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Negrismo e africanidade em Jorge Barbosa e Osvaldo Alcântara
Cultura

Negrismo e africanidade em Jorge Barbosa e Osvaldo Alcântara

Reminiscências de negrismo e africanidade na poesia de Jorge Barbosa e Osvaldo Alcântara e em outros antecedentes e correlativos casos- Breve excurso comprovativo da efectiva existência e da real pertinência de uma poesia cabo-verdiana de AFROCRIOULITUDE (OU DE NEGRITUDE CRIOULA)

1. Como referido no meu ensaio “Cabo Verde: emancipação político-cultural do povo das ilhas, discursos da crioulitude, síndromas de orfandade identitária e alegada (im)pertinência de uma poesia caboverdiana da afro-crioulitude e/ou da negritude crioula” (integrante como Posfácio do meu livro Deflagrações (no prelo) e publicado, numa versão mais abreviada, na revista electrónica Buala, da Fundação Calouste Gulbenkian), e como também atesta o ensaio “Breves Notas sobre a Literatura Cabo-Verdiana”, de Manuel Duarte (publicado em 1984, na revista Raízes e constante do seu livro da sua autoria intitulado Cabo-Verdianidade e Africanidade, e Outros Textos, Spleen-Edições, Praia, 1999), os especialistas nos estudos da literatura caboverdiana parecem estar de acordo quando, na sua esmagadora maioria, vêm asseverando que pouco eco tiveram nas obras dos literatos das ilhas sahelianas anteriores ao movimento político-literário caboverdiano da Nova Largada a Negritude e outros movimentos literário-culturais similares, como o Renascimento Negro norte-americano (Black Harlem Renaissance ou New Negro), o Indigenismo haitiano, o Negrismo cubano, aliás, todos amplamente dissecados por Manuel Ferreira no seu texto de introdução à obra No Reino de Caliban – Antologia Panorâmica da Poesia Africana de Expressão Portuguesa, volume I, Cabo Verde e Guiné-Bissau (Lisboa, Seara Nova, 1975) e n’O Discurso no Percurso Africano - Contribuição para uma Estética Africana (Lisboa, Plátano Editora, 1986), por Mário Pinto de Andrade no ensaio “Literatura Africana e Consciência Nacional”, publicado no nº 4 de 1977 (1978), da revista Raízes, e, mais recentemente, por Pires Laranjeira no livro baseado na sua tese de doutoramento intitulado A Negritude Africana de Língua Portuguesa (Edições Afrontamento, Porto, 1995).

Tal circunstancialismo deve-se aos constrangimentos ideológico-culturalistas autenticados e tornados historicamente plausíveis pela especificidade objectiva da configuração étnico-social da sociedade crioula caboverdiana e pela sua reconstrução ideológico-culturalista e literária, que tomava a mesma configuração por sui generis e inundada de impertinência ontológica e epistemológica no contexto colonial-africano e das diásporas de culturas afro-negras ou afro-europeias, inclusive por Mário Pinto de Andrade e Francisco José Tenreiro, organizadores do Caderno de Poesia Negra de Expressão Portuguesa (Lisboa, Casa dos Estudantes do Império, 1953) de que foram excluídos “os poetas das ilhas crioulas”, justificando-se Francisco José Tenreiro na introdução à obra nos seguintes termos: “Poder-se-á estranhar a ausência de poetas de Cabo Verde: tal sucede por, em nossa opinião, a poesia das ilhas crioulas, com raríssimas excepções, não traduzir o sentimento da negritude que é a razão-base da poesia negra. (…) Trata-se, porém, de uma poesia de características regionais bem vincadas, fruto da aculturação do Negro no Arquipélago, e, como tal, merecedora de um estudo muito particularizado”.

Essa opinião vem, aliás, confirmar e corroborar aquela anteriormente defendida pelo mesmo autor sobre a divergente evolução das sociedades caboverdiana e são-tomense no período pós-escravocrata e constante do seu ensaio “Cabo Verde e São Tomé e Príncipe - Esquema de uma Evolução Conjunta” (in Cabo Verde-Boletim de Propaganda e Informação, Praia, 1951).

Ela não leva porém em conta o forte impacto que o movimento da negritude e, em especial, a Anthologie de la Nouvelle Poésie Négre e Malgache d´Expression Française, organizada por Senghor e editada em 1948 pela PUF (Publicatios Universitaires Françaises), tiveram já em estudantes caboverdianos radicados em Lisboa e sujeitos à subversiva influência da Casa dos Estudantes do Império, como se verificou com Amílcar Cabral quando, em 1948, tomou conhecimento por intermédio de Mário Pinto de Andrade dos poemas constantes da mesma antologia e foi tomado de um grande entusiamo e inundado de uma indescritível euforia, como é referido pelo mesmo Mário de Andrade no ensaio que publicou conjuntamente com Arnaldo França no nº 1, de Janeiro de 1977, da revista Raízes e intitulado “A cultura na problemática da libertação nacional e do desenvolvimento, à luz do pensamento político de Amílcar Cabral”.

Foram de tal monta as repercussões dessa tomada de conhecimento que Cabral passa a escrever poemas com muitas referências negristas, como no caso do poema “Rosa Negra”, estabelecendo assim, se bem que agora envolta numa visão esperançosa do futuro para a humanidade e para as mulheres negras laboriosas das ilhas, alguma ligação de Cabo Verde com a sua matriz continental negra que ele já patenteara, em 1943, ainda era ele estudante liceal, no poema “Naus sem rumo” (in Osório, Oswaldo, Emergência da Poesia em Amílcar Cabral, Grafedito, Praia, 1984).

Relembre-se que nesse poema as ilhas sahelianas são representadas como “filhas engeitadas”, “pedaços do ingente e negro continente” “navegando sem fito”, quais “naus da fome, da morna, da miséria e da desgraça”, quais “caravelas sem velas”, “rumo ao Infinito”.

Interessante é que a exclusão de poetas caboverdianos já não terá lugar em posteriores antologias de poesia organizadas exclusivamente por Mário de Andrade, como se pode comprovar nas colectâneas poéticas Antologia de Poesia Negra de Expressão Portuguesa (das Éditions Pierre Jean Oswald de Paris e datada de 1958), «Poètes noirs d’expression portugaise» (publicada em Paris, em Janeiro de 1961, no nº 381 da revista Europe, inclui Gabriel Mariano ao lado de Agostinho Neto, Alda do Espírito Santo, Noémia de Souza e Kalungano (pseudónimo literário do moçambicano Marcelino dos Santos), La Poésie africaine d’expression portugaise (das Éditions Pierre Jean Oswald de Paris e datada de 1969, inclui os poetas caboverdianos Osvaldo Alcântara, Jorge Barbosa, Pedro Corsino Azevedo, Aguinaldo Fonseca, Mário Fonseca, Gabriel Mariano, Ovídio Martins, António Nunes e Onésimo Silveira) e, finalmente, na Antologia Temática de Poesia Africana, volume I, A Noite Grávida de Punhais (Lisboa, Sá da Costa, 1976) e na Antologia Temática de Poesia Africana, volume II, O Canto Armado (Lisboa, Sá da Costa, 1979), as duas antologias publicadas pelo prestigiado intelectual africano depois do 25 de Abril de 1974.

A nova démarche de Mário Pinto de Andrade parece sustentar-se na preferência, datada da antologia de 1969, pelo qualificativo africana, em detrimento do predicado negra, isto é, sustentada numa óptica na qual teria maior relevância não a alegada negritude dos poetas seleccionados, mas as temáticas das suas obras poéticas e a sua africanidade enquanto pertença e integração geopolíticas em colónias africanas de Portugal e correlativa possibilitação de uma eventual reivindicação de um destino político africano.

