Todos nós pertencemos a uma estatística qualquer: pessoas do grupo sanguíneo O-positivo, pessoas sem acesso a água potável, pessoas que falam três idiomas, pessoas que nunca andaram de avião, e tantas outras. Manuela faz parte do grupo de pessoas cujo nome do pai não consta na certidão de nascimento. Um vazio que a acompanhou desde a infância, até se tornar numa mulher independente, com clara consciência do que quer, e principalmente do que não quer da vida. Isto é uma contextualização um pouco injusta, devo admitir. É claro que ela é muito mais do que alguém que não foi registada pelo pai.
Lisboa, algures em 2012:
Manuela assumiu as funções de chefia na cadeia de supermercados portuguesa, um ano depois de ter ido viver com o Rui, e concluiu que o “projeto-filho” podia sim esperar até ela estar mais consolidada na posição. O companheiro foi o primeiro a dar-lhe os parabéns e encher-lhe de coragem para o novo desafio. Em pouco tempo, começaram as viagens em serviço, de norte a sul do país, e a sua disponibilidade para aventuras foi ficando cada vez mais escassa. Aproveitava todas as folgas entre uma viagem e outra para descansar, desfrutar do seu espaço, e aconchegar o estômago com comida caseira.
Preferia agora, mil vezes, estar estendida no sofá a ver um filme, acompanhado de um bom vinho, do que assumir muitos compromissos sociais. Por outro lado, percebia perfeitamente as rotinas do Rui, e nunca implicou com a sua necessidade de estar sempre rodeado de gente.
A sua cunhada Margarida era tão faladora quanto o irmão, e tinha os seus planos de vida bem organizados: casamento, filhos, casa nova e tudo o que o universo lhe deve. Iria conseguir. Do marido dela, esperava-se apenas o “sim”. Margarida conseguiu engravidar ao fim de um ano e meio após o casamento, e pelo facto de ser mais nova que o Rui, Manuela achou inapropriado o comentário da sua sogra sobre “ser ainda muito cedo para se pensar em filhos”.
“É por eu ser preta? Não queres que o teu filho te dê netinhos mulatos, é?”
Não ousou perguntar à sua sogra. Engoliu as suas dúvidas e foi apenas observando os sinais da senhora que, apesar de mostrar-lhe simpatia, não escondia a barreira no meio das duas.
Depois do primeiro Natal juntos, que não foi muito harmonioso, vieram outros encontros familiares, e Manuela foi abdicando de acompanhar o Rui às situações que lhe faziam sentir-se desconfortável. Inventava trabalho ou outro compromisso qualquer para se desculpar. Já não tinha muita paciência para as tagarelices da Margarida, que julgava saber tudo sobre o mundo, nem queria mais aturar o marido dela, cheio de medo de perder o emprego, e que só falava da situação precária em que se encontrava a banca portuguesa. Dispensava completamente encontros com a sogra, que não perdia uma oportunidade de lembrar-lhe que ela era diferente deles. As coisas foram arrefecendo entre ela e a família do namorado, e acabaram por descarrilar por completo, pouco antes do nascimento da sobrinha do Rui.
Era o chá de bebé da Margarida, e as primas e amigas dela tinham organizado tudo com muita antecedência. A sua sogra fez questão de ligar pessoalmente às pessoas a convidar. A recém-vovó não cabia em si de tanta alegria em receber a sua primeira neta. Manuela teve de confirmar a sua presença, e na altura da escolha do presente para a bebé, acabou por reconhecer que a cunhada nunca lhe tinha feito nada de mal, e que, por vezes, até defendia-lhe das má-vontades da mãe. Comprou um bonito conjunto de mala, proteção para a muda de fralda, e um porta-toalhitas numa loja sofisticada para bebés. Tinha a certeza de que Margarida iria gostar.
Toda a gente gostou da prenda, e a avó babada não conseguiu esconder o seu espanto ao ver que Manuela tinha esmerado na oferta. O chá estava muito animado, e depois do jogo da abertura das prendas, alguém teve a ideia de fazer um jogo sobre nomes, em que cada uma tinha de sugerir um nome para a tão esperada criança, num bilhete, e colocar numa pequena caixa. A conversa à volta dos nomes das diferentes pessoas presentes estava muito animada, uns mais compridos e outros mais esquisitos, mas Manuela inventou um assunto qualquer com uma das primas do Rui, que também estava grávida, e fingiu não ter ouvido, quando alguém lhe perguntou pelo seu nome completo. Nesse instante, a sua sogra fez questão de falar por ela:
- A Manuela tem a vida facilitada, um nome bonito e simples, diz-lhes o teu nome completo, querida!
O apelo da mãe do Rui apanhou-a de surpresa, pois tinha sido muito agradável durante a tarde toda, e podia jurar que depois que entregou o lindo presente da sua neta, havia ganho uns pontos com a sogra. Rapidamente desiludiu-se, adivinhando o rumo da conversa.
- Manuela Tavares. Disse, sem conseguir esconder a aflição na voz.
- Só Tavares? Então e o apelido da tua mãe, não tens? Perguntou a prima grávida, que tinha sido usada, até então, como boia de salvação para fugir do tópico sensível sobre nomes e apelidos.
