao assumir, no subtítulo, que é um rezingão com o dedo do meio em riste, põe-se a jeito, é óbvio, sobretudo numa época como esta, em que interessa mais concordar com os poderes culturais, calar-se democraticamente, e nada argumentar em contrário. José Luiz Tavares, por vezes, parece situar-se como um homem de letras do século XIX, em que as duras contendas literárias podiam chegar ao duelo. Ou, pelo menos, a uma bulha na praça pública, em sentido pragmático. Mas ele afirma que não é pessoa de pancadarias.
Logo no poema de entrada, pré-capitular, refere-se à “pesporrência obnóxia”. O crítico aqui não precisa de fingir arrogância ou humildade, por não ser o seu timbre, mas só mesmo José Luiz Tavares é poeta para o obrigar a ir várias vezes ao dicionário. Obnóxia: pessoa que se apequena perante o poder, que é servil. Fica dado o mote para os discursos de altaneiro orgulho sem falsas modéstias. Pelo contrário, ele sente a necessidade de se afirmar como conhecedor da poesia e da linguagem, enquanto trabalhador emérito.
Temos de escolher, não há outro modo de enfrentar a vida. O poeta e fundibulário escreve e o crítico escolhe, enquanto parasita compreensivo dos textos que saboreia e com os quais aguça o engenho no papel. Convém não esquecer uma evidência: o texto somente existe quando recebido, lido e ouvido, alto e bom som, ou no silêncio do claustro mental. O crítico é um leitor especializado que, tantas vezes, consegue dizer o que o leitor não é capaz de ordenar em palavras arrumadas, conceitos claros e metáforas arrojadas. E, claro, é sempre melhor ter ousadia e coragem, além de instrumentos técnicos e sensibilidade. Tudo isto aplica-se a todos, criadores, críticos e leitores. E, como tudo na vida, a sorte existe, até nos jogos de azar, mas não na arte, na crítica e na leitura. Talvez na arte da pintura, uma pincelada ao acaso, ou até uma série de palavras que emergem, possam ser cooptadas para a textualidade, mas o faro crítico e a enciclopédia mental têm de fazer o trabalho de fundo. Cada um lê não aquilo que quer, que julga ser o que há de melhor, mas apenas o que as condições lhe permitem. É por estas e outras – por ter o verbo consistente e aguçado — que José Luiz Tavares desencadeia paixões e atritos, quase como acontece com figuras do desporto ou do cinema. Quem não gosta ou não concorda, não consegue, no entanto, alhear-se do fenómeno. Ou, então, não lê, perdendo assim textos que lhe permitiriam uma fruição diferenciada e um evoluir na sua conceção de literatura e de mundo, confrontando-se com os seus próprios valores e a noção de justiça. É disso que se trata quando se enfrenta a obra do poeta e polemista desassombrado.
No projeto de experienciar Cabo Verde, em suas andarilhanças, resultam textos de insularidade e camaradagem, anotando o trabalho de homens e mulheres, na faina da pesca ou nas fajãs que se aproveitam, nas pedras roladas, em auscultação social e geofísica, na busca de um país por revelar, na sismografia de um retorno a casa, para esquecer os 15 anos de ausência dolorosa, que a voracidade da escrita sancionou. Acumula sensações, sentimentos, ações, que se transmudam em discurso. E, na escrita de José Luiz Tavares, nunca existe uma pacificação, uma faúlha de felicidade, porque a literatura traz-nos a condição humana ferida de imperfeição e padecimentos sem fim, pontuados esparsamente por tinir de copos de grogue, vinho e cheiro de pão quente (acrescento, para compor o ramalhete). Afinal, perambulando pela chã das caldeiras ou cismando no coração de lava, o poeta confronta-se com a profanação dos vendilhões de pedra sobre pedra, reforçando a sua consciência de profunda solidão assente num cansaço ontológico, que a questão social não alcança redimir.
Apelando a uma escrita e vivência fundamentadas na ética feroz do despojamento, contra populismos e panaceias pardacentas, o poeta viaja na sua terra, retomando o fio dos escritores que, observando, anotam e criticam, confabula com Don Danillon e outros hierarcas das penedias e chãs indemnes ao lixo do luxo. Podemos imaginar que, desse modo viandante, vai reconstruindo a infância e permitindo-se, já como veterano, enviar uma epístola aos poetas do seu país, bradando aos céus contra um tempo sem poesia. Critica a vulgaridade poética do país, aplaudindo, por outro lado, Arménio Vieira, Mário Fonseca ou João Vário. E, em “Praia/Fogo entre nuvens e sustos”, dirige-se à “pandilha aldrabona propositora de escórias líricas”. Deixa, por oposição, um elogio a um poeta não considerado, como deveria ser, João Baptista Efígie.