Como é sabido, e apesar da sua defesa da excepcionalidade (ou, melhor dito, da originalidade) crioula de Cabo Verde, mas prosseguindo na produtiva senda de Mário Pinto de Andrade, Manuel Ferreira nunca deixou de incluir Cabo Verde nas suas antologias de poesia africana de língua portuguesa, designadamente no supra-referido No Reino de Caliban e em 50 Poetas Africanos (Plátano Editora, Lisboa, Abril de 1997), nas quais a cor da pele dos poetas e a negritude da sua poesia constituem somente uma das variáveis e, no caso de Cabo Verde, são consideradas como de todo em todo irrelevantes, para tanto tendo certamente contribuído a exclusão ou auto-exclusão de alguns poetas conotados com uma maior radicalidade negrista, negritudinista, pan-africanista ou anticolonialista, como Amílcar Cabral, Kaoberdiano Dambará, Emanuel Braga Tavares, João Henrique de Oliveira Barros e Timóteo Tio Tiofe.

Curioso é que, já no período pós-colonial, Amílcar Cabral viria a ser integrado na poesia da Guiné-Bissau, não obstante a nula ligação da sua poesia com a “nação africana forjada na luta” que ele próprio liderou com especial denodo e excepcional clarividência (Antologia poética da Guiné-Bissau, pref. Manuel Ferreira; coord. Centro Cultural Português, União Nacional dos Artistas e Escritores da Guiné-Bissau -Lisboa: Editorial Inquérito, Lda., D.L. 1990).

2. Estranho e paradoxal é que tenha ocorrido a situação referida em 1, de notória irrelevância dos movimentos culturais acima referidos na poesia caboverdiana anterior ao Movimento da Nova Largada, não obstante o amplo e aprofundado conhecimento que desses mesmos movimentos, acima referidos, e de outros que os precederam, das obras produzidas no seu quadro e dos respectivos autores e actores mais representativos, tinham os letrados caboverdianos, como denotam alguns dos seus escritos (por exemplo, o ensaio “The Darker Brother”, de João Lopes, sobre Langston Hughes incluído no livro póstumo In Memoriam João Lopes (organizado por João Lopes Filho, prefaciado por Arnaldo França e editado, em 2007, pelo Instituto da Biblioteca Nacional da Praia), e deixam transparecer vários testemunhos seus recolhidos, por exemplo, por Michel Laban nos dois volumes da sua obra Cabo Verde - Encontro com Escritores (Porto, Fundação António de Almeida, s/d, 1989).

Alguns deles participaram até de modo assaz activo na consecução dos seus propósitos, com destaque para o pan-africanismo cívico e político, como foram os casos daqueles que, como Pedro Cardoso, Eugénio Tavares, Luís Loff de Vasconcelos ou António Corsino Lopes, partilhavam o nativismo com o pan-africanismo (no sentido de um situacionismo político-geográfico localizado em África por oposição à Europa dos cidadãos plenos e, contrastivamente, imaginados em plano cívico-civilizacional superior e dominante), e, na fase lisboeta da sua vida, de alguns futuros claridosos, como Baltasar Lopes da Silva e António Aurélio Gonçalves, e um seu contemporâneo, Júlio Monteiro, Júnior, que, para além de colaborar no jornal pan-africanista lisboeta A Mocidade Africana, tal como os dois insignes futuros claridosos anteriormente referidos, foi autor de vários artigos de louvação de personalidades negras de todo o mundo e da mestiçagem caboverdiana bem como do emblemático Os Rebelados da Ilha de Santiago (Centro de Estudos Cabo-Verdianos, Praia, 1974), como é amplamente analisado por João Manuel Nobre de Oliveira, no seu monumental A Imprensa Cabo-Verdiana -1842/1974 (Fundação Macau, Serviços de Educação e Juventude, 1998) e Mário Pinto de Andrade no seu livro As Origens do Nacionalismo Africano (Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1993).

A constatação da diminuta influência dos movimentos culturais acima referidos sobre a poesia caboverdiana anterior à eclosão do movimento político-cultural da Nova Largada não autoriza, no entanto, à desvalorização e/ou à subestimação, nem sequer à obliteração da pertinência histórica das diferentes modulações africanizantes e negritudizantes na funcionalização político-ideológica emancipatória da crioulidade caboverdiana, bem como dos fortes impacto e ímpeto mobilizadores do nacionalismo africano e do pan-africanismo político e o efeito de catarse cultural e libertação espiritual que exerceu o projecto da unidade Guiné-Cabo Verde no resgate e no renascimento da matriz africana da cultura caboverdiana e da nossa afro-crioulidade.

Aos impacto, pertinência e ímpeto mobilizadores acima referidos não foram alheias as repercussões do combate cívico, cultural e armado do movimento negro (ou afro-) americano e dos movimentos de libertação africanos, inseridos num mais geral revolucionarismo terceiro-mundista, e as influências das culturas do mundo negro, com destaque para a música (em especial, o jazz, o blues e os ritmos afro-caribenhos), a literatura, destacando-se, como já aludido, a francófona da Anthologie de la Nouvelle Poésie Négre et Malgache d’ Expression Française, de Senghor, e da poesia e da ensaística de Césaire de, por exemplo, Cahier d´un Retour au Pays Natal e Discours sur le Colonialisme, e incluindo a lusógrafa, com destaque para a brasileira de Jorge Amado, por exemplo, do romance Jubiabá, e a ensaística de abordagem dos valores e dos problemas do mundo negro, intermediada e veiculada pela Casa dos Estudantes do Império, pelo Centro de Estudos Africanos, pelas “repúblicas estudantis” coimbrãs, pelas revistas Mensagem e Présence Africaine, e por outras formas de intercâmbio e tertúlia político-culturais nacionalistas e pan-africanistas, vivenciadas pelos jovens intelectuais caboverdianos na capital do império, em Coimbra e em outras cidades universitárias portuguesas e, depois, europeias. Tanto mais e sobretudo quando se passou a encarar a crioulitude, a mulatitude e outras expressões da chamada caboverdianidade também como produtos de sociedades coloniais bem como das diásporas afro-ocidentais, produzidas ou dilaceradas pela mestiçagem racial e/ou cultural, e pelas políticas de assimilação às culturas europeias e de repressão, de forma mais subtil ou mais aberta, das manifestações culturais filiadas, ainda que parcialmente, na herança afro-negra.

3. Constitui assinalável testemunho das modulações acima referidas a poesia caboverdiana da afro-crioulitude (e/ou, se se preferir, da afro-caboverdianitude, da negro-crioulitude ou da negritude e da africanitude crioulas ou da cabo-verdianitude, como prefere dizer o Professor Pires Laranjeira para designar a fase literária africanizante da poesia caboverdiana de contestação política anticolonial), isto é, aquela poesia que referencia de forma positiva, inclusiva e assaz afirmativa a contribuição da matriz afro-negra na formação da crioulidade caboverdiana, evidencia a presença étnico-cultural e/ou étnico-racial do homem negro ou negro-mestiçado na sociedade caboverdiana e, sem necessariamente subestimar ou desvalorizar a ocidentalidade da cultura caboverdiana, implícita na construção simbólica e na vivência da nossa crioulidade (enquanto afro-latinidade), considera-a também inserida no vasto mundo negro, isto é, naquele espaço cultural onde se situam, em coexistência, em fusão ou em conflito com outras culturas, mormente as de origem europeia, as culturas negro-africanas, afro-negras e afro-europeias da África, das Américas e, cada vez mais, da Europa.

No plano político caboverdiano, tal postura culturalista conjuga-se com o pan-africanismo ou o nacionalismo africano, sendo este aspecto de longe mais relevante e politicamente pertinente que uma postura estritamente negritudinista, sendo provável que uma postura deste último teor poderia ter e pode ainda ameaçar a especificidade crioula de Cabo Verde no quadro de uma mais ampla diversidade cultural pan-africana.

Desde modo, a pugna pela africanitude política e cultural de Cabo Verde comprovou-se como de longe mais produtivo e de efeitos mais duradouros em termos catártico-identitários e político-estratégicos que uma negritude que reivindicasse uma exclusiva negro-africanidade dos caboverdianos ou sublinhasse reivindicações estritamente rácicas no quadro interno da sociedade caboverdiana das ilhas ou das diásporas.

3.1. A poesia da afro-crioulitide (ou, mais, impropriamente dito, da negritude ou/e da africanitude crioula, da negro-crioulitude) começou por ser uma poesia que se alimentava da mesma ambiguidade e ambivalência identitárias, características do pan-africanismo nativista, republicano e luso-patriota dos letrados caboverdianos, que, para efeitos de análise do assunto em referência, têm em Pedro Cardoso o seu mais insigne representante.

Pedro Cardoso, o Afro do seu muito profícuo pseudónimo para uma parte da sua produção jornalística, apóstolo do socialismo e de Marx, “o mestre venerando” (como consta do poema “Primeiro de Dezembro” de louvação do movimento sindical caboverdiano, publicado no livro Jardim das Hespérides, Famalicão, Tipografia “Minerva” de Cruz, Sousa & Barbosa, Lda, 1926), que, procurando integrar-se na transpátria lusitana (na “pátria monumental portuguesa”, como prefere dizer Gabriel Fernandes), enquanto português de lei e de pleno direito, igualmente combateu pela igualdade entre brancos e negros e entre “portugueses europeus e portugueses africanos”, pugnou, em especial nos seus célebres poemas “Ao Egipto” (in Folclore Cabo-Verdiano, editado em 1933 com reedição em 1986 da Solidariedade Cabo-Verdiana, organizada por Luís Silva com prefácio de Alfredo Margarido) e “Ode a África” (constante do supra-referenciado Jardim das Hespérides), e na sua coluna “A Manduco” do jornal A Voz de Cabo Verde (Praia, Março de 1911 - Setembro de 1918) pelo orgulho da África faraónica e esfíngica, da Cartago de Aníbal, da Abissínia (Etiópia) do Negus Menelik, da África resistente de Abdel Kader, da raça negra do Haiti alevantada com Toussaint-Louverture contra o colonial-esclavagismo, bateu-se pela justiça social e pela disseminação, numa perspectiva positivista, do saber e da instrução, enquanto baluartes da “civilização contra a barbárie” (na certeira interpretação do estudioso americano Russel Hamilton (constante do seu livro Literatura Africana, Literatura Necessária, volume II, Edições 70, Lisboa, 1984) e, finalmente, exaltou-se, exultando-se, pela valorização da mátria caboverdiana, da língua e das nossas raízes crioulas, ainda que com muitas reservas em relação às nossas manifestações culturais mais ostensivamente afro-crioulas (como o batuco e a tabanca de Santiago, no entanto recolhidas no seu Folclore Cabo-Verdiano, e, por isso, implicitamente valorizadas como manifestações culturais caboverdianas legítimas), ou em contraposição às nossas matrizes afro-negras, consideradas gentílicas).

A defesa do crioulo e a sua valorização poética mediante a estilização do folclore poético da ilha do Fogo constitui uma das vertentes mais notáveis e assinaláveis da faceta de intelectual de Pedro Cardoso. A poesia em crioulo desse nativista permite detectar as suas preocupações de justiça social e de dissecação da componente racialista da conflitualidade social caboverdiana da altura, como o atestam alguns textos poéticos publicados no acima referido Folclore Cabo-Verdiano e em outras obras da sua lavra.

Neste contexto, é de se destacar a luta extenuante desse grande nativista, do Langston Hughes cabo-verdiano (segundo qualificação de Teixeira de Sousa em entrevista a Michel Laban (Cabo Verde-Encontro com Escritores, Primeiro Volume, Fundação António de Almeida, Porto, s/d, 1989), desse importante precursor, com António Nunes, do nacionalismo caboverdiano no domínio da poesia em razão da sua pugna pela inclusão cívica e social da componente racial negra da nossa sociedade, particularmente pertinente se levarmos em consideração a exclusão social e a anatemização como preto-negros dos pretos e mulatos pobres da ilha do Fogo, o derradeiro e quase inexpugnável santuário do racismo da oligarquia branca crioula. Tal combate inseria, como referido, uma componente de referência pan-africanista e/ou de exaltação e de recorrência rememorativa às glórias passadas da África cartaginesa e da África esfíngica, faraónica e mediterrânica e do seu crucial papel na formação da cultura greco-latina e da cultura euro-ocidental, bem como o desconforto intelectual e civilizacional provocado pelo jugo colonial ocidental.

Ainda assim, não pode o pan-africanismo de Pedro Cardoso obnubilar a sua compreensão dos Negros no duplo sentido de raça martirizada que escavou as bases para a edificação dos alicerces do mundo ocidental, mas também “do sertão os rudes e tisnados filhos/Almas de neve em corpos de carvão”, necessitados, no dealbar da modernidade, da instrução e das luzes missionárias da civilização cristã e ocidental, simbolizada nos predicadores da palavra, da compaixão e do amor ao próximo propugnados por Jesus Cristo, nas lusas quinas e na língua de Camões. Assim, permanecia tal compreensão eivada de preconceitos assimilacionistas eurocêntricos, legitimadores de supostas mais-valias da empresa colonial e estigmatizantes da alegada selvajaria do homem negro-africano “do mato”, e do dilema positivista civilização versus barbárie, conforme detecta certeiramente Russel Hamilton na obra da sua lavra, acima referenciada. É o que uma leitura, ainda que breve, das belas estrofes do célebre, mas pouco divulgado, poema «Ode a África» (publicado na íntegra por Manuel Ferreira na terceira edição, de 1985, de A Aventura Crioula), deixa entrever e transparecer: “África minha, das Esfinges berço,/ já foste grande, poderosa e livre:/Já sob os golpes do teu gládio ingente/Tremeu o Tibre!//Como o soberbo baobá frondente,/Os longos braços levantando aos céus,/Ao longe fôste em iberinas plagas/Erguer troféus!//Do Tigre os vales e da Ibéria os ecos//O nome teu em tempos aprenderam;/E ao teu poder da Babilónia os filhos/Valor perderam!// Dos teus ousados barinéis ovantes/As ondas bravas do Interior aradas,/Por longos anos de opressão gemeram/Avassaladoras!// Entre os antigos já Cartago e Egipto/ Foram empórios de poder e fama/Por fim caíram… foram-lhe Calvário,/Pelúsio e Zama/Sim, foste grande, dominaste o mundo;/Mas hoje jazes sem poder sem nada./E ao férreo jugo das potências gemes/Manietada./Sôbre o teu corpo, ó meu leão dormente,/Vieram bárbaras nações sentar-se;/E quais harpias truculentas, feras, /Nele cevar//Ó Pátria minha idolatrada e mesta,/Quando nos campos de batalha erguias/Teus estandartes, forte,/Não sonharas/Tão tristes dias!/Se foste tu quem acendeu o facho/Que fez da Grécia a Glória peregrina/Porque hoje vergas para o chão a fronte/Adamantina?!/Vós que do túmulo dormis à sombra,/«quebrando a lousa do feral jazigo»,/Surgi!