Saliento aqui a distinção que José Luiz Tavares faz entre a poesia de Vera Duarte e, por exemplo, um livro de poesia do referido João Baptista Efígie, cujo longo poema “De urbe para orbe” considera de “grande valia”, a mesma conclusão a que cheguei quando conheci, em Coimbra, autor e livro e prometi escrever sobre eles, tendo falhado até aos dias de hoje. Mas há sempre tempo, desde que os poetas não se enervem, porque dá gosto escrever quando somos e não somos convidados, sendo e não sendo imperativo, o que não impede que se possa escutar estas palavras imperativas, nos tempos que correm, sobre um livro raro em língua portuguesa.
Porque, em última análise, ó descrentes do benefício da palavra, do bom e do mau humor, o poeta não quer fustigar absolutamente ninguém, senão os fantasmas da privação e da falta, ou seja, tão-só exortar ao trabalho de recomposição do país, da república e das letras. Não tem outro objetivo quando zurze o que acha incompetente e atravessado. Tanto mais que afirma o “gosto pela diatribe e pela peleja sadia”. Convém lembrar que a diatribe é mais ampla do que se supõe, a uma leitura distraída. Veja-se quando recorda as primeiras leituras de poesia: “maus como a potassa (…) impera o calão neo-realeiro, via certo Caliban. Síndroma do negro greco-latino”. Trata-se da sua contribuição para a cidadania, cidadãos, porque não tem apetência, nem jeito, para outro tipo de intervenção, formal, científica ou académica. Tende, pois, complacência e compreendei que é um vero poeta, que, vez por outra, sai da sua caverna de angústias e encara a luminosidade do sol com enlevo e ternura de infante buliçoso, aquele filho da terra que andou com a bilha e o feno à cabeça. Não esqueçais que o poeta escreve: “Não sou o bem-aventurado (…) nem o filho pródigo”. Isto tem de ser lido como uma frase lapidar de autobiografia e sintoma mental de uma consciência que encara, a duras penas, a pena com que escreve a rudeza da vida. É uma figura, uma imagem, uma ficção de linguagem, uma construção, já sabemos, mas também um veemente testemunho destes tempos difíceis por que o país passou e as gentes vão passando.
Desenganem-se aqueles que acharem que a sua poesia é egolátrica e egocêntrica, pois tal arte, como qualquer outra, escapa ao artista e ilumina a comunidade de onde provém, tanto como as outras que a recebem. Não por acaso, o seu programa poético está grafado a itálico: “Porque compete aos poetas adivinhar o que é latente, sofrer o que é indistinto, ousar o que não se suporta, serão sempre mais sinal de solidão do que de partilha, de recusa do que de aclamação”. Esse é o seu rosto que deixa no discurso um rasto de autenticidade, por muitas circunvoluções e preciosismos que contenha.
José Luiz Tavares não quer desempenhar qualquer papel de crítico literário, teórico ou legislador das letras. Antes pelo contrário, quer sempre atingir o «satori» – ou o orgasmo, como provavelmente poderia dizer – com a sua intuição e melhor escolha de palavras para criar os seus (nossos) mundos possíveis. E dos seus textos prosaicos retemos, ainda e sempre, a palavra poética, mesmo quando emite uma provocação, um vitupério ou se mostra razoavelmente desagradado.
Os seus textos em jeito de manifestos são poéticos; os vitupérios são engenhosos e excitantes. O poeta está em toda a parte: na tradução recriadora e ao bebericar a cerveja no inferno; no voo trepidante do teco-teco viajando em Cabo Verde e nas flechadas contra os “acólitos do rei”, como ele escreve. Este livro é um repositório ilustrativo da receção poética de José Luiz Tavares e da sua impaciência com a mediocridade altaneira. Funciona como uma apropriação de tipos do discurso diarístico, da crónica, manifesto, diatribe, memória, louvação e, evidentemente, da antologia crítica. O poeta fala do “princípio do ser”, e tal entendemos que pode ser a linguagem onde o ser se constrói por via de acontecimentos, como escreveu Alain Badiou, assim como a terra e o mar que o viram nascer forjaram os grupos humanos onde se iniciou na infância e juventude. Ali cresceu, juntamente com os seus, nesse Tarrafal, qual fantasma que sempre retorna para assombrar as noites de insónia.