Erguei-vos desse pó, guerreiros/Do Egipto antigo/E tu, Aníbal, imortal caudilho,/Que a teus pés viste Roma prosternada,/Ergue-te e empunha novamente a lança/P’la Líbia amada!/Cavalheiroso Abdel Kader e Negus/E vós, valentes filhos dos sertões,/A lanças, chuços expulsai-me todas/Essas nações!//Mas que digo? Antes repousai, guerreiros/Bem-vinda seja a paz, seja bem-vinda!/Longe, canhões a vomitar metralhas/E a paz infinda!//África minha, das Esfinges berço, / A voz escuta que te chama e brada:/ “Não vês além erguer-se a madrugada?/Por tanto tempo à luz cerraste os olhos,/A doce lei de Cristo desprezando./ Mas eis agora o fim da ignava noite/E o sol raiando!//Curvai os ramos ´té o chão, olaias!/Leões, rugi na vossa soledade,/Saüdando a estrêla fulgorosa e linda/Da liberdade!//Deixai, deixai que se derrame prestes/A luz da fé no inóspito sertão,/E, a-par-e-passo, profligando as trevas,/A da instrução!//Missionários mais que heróis ousados,/Sede bem-vindos! Nobres mensageiros/Da Boa Nova por Jesus pregada,/Sóis verdadeiros!//Não cobiçais riquezas deslumbrantes,/Não vindes, não, pelo oiro que seduz;/Ferro homicida não vibrais: vossa arma/É uma cruz!//No cumprimento da missão sublime/Tudo afrontais em nome do Senhor/Golpes, insultos, frio e fome, doenças,/. A morte, o horror!//Buscar não vindes, trazer sim, pioneiros!/Da augusta crença a árvore frondosa/ Plantai,/ Apóstolos da paz, na Líbia/Triste e inditosa!///A amar as lusas quinas ensinai-lhes/E a orar a Deus na língua de Camões! Breve outros vates ouvireis cantando/Novos varões/(…)//Egipto! berço da Isis lacrimosa,/Do sacro Nilo de caudais enchentes:/Pátria de Faraós armipotentes/E da Hipatia e Cleópatra formosa!/(…) Ergue-te, pois! e o jugo anglo-otomano/Sacudindo, proclama soberano/A tua independência entre as nações!/Que no halo envolto de uma glória infinita,/Do alto dessas pirâmides ainda/Lanças ao mundo rútilos clarões/***/Vós sois, vós sois Pirâmides de Mênfis/de heróicos feitos poema imorredoiro/Em que se gravam dos Menés, os nomes/Em letras de ouro! (…) Rubras de glória, as Águias napoleónicas/Viste passar altivas, vencedoras…/ E hoje, que é delas? Pó e cinzas, trevas/Aterradoras!// Cantai, tem cada povo a sua Ilíada!/Cantai da Líbia as sempiternas glórias!/Que pergaminhos há de tão brilhantes/E altas memórias”.

Dir-se-ia que o poema se espartilha, dilacerado, entre, por um lado, uma consciência eufórica, rebelde e pan-africanista, que, celebra figuras gloriosas da História africana, como o cartaginês Aníbal, bem como alguns proeminentes heróis e mártires da resistência africana à empresa colonial, como Abdel Kader ou o Négus da Abissínia, exalta o esplendor do antigo Egipto e desafia o Egipto dos tempos seus contemporâneos a libertar-se do jugo colonial anglo-otomano e, por outro lado, uma consciência conformada, manietada pela educação escolar cristã-ocidental e pela percepção da inelutabilidade (da inevitabilidade), tida, todavia, por necessária, da colonização “civilizadora” europeia, ou domesticada pelo patriotismo luso e pela crença nas vantagens da disseminação da civilização cristã e ocidental, não pela força das armas, mas pela força persuasiva do cristianismo e da sua “intrínseca bondade”. Trata-se, pois, segundo Pedro Cardoso, da salvação do homem africano não só da sua alegadamente pagã ignorância em relação à doutrina cristã, como também do desconhecimento, não só das suas glórias próprias, passadas, e do seu contributo para a edificação da civilização ocidental e para a civilização do universal (para utilizar a emblemática expressão cunhada por Senghor), como também do seu resgate das trevas de uma suposta barbárie, radicadas, iletradas e pré-científicas, no sertão africano, mas também na glória efémera da altivez dos conquistadores europeus, representados pelas águias napoleónicas, carregadas de orgulhosa fatuidade.

Afinal, as pirâmides de Mênfis sobreviveriam à sanha colonial, para testemunhar a eternidade, qual “poema imorredoiro” da “África, das esfinges berço”, e o ressurgimento de uma África vindoura, próspera e orgulhosa dos seus feitos, protagonizados por “novos varões” africanos e devidamente cantados pelos seus vates (“breve outros vates ouvireis cantando/Novos varões”), pois que “cada povo tem a sua Ilíada” e são “sempiternas as glórias da Líbia” (neste caso, sinónima da África toda) e “brilhantes os seus pergaminhos” e “altas as suas memórias”.

3.2. De aparente incompreensão fundada em “civilizado e jocoso distanciamento” parece ser a postura poética de António Pedro perante manifestações da cultura caboverdiana mais ostensivamente afro-crioulas, ou, até de outras, como a morna, então considerada pela generalidade da elite caboverdiana de todas as gerações como arquetípica de uma sensibilidade pan-crioula e irrefutavelmente “nobre”, porque supostamente de filiação europeia.

Anote-se que, como é natural, ainda não tinham José Ramos Tinhorão e Vasco Martins empreendido os seus estudos respectivamente sobre a origem afro-brasileira do fado e a filiação da morna no lundum, também de origem africana (nomeadamente nas obras Os negros em Portugal: uma presença silenciosa) (Editorial Caminho, 1988); (Fado: dança do Brasil, cantar de Lisboa, o fim de um mito), Editorial Caminho1994); Domingos Caldas Barbosa - O Poeta da Viola, da Modinha e do Lundu (1740-1800) (Editorial Caminho, 2004), todas de Ramos Tinhorão; e na obra A música tradicional cabo-verdiana – I - A morna (Instituto Cabo-Verdiano do Livro e do Disco, Praia, 1989), de Vasco Martins).

É o que o neste ano tornado nonagenário livro Diário, de António Pedro Costa (Imprensa Nacional de Cabo Verde, Praia, 1929), fundador da modernidade poética caboverdiana, comprova:

O batuque (batuco, na terminologia actual também em língua portuguesa) é para o sujeito poético “bacanal”, “dança doida” de “pobres selvagens”, “meneio de ancas e ombros num desvario”, “bebedeira bamba duma cópula carnal”, em que os passos da “dança dela” (“da negra” imaginada “nua e macia”) todavia, extasiam por demais o poeta-espectador. A morna, por sua vez, é considerada “reminiscência de um fado/que dançado/num maxixe,/tem a tristeza postiça/dum cansaço”, “um semicivilizado/lasso/ balanço/ embalado/ sobre o ventre dum fetiche” que “bole/mole,/já velha sem ser antiga,/num compasso de cantiga/sexual”.

Note-se que a visão do batuco constante do Diário, de António Pedro não se diferenciava quer da visão dos nativistas, de que são exemplares as palavras de Pedro Cardoso no seu Folclore Cabo-Verdiano ou a descrição de uma sessão de batuque (batuco) no romance O Escravo, de José Evaristo de Almeida (Edições ALAC, 1989), o fundador da prosa de ficção caboverdiana, quer ainda da sua vituperação pela Igreja Católica, pelas autoridades coloniais e pelas elites urbanas instruídas nos códigos mentais ocidentais, à semelhança, aliás, da tabanca, “esse pobre resquício”, como a caracterizou Baltasar Lopes, em “vias de extinção ou mesmo desaparecida”, anatemizada como “vergonhosa reminiscência africana”, como refere o poema “Reminiscência” de Virgílio Pires (publicado no primeiro volume de No Reino de Caliban, de Manuel Ferreira) para caracterizar a ambiência de perseguição que envolvia as tabancas das Achadas da cidade da Praia nos anos imediatamente posteriores à Segunda Guerra Mundial, ambiência essa também referida, de uma forma genérica, por Manuel Duarte no texto/panfleto político de A. Punói, publicado postumamente no livro Cabo-verdianidade e Africanidade, e Outros Textos (Spleen-Edições, Praia, 1998). Mesmo no que se refere à morna, género musical que, como assevera João Manuel Nobre de Oliveira no artigo “A longa costela cabo-verdiana de António Pedro”, publicado nos nrs 39/40 de Outubro/Novembro de 2001 do jornal-revista Artiletra, ele muito prezava, particularmente na voz “lisboeta” de Titina Rodrigues, o poeta não deixa de ressaltar, com os meios estéticos ironizantes do surrealismo, as suas semelhanças, melancólicas e saudosistas com o fado, sem deixar de relevar o que tem de especificamente caboverdiano, nomeadamente a sensualidade da dança, de sabor afro-tropical, e o apelo da carne, insistentemente condenado pela Igreja Católica e pela moral então dominante. A postura irónica de António Pedro alarga-se ao ambiente racial então vivido na sua cidade natal da Praia (“Os brancos daqui/são mais modestos que os pretos:/os pretos chamam-se pretos, os brancos chamam-lhes gente daqui,/e aqui…/há brancos e pretos…”), e, até, à sacrossanta chuva) “chuva que bonda!,/chuva que tomba/-bumba!.../cheiro a chuva que embriaga…/chuva que alaga,/e estraga o mar de sol./Esverdinharam-se os montes/-um poema!- (…) Eram castanhos os montes/e as árvores esgadalhadas,/e atormentadas,/e nuas…(…) E os meus olhos cansaram-se, coitados!, /esverdinhados também (…)”).

3.3. Por seu lado, o claridoso Jorge Barbosa (vide Obra Poética de Jorge Barbosa, recolha e organização de Arnaldo França e Elsa Rodrigues dos Santos e prefácio de Elsa Rodrigues dos Santos, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, Lisboa, 2006), interpretando no poema “Povo” o homem caboverdiano como “conflito numa alma só/de duas almas contrárias buscando-se/amalgamando-se /numa secular fusão;/ conflito num sangue só/do forte sangue africano/com o sangue aventureiro/dos homens da expansão;/conflito num ser somente de dois pólos em contacto/na insistente projecção/de muitas gerações”, denota também uma compreensão do povo caboverdiano como resultante da fusão identitária da África e da Europa, ficando na sua alma “esta ansiedade profunda/-qualquer coisa de indeciso/entre o clima tropical/e o espelho de Portugal…”. “Espelho de Portugal” esse, no qual as criaturas crioulas caboverdianas se miram e onde a África, ainda sobreviva, se embacia cada vez mais, mas continua acenando… (do poema “…..”

Não obstante tal compreensão, ou exactamente por sua causa, Jorge Barbosa não omite no inventário poético das manifestações culturais crioulas, em que se destacam a morna e o seu mais emblemático rosto, o violão (por exemplo, nos poemas “Morna”, “Violão”, “Irmão”), aquelas expressões culturais ostracizadas pelas elites e pelos poderes coloniais, como o batuco (“o delírio do batuque no terreiro!/ Vadias de Santiago/contorcionando/espasmando/ os ventres/no ritmo quente/do batuque/-essa dança ancestral!...” (in poema “Ilhas”), a tabanca (Ficaram nas tabancas/lembranças e gritos/e espíritos até/de avós invisíveis/da Guiné!” (poema “Ilhas”), o badju’l gaita ritmado pelo harmónio e pelos ferrinhos de Santiago (por eemplo, no poema “Ilhas”), os tambores de São João da Ribeira Julião, na ilha de S. Vicente, mas também típica de outras ilhas de Barlavento (no poema “Tambores de São João”), bem assim, como referido no poema “Ilhas”, as vadias (badias, na grafia e na pronúncia correctas), com destaque para “A moça que foi ao batuque” e a “Pretinha dos Picos”, à qual se interpela, indagando comiserada e fraternalmente: “Onde o harmónio,/velho companheiro dos teus avós?/Não mais o seu canto/confidenciando queixas/e males antigos,/ainda sem remédio,/não mais o seu canto/longínquo e melancólico,/pairando na calma/nocturna da ilha.//Onde os batuques/contigo dançando/na toada dolente/e metálica da viola,/ao coro insistente/do coro e das palmas?//Vozes remotas de África/rumores seculares/da África-mãe,/ressoando nas almas,/ecoando ao longe/na noite quente/da ilha esquecida!”.

Interpelação e indagação também extensivas a outras mulheres, pretas (ou não), socialmente marginalizadas ou não (como nos poemas “Meninas Portuárias”, “Momento Suburbano” e, do “Romanceiro dos Pescadores”, “As Mulheres# “Os Meninos e as Mães”, “As Carregadeiras de Peixe”), ressaltando a sua vitalidade, como no “Poema do mar” (“as coxas ágeis das negras” conjugando-se com “o corpo das raparigas morenas”), demorando-se, como no poema “O Baile”, nas “dolências da morna” e na “mãe embalando a um canto, adocicado pela morna, o menino da cor de ébano polido”.