A raiva que impele a escrita contra os desmandos do mundo, contra a seca e a pobreza, na busca de levar para o discurso os traços dos personagens das terras gretadas e do mar circundante, dos amigos de infância, dos familiares, da escola e das brincadeiras, dos animais de casa e das escarpas, das andanças aventureiras e frustrações.
“O cão da memória”, texto de 1999, foi a sua primeira intervenção pública que resolveu guardar neste livro, escrita para a cerimónia de receber o primeiro prémio ganho com a poesia. É um texto matricial sobre as memórias reais ou construídas da infância, da terra e do sonho. É também a afirmação da memória como perenidade do ser humano e da humanidade, lugar-comum irrevogável, cenário cerebral do que somos e de onde viemos para aqui estar. Nele, não existem factos, mas a palavra feita poesia em prosa, seja lá o que isso for. Porque, com exceção dos textos fundibulários, o poeta não deixa nunca, como foi dito, de semear poesia. Se nesse poetar conseguimos receber alguns sinais ou sintomas da terra que o viu nascer, e da família e dos amigos, das gentes negras de pé rapado e da gente «branku» que dele não quis saber, é porque o poeta, por muito que esperneie em direção ao sol, num constante voo de ícaro interstelar, vacilando, mas não caindo, esteve muito tempo sem voltar à pátria, mas a pátria não saiu dele, nem o abandonou, porque lhe aparece no texto, quer ele queira quer não. Porque não pode rasurar essa identidade. Por muito escarcéu que levante contra a derrisão que o conceito identitário provoque. Essa erisipela da identidade existe mesmo e assoma quando o tarrafal natal assombra as noites de delírio e os dias de melancolia quando falta o refrigério, que apenas a poesia acomete. Aceita, poeta, que és um cabo-verdiano orgulhoso aberto ao mundo, girando por aí, com os pés presos nas chãs de cima e nas fraldas de baixo da cabeça calva de um deus atlântida.
O segundo texto é o que foi apresentado na entrega do Prémio Mário António, da Fundação Gulbenkian, “Quase autorretrato com poeta em fundo”. Em duas páginas, estão todos os princípios, meios e fins de José Luiz Tavares: não há destino; crescimento entre gente humilde, por caminhos de cabras e pedras, com o som do mar por perto; a liberdade da poesia contra as sujeições do mundo; a altivez aprendida com as gentes e os penhascos; a veemência, quase brutal, na escalada da poesia; a inconveniência social do poeta e da poesia; desprendimento material e recusa mundana; a paciência e a longa espera de trabalho para «apanhar o vento» do espírito.
O perfil poético aprofunda-se nas entrevistas, um manancial de informações para leitores e estudiosos, com recados críticos, filosóficos, pragmáticos, disseminados a preceito.
Os melhores textos críticos sobre a obra de Tavares pertencem a Rui Guilherme Silva e José Luís Hopffer Almada, e longe de querer menosprezar os outros. Neles, o docente que viveu em Cabo Verde e exerce na Madeira, também autor de uma tese de doutoramento justamente sobre a poesia de José Luiz Tavares, mas igualmente de Arménio Vieira e João Vário, tem vindo, desde há uma boa vintena de anos, a escalpelizar com densidade teórica e exemplificação exemplar, os principais sentidos e linhas de força da sua poesia, as ligações transtextuais, a desencriptação dos palimpsestos, enfim, a artilharia pesada, as trincheiras, o arame farpado e a filigrana do combate contra a morte e a porcaria da vida repetitiva, enfadonha e transitória. Como se trata de uma mente minuciosa e altamente preparada, Rui Guilherme alia uma ótima organização dos seus textos a uma erudição abundante e à sua já longa experiência didática, parecendo ao leitor que praticamente nada deixa por explicar. Sabemos isso impossível, mas a sua entrega é do mesmo tipo da entrega do poeta à obra: buscam a perfeição, trabalham a pedra e iluminam sentidos, trazendo-os à consciência. São pedreiros-livres, construtores de catedrais. José Luís Hopffer Almada prima por explicar o percurso do poeta, a sua evolução, metodicamente, fornecendo preciosos enquadramentos, dados sensíveis e incontornáveis, procedendo a desdobramentos muitíssimo esclarecedores, como um verdadeiro historiador da literatura cabo-verdiana, que, na verdade, tem já a obrigação de ser. São três figuras muito perspicazes e competentes: um, psicografista da memória, outro, analista de sistemas, e o terceiro, pescador à linha.