Do mesmo modo, invectiva a segregação racial nos Estados Unidos da América, designadamente no poema “John de Birmingham” (“John/de Birmingham/ Alabama/ USA//entrou na tabacaria.//Foi insultado/ soqueado/ expulso.//Na rua/o polícia/espancou/ derrubou/ cuspiu/ prendeu o desordeiro.//Negro safado!”); desvela a tragédia dos homens cativos na nau negreira, designadamente no poema “Relato das Nau”, o qual, com o poema “Prelúdio” sobre a chegada do descobridor à primeira ilha, anuncia os primórdios, neste caso absolutamente trágicos, do povoamento das ilhas (“Era antigamente/a primeira nau de escravos/no rumo do Arquipélago/rápida navegando/sob o impulso dos alísios/Tinha o bojo amplo/tal como como convinha/ao transporte de cativos/no porão aglomerados. //A nau era negreira (…)”); denuncia, em 1966, com inusitadas e tocantes veemência e profundidade, quiçá nunca dantes atingidas noutros poetas caboverdianos maiores (mesmo os mais contestatários, como Ovídio Martins e Gabriel Mariano), as condições de recrutamento, viagem, trabalho, regresso e vida dos contratados caboverdianos para as roças das “ilhas do Golfo da Guiné (“Serviçal, uma escala/acima do escravo,/refugo de um povo,/ninguém afinal.//Lembrado apenas/no inútil canto/e na recalcada/revolta dos poetas/da nossa terra.//A quantos aproveitam/a tua miséria/e o teu corpo magro/marcado pelos ossos (…) Por cada inscrição/para a faina nas roças/tens cotação fixada/nas contas da Soemi.//Em moedas o prémio/dos agentes dispersos/e atentos pelas ilhas.//Cinquenta de selos /cobrados para o erário/cento e cinquenta ainda/para os fundos da Assistência/ (ironia pungente/a tua sorte, serviçal,/ com previsão e receita/no orçamento do Estado!)//Total trezentas/moedas por cabeça,/ multiplicação generosa/das trinta moedas bíblicas/ao câmbio dos roceiros”), aludindo ademais aos trabalhadores originários do continente africano (“Longos anos não há, /dos confins de Moçambique/e de Angola levavam/ homens válidos para as roças/de São Tomé e Príncipe// Na história dessa aventura,/passada de voz em voz/pelas distâncias do Império,/conhecidos ficaram/ por voluntários da corda.//O sistema adoptado/era fácil e prático,/de simplicíssima sequência,/sem delongas formais:/ requisição, o pouco mais,/do Chefe do Posto ao Soba,/corda apertada nos pulsos/- e o embarque se fazia/sem demoras e despedidas”); disseca o destino dos seres humanos perdidos na voragem da História e na desventura, quinhentos anos após o achamento, como, por exemplo, no poema “Descoberta” (“Dramáticas ilhas/Deus amoldou-as/virgens e rubras/com as lavas espessas/de um vulcão submerso//Depois rodaram/milénios e astros/ exactos no espaço/até que chegaram/as caravelas bojudas//Eram nautas que vinham/do Promontório de Sagres/homens de peito largo/ audazes e queimados/pelo sol e pelo suão//Gente de rude fala/e barbas longas ao vento/com vítreos resíduos/húmidos ainda/das espumas oceânicas//Assim foram um dia/as ilhas descobertas/para a glória d´El Rei/Afonso Africano/e a nossa desventura”), no longo poema “Meio-Milénio” (“1460/ano histórico/do Achamento/para a glória/d´El Rei Afonso V/e provação de todos nós.//1960/sétimo/na ordem/do Plano de Fomento//Duas datas/facílima contagem/de 5/séculos vazios//(…) 5 séculos/sem história/mas com muitas histórias/para contar//5 séculos/tristes e lentos/de longa penitência/vincados e sofridos/na alma/atormentada das ilhas/guardados ainda/nos recessos da memória.// ), refere-se à “ilha saqueada e perdida nos mares do sul” (no poema “Posse”) e, no poema “África” (dado à estampa pela segunda vez, e conjuntamente com os poemas “Relato da Nau” e “Júbilo”, na Publicação Comemorativa do Cinquentenário de Claridade), a uma África negra, que, não obstante ser entendida como guerreira, bárbara e exótica (“ÁFRICA, dos teus tambores/em cuja cadência guerreira e bárbara,/reconstituo pretos ágeis e tatuados/dançando e lutando./A tua natureza exuberante/possui um sentido oculto que convida,/a gente das tuas selvas/para o festim incessante/da camaradagem da vida/vivida com alegria ao ar livre,/e para os desejos naturais que o sexo dá!”), uma África dir-se-ia inspirada nos postais ilustrados dos safaris, onde “artistas de infantis ingenuidades/talham em pedaços de madeira/coloridos animais estranhos, divindades, para apetecido tesoiro/das virgens nuas dos sertões”, é também retratada como vítima da espoliação colonial (“ÁFRICA!/no teu corpo não sararam ainda as feridas/das renhidas/ pelejas de assaltos rapaces/feitas para as glórias das conquistas/e para o prestígio dos impérios//pairam ameaças ainda/dos dominadores/senhores/do teu destino!”). É essa mesma África que é inventariada nas suas imensas riquezas (“ÁFRICA!/ do sol forte que dá vida à terra/ (…) ÁFRICA!/ na tua fauna há todas as maravilhas da criação/todos os concertos, todos os ruídos (…)”) e considerada como repositório de uma vitalidade primordial que a desembaraçaria do jugo estrangeiro, quando soasse a sua hora clarim (“ÁFRICA, (…) À beira dos teus rios,/à sombra das tuas sevas,/ao calor do teu sol,/no teu ventre fecundante/dormem as energias da tua raça, / até vir a hora arfante,/a hora clarim da tua manhã triunfante”)

É a compreensão do povo caboverdiano como um povo mestiço, depositário de uma herança cultural afro-europeia (afro-latina, para ser mais preciso) que explica o especial afecto que Jorge Barbosa nutre pelo Brasil, como se detecta no poema “Você, Brasil” (“Eu gosto de Você, Brasil,/porque Você é parecido com a minha terra./”). Nessa aproximação identitária plasmada no poema “Você, Brasil”, abarca-se componentes culturais, curiosamente remontando algumas à economia e à sociedade escravocratas (“Nós também temos a nossa cachaça,/o grogue de cana que é bebida rija./Temos também os nossos tocadores de violão/e sem eles não haveria baile de jeito/ (…). Temos também o nosso café da ilha do Fogo/que é pena ser pouco,/mas- Você não fica zangado?-/é melhor que o seu”), climatéricas, incluindo as tragédias humanas delas advenientes (“as secas do Ceará são as nossa estiagens,/com a mesma intensidade de dramas e renúncias./ Mas há uma diferença no entanto:/é que os seus retirantes/ têm léguas sem conta para fugir dos flagelos,/ao passo que aqui nem chega a haver os que fogem/porque seria para se afogarem no mar.”). Nessa aproximação identitária do Brasil atribui-se especial valor às componentes afro-negras de ambas as culturas irmãs de matrizes luso-africanas (“É o seu povo que se parece como meu,/é o seu falar português/que se parece com o nosso,/ambos cheios de um sotaque vagaroso,/de sílabas pisadas na ponta da língua,/de alongamentos timbrados nos lábios/ e de expressões terníssimas e desconcertantes./É a alma da nossa gente humilde que reflecte/a alma da sua gente simples,/ambas cristãs e supersticiosas,/sentindo ainda saudades antigas/dos sertões africanos,/ (…) O gosto dos seus sambas, Brasil, das suas batucadas,/dos seus cataretês, das suas toadas de negros,/caiu também no gosto da gente de cá,/que os canta e dança e sente/com o mesmo entusiasmo/e com o mesmo desalento também./ As nossas mornas, as nossas polcas, os nossos cantares,/fazem lembrar as suas músicas,/com igual simplicidade e emoção. (…)”)

Numa irreverência que denota sobretudo uma visão progressista e de solidária comunhão com os desprotegidos, com o cabo-verdiano anónimo, humilde, meu irmão, e contrariadora da ideologia e da praxis do Estado Novo português colonial-fascista, dá sinais de querer superar a muita resignação e a fininha e silenciosa revolta melancólica que inundavam a paz burocrática do homem que o habitava, a ele que, no poema “Panfletário”, se sonhava poeta contestatário (leia-se revolucionário).

A “heteronímia” subversiva é, todavia, insuficiente para lhe propiciar o corte político-ideológico para a ruptura nacionalista, não obstante as décadas, vazias de realizações e de muito abandono, o meio-milénio colonial de provações, como amiúde denuncia na sua poesia, em especial em textos marcantes como os já referidos “Povo”, “Relato da Nau”, “Panfletário”, “Meio-Milénio”, “África”, “John de Birmingham” e em outros, igualmente exuberantes de inconformismo, tais como “Casebre”, “Onde” e “Júbilo”, uns editados em vida, outros dados à estampa postumamente em livros e publicações periódicas, depois integrados na sua Obra Poética, editada pela Imprensa Nacional/Casa da Moeda, de Portugal.

A explicação poderá radicar no capítulo V (“Presença”) do poema “Meio-Milénio”, de muita e irreprimível denúncia:” 5 séculos/de abandono/e retardado progresso./Apesar de tudo/Portugal presente em nós/nos nossos males/nas nossas queixas e súplicas/nas nossas esperanças/nos nossos anseios./5 séculos/ sem eco/na nossa felicidade./Apesar de tudo/Portugal presente em nós/pela bondade e ternura/que nos ensinou/pela civilização que nos deu/pelo sangue/fala/arrogância/valentia/virtudes e defeitos/que nos legou/pelos distantes rumos/da navegação e da aventura/que nos apontou/e porque fez de nós/ humanas e variáveis criaturas/cordiais e brandas no convívio/no amor violentas e volúveis. /5 séculos/não perdemos/a fé e o optimismo./Apesar de tudo/Portugal presente em nós/no fundo reflectido/do espelho que nos deu/para nos mirarmos/à sua imagem/(na outra face que o tempo/vai aos poucos embaciando/África ainda/por nós acenando)./(…) 5 séculos/e outros/e outros depois./Apesar de tudo/Portugal presente/nas nossas almas/ melancolicamente/eternamente”.

3.4. Curioso é também o resgate por parte de Osvaldo Alcântara (pseudónimo de Baltasar Lopes da Silva para a escrita da poesia) de manifestações afro-crioulas ou indiciadoras de forte presença da co-matriz afro-negra, como uma das matrizes do homem crioulo “de depois”, como se verifica no poema “A Terra Roxa de Massapés” (publicado pela primeira vez no “Suplemento Literário” do Diário de Lisboa, de 16 de Agosto de 1935, e reeditado na Publicação Comemorativa do Cinquentenário da Revista Claridade): “Cavador crioulo, que fazes/debruçado sobre a terra roxa de massapés?/Que segredos escutas há quatrocentos anos?/Que raízes tenazes te prendem/ao ventre tirano da tua amante,/amortalhada na erva rala das achadas?/Um dia chegaram às tuas ilhas de basalto/ homens de rosto queimado ao sol do mar largo (…) /tinham os olhos povoados de imagens,/imagens de Preste João,/ imagens da terra verde e ouro do Brasil./Mas as tuas ilhas venceram-nos; envolveram-nos num abraço feito de/ nostalgias/inaugurações/esmagamentos de montanhas… /Semearam nas rochas das ilhas os farrapos das belezas de além-mar perdidas,/para sempre perdidas,/para além, muito para além do horizonte….Mistérios inauguratórios da madrugada colonial…./Antemanhã de Cabo Verde… (…) Depois,/a terra tingiu-se de dorsos negros/curvados no drama das plantações,/E um gemido secular varou as tuas ilhas (…) Era a angústia,/o banzo/do teu avô da Costa d’ África…/Cavador crioulo/ai o teu avô longínquo/curvado/na dor das plantações!/Mas logo,/no engenho/na sombra das ribeiras/na extensão rala das achadas,/foi o drama/foram as núpcias/(O ritmo do batuque/perturba/e chama para os ritos eternos do amor…/Cavador crioulo,/que fizeste aos teus velhos deuses?/Xangô, Orun, que te morde na torreira das achadas,/Oxu, que te faz sonhar nas serenatas de violão e cavaquinho,/Iemanjá, que te atrai e mata na sua casa no fundo do mar…/Porque não cantas nos terreiros/malé, malé, assim comba sembelelé?/Que te deixaram?/Tua alma híbrida/presa/ao sortilégio da terra,/à inquietação do mar./Deixaram-te a herança pesada de depois./(oh o depois mestiço/nascido/do crepúsculo de hoje/e da madrugada de amanhã)”.

Num outro escrito, “Poema a Jorge Amado”, também publicado pela primeira vez no “Suplemento Literário” do Diário de Lisboa, de 16 de Agosto de 1935, e reeditado na supra-referenciada Publicação Comemorativa do Cinquentenário da Revista Claridade, Osvaldo Alcântara rememora as personagens e expressões afro-brasileiras dos romances de Jorge Amado para estabelecer laços sentimentais e conexões crioulas entre os dois países atlânticos, construídos sobre idênticas raízes antropológicas. De todo o modo, alguns versos soam inesperados, se nos reportarmos à almejada “diluição de África”, teorizada por Baltasar Lopes da Silva no ensaio Cabo Verde visto por Gilberto Freyre, e à escassa recepção da conflitualidade socio-racial dos romances nordestinos do então revolucionário Jorge Amado na ficção dos claridosos-fundadores: “A Jorge Amado esta voz do irmão desconhecido: (…) Para que Zumbi dos Palmares ilumine também/os meninos de ponta-de-praia, os rocegadores de carvão e as velas dos faluchos/e a Princesa de Aioká leve os meus marinheiros para o seu palácio do fundo do mar/Para que o moleque Balduíno pegue novamente as goiabas-de-vez/Finita esteve ouvindo atabaques e gongás no candomblé do pai de santo Jubiabá (…) “.

Escreve Arnaldo França nos seus “Comentários” ao Cântico da Manhã Futura, de Osvaldo Alcântara, constantes da Publicação Comemorativa do Cinquentenário da Revista Claridade, que os dois poemas de Osvaldo Alcântara, parcialmente transcritos acima, são “dos mais impregnadamente brasileiros” e, por outro lado, “denunciadores de uma posição do ortónimo de Osvaldo Alcântara, nos últimos anos reforçada, quanto ao carácter euro-africano combinatório, e não de mistura, do homem cabo-verdiano”.

Curiosamente, os dois poemas, acima transcritos (“Terra Roxa de Massapés” e “Poema para Jorge Amado”) foram reeditados na Publicação Comemorativa do Cinquentenário da Revista Claridade, tal como, aliás, o poema “Almanjarra” (publicado na revista Claridade), não integrados no livro Cântico da Manhã Futura (Banco de Cabo Verde, Praia, 1986), de Osvaldo Alcântara, por decisão, presume-se que absolutamente soberana, do próprio Baltasar Lopes da Silva.

Relembrem-se neste contexto as referências de Osvaldo Alcântara a negros norte-americanos, nomeadamente em “Canção da minha rua” dos “Quatro poemas do ciclo da vizinha”: “(a vizinha lembrou-se de que há negros americanos,/há pássaros cantores de outras florestas,/há caboclos, há poetas do morro,/e a sua canção sobe alvoroçada/como um abraço para todos continentes”) e no poema “Meteorologia na terra zero no mês de setembro de 1972”, (neste caso, a um insólito Malcom X, como se verifica no seguinte excerto: “Metam, metam todos os plurais, colectivos, metam também/(Por favor)/Joana Hermínia Silva, 33 anos, solteira/mãe-de-filho/filha de/Severino Bento Lizardo/e/Joana Apolónia Silva (Ó Malcom X!)/que comeu papa de DDT e agora,/agora, irmãos!”.

3.5. Como anteriormente aflorado e amplamente fundamentado no meu ensaio acima referido, é com a Geração da Nova Largada que se consolida a praxis poética de resgate da vertente afro-crioulista e da dimensão africana da cultura e do destino políticos africanos do povo das ilhas. Essa praxis indiciara-se já com a poesia de reivindicação pan-africanista de Pedro Cardoso, com as reminiscências poéticas negristas e afro-crioulistas de António Pedro Costa, Jorge Barbosa e Osvaldo Alcântara, e com outros poetas precursores ou, mais tarde, contemporâneos do movimento da Nova Largada, alguns deles mais tarde integrantes do mesmo movimento político-cultural nacionalista e independentista.

É o que se verifica de forma assaz cristalina em António Nunes, do poema “Ritmo de Pilão”, Aguinaldo Fonseca, do poema “Herança”, Guilherme Rocheteau, do poema “Presença de Gilberto Freyre”, Amílcar Cabral, dos poemas “Rosa negra” e “Naus sem Rumo”, Jorge Pedro Barbosa, do poema “Mudjeris di Hoji”, Virgílio Pires, do poema “Reminiscência”.

Nesses poemas é uma África presente na história e no quotidiano do arquipélago (o avô escravo, a noite tropical, o ritmo do pilão, a mulher negra, a tabanca, o batuco, o fuco-fuco (isto é, o funaná), a perseguição pela igreja e pelas autoridades coloniais de manifestações culturais afro-crioulas, porque alegadamente lascivas, a renegação cultural por efeito de uma suposta modernidade, etc.) que é evocada e invocada.