Os textos incluídos no conjunto da “Pátria soletrada” são esteticamente poéticos, porém, confirmam que, para além de José Luiz Tavares erguer uma poesia de categoria intemporal e universal, ele e a sua vontade de poesia fincaram os pés nas chãs de Cabo Verde. Antes de ser emigrante e viajante, o poeta é homem do arquipélago atlântico, um badio letrado que carrega consigo as asperezas da terra e do clima e as alegrias e os afetos do povo negro do Tarrafal de Santiago. Os seus textos de memorabilia prestam culto aos antepassados e é evidente que estes antepassados tanto são os africanos quanto os europeus ou os norte-americanos e brasileiros. Daí que Tavares tanto aprecie João Vário como Arménio Vieira e Mário Fonseca, como Camões, João Cabral, Bocage ou Shakespeare. A lista seria imensa.
Nascer em 10 de junho, dia de Camões, no Portugal colonial e na colónia de Cabo Verde, se não é destino, sendo apenas um facto, podemos imaginar como fez todo o sentido, agora que o sabemos um poeta gigante, caminhando pelas suas próprias métricas, tantas delas à medida do vate renascentista. Não podia ser de outro modo, pois, como o mar, os ventos do Sahara e os ventos do Sahel entraram na sua infância, tal como entrou de rompante a Cidade Velha, também esse gigante adamastor transformou a escrita no seu cabo da boa esperança. Sentiu-se amparado por Mário Fonseca, João Vário, Corsino Fortes, Arménio Vieira ou José Luís Hopffer Almada, sendo conveniente acrescentar “entre outros”, desde cabo-verdianos a portugueses, brasileiros, ingleses, italianos, franceses, alemães, gregos, argentinos, japoneses, hélas, que o poeta iconoclasta, heresiarca e rezinga a todos vai buscar conforto e alento. A falta ou a falha, de que fala, reside no desejo impulsivo, na voracidade da inquietude, abrindo brechas na falsa paz do quotidiano podre, que a escrita não mata nem colmata.
Veja-se um texto extraordinário, o poema “T – a fúria é a minha noiva”, que tem, no livro, apontamentos analíticos de Rui Guilherme Silva, um fiel escudeiro da sua arte. E que fúria das fúrias não se levanta no poema para invetivar o centro da urbanidade e as suas margens marginalizadas. Esse texto é entusiasmante e avassalador, completamente acerbo e fulminante na sua grandeza, texto bravo, fosforescente e implacável. Aqui, o crítico, para lá dos encómios, tem de repetir-se, avançando, uma vez mais, com um florilégio de textos afins, para conseguir a expressão mais eloquente do vosso entendimento: “T – a fúria é a minha noiva” é um texto que tem de se colocar a par de outros grandes textos objurgatórios e intensos, quanto ao tamanho e força perlocutória. Associemo-lo, pois, ao “Poema sujo”, de Ferreira Gullar, “Ode marítima”, de Fernando Pessoa, “A invenção do amor”, de Daniel Filipe, “A renúncia impossível”, de Agostinho Neto, “FMI”, de José Mário Branco, “Australidades”, de José Luís Hopffer Almada, “Que país é este?”, de Afonso Romano de Sant’Anna. Pode-se acrescentar um texto em prosa, que muito apela à vocação fundibulária de Tavares: «O discurso do filho da puta», de Alberto Pimenta. Nesse poema, lemos dois versos que constituem, com forte probabilidade, o epicentro da razão poética de José Luiz Tavares:
Concordantes, a fúria e a falta,
unidas ambas, forjam o teu brasão.
A última quadra desse poema-manifesto – típico da literatura de revolta e abominação – comporta todo um programa que sublinha não só o seu pendor poético como também a ética comportamental de José Luiz Tavares:
Intrépida batalha ensimesmada, ou melancólico libelo
pelo humano, é sempre desafio que o mundo apouca.
Mas se aqui estás, mesmo entre a merda, é pra vencê-lo,
sem causa outra, que estar vivo (e dizê-lo) não é arte pouca.
Não seria necessário explicar estes versos, mas cometo perjúrio: trata-se de um processo contínuo de vida atenta ao ruído do mundo, mas no casulo de si-mesmo, o que permite a votação à escrita e leitura dos livros e do universo, que a receção no capitalismo tende a menorizar, porque, tradicional e reacionariamente, se entende como atividade excedentária, com pouco de utilitarismo. Venera-se a vida, por escassa de posses que seja, e, ainda que sem causas tonitruantes, o poeta deve merecê-la ao transformá-la em discurso – com trabalho duro e persistente – para que alcance os pináculos da perfeição. Que, antecipadamente, nem ele, nem ninguém, sabe o que seja.