É Aguinaldo Fonseca que escreve no poema “Herança”:” O meu avô escravo/legou-me estas ilhas incompletas/este mar e este céu./As ilhas por quererem ser navios/ficaram naufragadas/entre mar e céu./Agora vivo aqui/e aqui hei-de morrer (…)/Ah meu avô escravo/como tu/eu também estou encarcerado/neste navio fantasma/ eternamente encalhado/entre mar e céu (…)”.

Para Pires Laranjeira, que presta especial atenção a Aguinaldo Fonseca, “ao publicar alguns poemas negritudistas no livro Linha do Horizonte (1951), Aguinaldo Fonseca torna--se o primeiro poeta caboverdiano a usar a África e o negro como temas propícios a uma leitura de compromisso rácico, num arquipélago e numa cultura que tem passado por intocado pela herança negritudinista” (in Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, Universidade Aberta, 1995).

Também exumando o passado escravocrata, escreve, por sua vez, António Nunes no poema “Ritmo de Pilão” (publicado no nº 108, de 1956, do Boletim Cabo Verde e, depois, na antologia No Reino de Caliban, de Manuel Ferreira): “Bate, pilão, bate/que o teu som é o mesmo/ desde o tempo dos navios negreiros,/dos morgados,/das casas grandes,/e meninos ouvindo a negra escrava/ contando histórias de florestas, bichos, de encantadas…/ Bate, pilão, bate/que o teu som é o mesmo/e a casa grande perdeu-se/o branco deu aos negros cartas de alforria/mas eles ficaram presos à terra por raízes de suor./Bate, pilão, bate/que o teu som é o mesmo/desde o tempo antigo/dos navios negreiros…/(Ai os sonhos perdidos lá longe!/Ai o grito saído do fundo de nós todos/ecoando nos vales e nos montes,/transpondo tudo…/Grito que nos ficou de traços de chicote,/ da luta dia a dia,/e que em canções se reflecte, tristes)/Bate, pilão, bate/que o teu som é o mesmo/e em nosso músculo está/nossa vida de hoje/feita de revoltas!.../ Bate, pilão, bate!..”.

Saliente-se que a invocação de África nos poetas acima referidos ocorre de forma paralela à exumação etnológica de determinadas manifestações culturais, negro-africanas, na terminologia de Manuel Duarte, ou representativas de “pobres resquícios” (como se refere Baltasar Lopes da Silva em relação à tabanca), “vivazes sobrevivências da África Negra” (segundo Félix Monteiro), ou demonstrativas da diversidade cultural do arquipélago/ continente cultural cabo-verdiano (segundo a feliz expressão de Gabriel Mariano) e das nossas matrizes e faces culturais (segundo Manuel Duarte).

Tal trabalho foi empreendido sobretudo por Félix Monteiro (em relação à tabanca e às festas da bandeira da ilha do Fogo) e Baltasar Lopes (em relação ao cancioneiro poético de Santiago abordado no ensaio “O Folclore Poético da Ilha de Santiago”, publicado no nº 7, de Dezembro de 1949, da revista Claridade, e a aspectos linguísticos do idioma cabo-verdiano, abordados nalguns ensaios publicados na revista Claridade, nomeadamente “A Linguagem das ilhas” e “Uma Aventura Românica nos Trópicos”), para além das recolhas e da estilização da poética tradicional de Santiago por Gabriel Mariano, num esforço de compreensão da totalidade da cultura radicada em Cabo Verde, por um lado, e numa atitude de registo, dir-se-ia “museológico”, daquilo que, segundo alguns deles acreditavam, estava destinado a desaparecer, como estariam congenitamente condenadas a desaparecer todas as manifestações culturais de raiz negro-africana, quer por força do alargamento da área de jurisdição do mulato e da mestiçagem cultural, ou por sua reencarnação e diluição (enquanto “África”) no substrato crioulo comum, de “predominância europeia”, quer ainda por força da repressão por parte da Igreja Católica, da Escola e das autoridades coloniais.

Interessante é que acresce o interesse na preservação, e, até, na revitalização dessas manifestações culturais, quando nelas se divisa qualquer influência europeia relevante, como parece acontecer com Baltasar Lopes da Silva, quer em relação ao crioulo, quer em relação às letras da finason, nas quais ele divisa influências do cancioneiro português medieval. Por outro lado, a postura de Baltasar Lopes da Silva, e do seu pseudónimo poético Osvaldo Alcântara, de resgate memorialístico de manifestações culturais que ele, na sua pele de ensaísta, viria a considerar como condenadas à extinção, é também visível no romance Chiquinho, no qual são várias as referências às histórias da escravatura pela voz de Nha Rosa Calita e à vivência do batuco, pelo próprio Chiquinho, na tida por plena e exemplarmente crioula sociedade sanicolaense.

Para Félix Monteiro, que nem sempre parece convencido da inexorável fatalidade da morte dessas manifestações culturais, as quais considera mais sincréticas que puramente (negro) africanas, para além de vivazes e plenas de pujança e vitalidade, o caminho deveria ser o da reutilização e revitalização em trajes modernos, como, aliás, aconselha no que se refere ao aproveitamento do ritmo africano das festas do pilão em orquestras modernas, ou a transformação dionisíaca das festas da tabanca, esgotadas que estariam, ou viriam a estar, as suas virtualidades e potencialidades religiosas, ideia a que depois aderem tanto Baltasar Lopes como Gabriel Mariano.

3.6. Interessante é a démarche poética de Gabriel Mariano num dos mais icónicos poemas caboverdianos de todos os tempos que é “Capitão Ambrósio” (in Ladeira Grande, Nova Vega, Lisboa, 1991), não só pelo seu teor desassombradamente combativo, mas também pela reinvenção/transfiguração da pessoa real que dirigiu a revolta contra a fome, o mestre-marceneiro Ambrósio, homem do povo, branco de olhos azuis (como esclarece Baltasar Lopes da Silva em entrevista a Michel Laban, constante do livro Cabo Verde-Encontro com Escritores, volume 1), em “mulato Ambrósio”, “capitão do povo” rebelde, marchando sob a negra bandeira da fome. Mulato como a maioria do povo caboverdiano, com excepção da população da ilha de Santiago, ilha da qual os negros constituíam a maioria (cerca de 61%, para cerca de 31% de mestiços e 1% de brancos, sendo que na ilha do Maio os negros constituem quase metade da população (44%), para 55% de mestiços e 2% de brancos, pelo menos, em 1950, segundo dados estatísticos constantes do livro Compreensão de Cabo Verde, de Nuno Miranda, publicado, em 1963, pela Junta de Investigações do Ultramar), devendo-se todavia anotar que em termos absolutos, era na ilha de Santiago que residia também a (quase) maioria dos mestiços caboverdianos.

Com a transmutação fenotípica e rácica acima efectuada, logra Gabriel Mariano criar uma certa sintonia entre os seus estudos ensaísticos, nos quais avulta “o mundo que o mulato criou” em contraposição ao “mundo que o português criou” e a sua poesia de gerundiva exasperação contra o sistema colonial.

Nota: texto que serviu de base da intervenção oral do autor no Colóquio de Homenagem a Jorge Barbosa coordenado pelo Doutor Hilarino da Luz e realizado a 22 de Maio passado na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa

* Ensaísta, poeta, jurista e comentador radiofónico. É também Vice-Presidente da Direcção da Associação Caboverdeana de Lisboa (ACV) e responsável do seu Departamento Cultural 

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SOBRE O AUTOR

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