Precisamente no texto “De erupções capilares, a cuspidelas duma certa dentadura literária”, o autor profere um ajuste de contas com uma parte da instituição literária sita em Cabo Verde, salvaguardando a ética dos amigos que são compreensivos. Tratou-se de uma guerrilha passada, com recurso a emboscadas e armadilhas, tendo em vista clarificar assuntos de melindre, relativos a premiações e comportamentos tidos como indignos, que indignaram. O poeta de carne e osso explica, neste e noutros textos, quais as suas linhas defensivas: uma ética escrupulosa baseada no trabalho estrénuo e no acreditar nas suas competências, sensibilidade e trabalho verdadeiramente de escravatura autoimposta, que, aliás, a palavra reclama até ao infinito. E, portanto, desfere um golpe impertinente na instituição, referindo-se aos seus antigos colegas de Liceu que, hoje, se encontram “longe da ilusão mas também da podridão do mundo das letras”. Assim mesmo, sem mordaças na língua, como tantas vezes chegamos a pensar sobre alguma parte da instituição literária portuguesa, não é verdade?
O poeta tem lutado, à sua maneira, contra a “tara da nacionalidade” e as “peias da identidade”, que a instituição, veículo societário movido a energia social, tende a impor-lhe a contrapelo de sua vontade, mas é justo salientar, quanto à crítica, que ele tem fornecido o arsenal significante e significativo que autoriza a sua radicação no arquipélago. Aliás, não podia ser de modo diferente. Que o poeta se avantajou e ultrapassou a condição arquipelágica, a insularidade do sujeito, das ilhas e da sociedade nacional, para se expandir pelas comunidades de língua portuguesa, e de outras línguas que o traduzem, concedem-lhe, aos poucos, um estatuto internacional tendente à universalidade. Tombadas as paredes do local, a linguagem plástica e as problemáticas de sempre e de todos – com a veemência e virulência que o definem como um anjo endiabrado — alargam-lhe os horizontes, tocam na medula das sociedades banalizadas e impõem-lhes um choque de realidade poética haurida nos cavernames dos movimentos individuais e societários violentos e propícios ao escândalo.
*Prof. Jubilado da Universidade de Coimbra
PIRES LARANJEIRA. Doutorado em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa
pela Universidade de Coimbra, onde foi professor associado da Faculdade de Letras,
responsável pelas cadeiras de Literaturas Africanas, desde o ano letivo de 1980-81,
e de Culturas Africanas. Lecionou também literatura brasileira, cultura brasileira e
estudos culturais na Universidade de Salamanca.
É membro do Centro de Literatura Portuguesa da Faculdade de Letra da UC.
Publicou centenas de textos científicos, culturais, jornalísticos e literários em
mais de 130 jornais e revistas locais, regionais, nacionais e internacionais, desde
1965. Conferências, cursos, congressos e publicações em dezenas de países. Progra -
mas de rádio, vídeos na TV, crítica jornalística, direção de coleções, organização
de colóquios, etc.
Entre as suas publicações em livro, destacam-se: Antologia da poesia pré-angolana
(1976); Literatura calibanesca (1987); De letra em riste. Identidade, autonomia
e outras questões na literatura de Angola, Cabo Verde, Moçambique e S.
Tomé e Príncipe (1992); A negritude africana de língua portuguesa (1995); Lite -
raturas africanas de expressão portuguesa (c/ I. Mata e Elsa R. dos Santos) (1995);
“Le monde lusophone (chapitre V): la littérature coloniale portugaise”, in Jean
Sévry (ed.), Regards sur les littératures coloniales. Afrique anglophone et lusophone, tomo III (1999); Negritude africana de língua portuguesa.
Textos de apoio (1947-1963) (2000); Estudos afro-literários (2001; 2ª ed.,
2005); Cinco povos, cinco nações. Estudos de literaturas africanas de língua portu -
guesa (c/ M. J. Simões e Lola G. Xavier) (2007); Baltazar Lopes (1907-1989) e o
Movimento da Claridade (2010) (c/ A. A. Lourenço e O. M. Silvestre); João-Maria
Vilanova, Os contos de ukamba kimba (2013) (c/ Lola G. Xavier).
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