Manuela precisava de alguns segundos para inventar uma história rápida. E teria conseguido, se a vida fosse benevolente para com ela, e lhe concedesse capacidade de fingir, capacidade essa que a mãe do seu namorado tinha em abundância. Mas a senhora nem lhe deu tempo de ao menos dizer, com orgulho, este é o apelido da minha mãe.
- Tavares é precisamente o apelido da mãe. A pobrezinha não sabe quem é o pai dela!, exclamou a mãe do Rui, com a sua voz de todos os dias, com um olhar desviado da nora.
A frase da senhora suou como uma tempestade encomendada de propósito para acabar com a tentativa de autossalvação naquele mar. A “pobrezinha” tirou-lhe toda a dignidade perante a sala cheia de mulheres, que logo se apressaram a centrar nela os seus olhares, que mais pareciam holofotes de um palco, realçando a cena de um rato que deixou cair a sua máscara de gato. Não, de gato não!, a sua máscara de cavalo de raça! E que depois de descoberto, tentava a todo o custo esconder-se num buraco qualquer, onde claramente não cabia.
As catorze senhoras presentes na sala eram, sim, pessoas decentes. Todas elas tinham uma história verdadeira, uma identidade completa. Podiam até ter falta de emprego, de marido, de cultura, de apetite ou de dinheiro, como a maior parte dos portugueses nessa altura de crise, mas nome não lhes faltava. Umas acumulavam cinco nomes dos pais e quando se casavam, recebiam ainda os nomes dos maridos. Os pais faziam questão de preservar o legado da família, garantindo a passagem dos nomes de geração em geração. É assim que funciona na maior parte das culturas ditas modernas.
Tinha a plena certeza da sua capacidade para inventar uma história plausível: teria dito que por uma feliz ou infeliz coincidência o seu pai e a sua mãe tinham o mesmo apelido, o que é comum na sua terra, e por isso ela acabou por ficar apenas com um dos Tavares.
É óbvio que Tavares & Tavares ou então Tavares ao quadrado não seria de todo apropriado para o apelido de uma pessoa. Tinha a certeza de que as s senhoras teriam soltado gargalhadas alegres e desinteressadas, e continuariam depois com o jogo à volta das Ana Mafalda, Bianca Sofia, Inês Margarida, Maria Alice, Beatriz do Carmo, Maria Celeste, Ana Rosa, Carolina, e tantos outros nomes que constam da extensa lista dos registos centrais de Portugal. Mas a sua sogra tirou-lhe a oportunidade de ser a protagonista da sua vida. Um direito que tem vindo a ser-lhe negado desde que nasceu. Onde é que já se viu uma protagonista sem pai? Quem não tem pai não tem direito a ser protagonista em história alguma, ela está a mercê das especulações que o mundo quiser fazer sobre a sua própria história.
O silêncio gelado que se instalou sobre a sala foi quebrado pela anfitriã, que ao ver o desconforto da sua cunhada disparou a primeira coisa que lhe veio à língua. Sim, veio à língua, não à mente.
- Pois é… em África alguns homens não têm muito juízo. Fazem filhos e desaparecem.
Margarida disparou a frase de forma despachada, numa tentativa desesperada de esconder o desconforto do assunto. As maçãs do seu rosto estavam mais vermelhas que um tomate maduro, e o seu olhar buscou em todas as convidadas presentes na sala um acordo de paz.
Vamos arranjar outro assunto, por favor, os seus olhos disseram, e as suas convidadas perceberam.
- Pois é… e calhou-me um pai desses, foi tudo o que Manuela conseguiu dizer.
A frase saiu-lhe espontaneamente, sem passar antes pela cabeça. A sua língua e os seus lábios puxaram sozinhos, e de forma mecânica a sua voz para dizer aquilo. Só podia ter sido, uma vez que em toda a sua vida sempre arranjou explicações inteligentes para o tema.
Manuela foi das últimas pessoas a sair da casa da Margarida, em Queluz Massamá. Depois de a sogra ter ventilado o seu segredo para a mulherada da família, e outras que ela nem conhecia, ficou com uma sensação muito estranha de estar suja. A mesma sensação que as mulheres experimentam quando a menstruação aparece, de repente, e apanha a pessoa desprevenida.
Cada vez que pensava em levantar-se para ir embora, o seu corpo afundava-se no sofá. Não comeu nem bebeu mais nada o resto da tarde. Tinha receio até de respirar alto, não vá alguém lembrar-se mais uma vez daquela fulana que não tem pai. Filha de ninguém, filha do vento, filha da montanha.
Era novembro, e as chuvinhas mansas de outono faziam com que os carros andassem a uma velocidade mais moderada, formando fileiras enormes no IC19. O limpa pára-brisas fazia o seu movimento monótono, quase hipnotizante, na tentativa de expulsar as persistentes gotas de chuva que ofuscavam o caminho. As luzes dos carros, em fileira, formavam uma bonita corrente de luz, até perder de vista. Manuela conduzia o mais à direita possível, com a atenção necessária apenas para evitar sair, por engano, numa das ramificações da autoestrada. Não estava com pressa de chegar à casa, nem tinha a certeza se realmente queria ir para casa. O que diria ao Rui? “Olha a tua mãe, mais uma vez, foi desagradável comigo”. Ou então, “por que carga de água é que foste contar para a tua gente que eu não sei quem é o meu pai? É sobre mim que falam nos encontros familiares que tenho faltado? Riem-se todos, é?”
Ela queria que o limpa pára-brisas entrasse dentro do seu peito e expulsasse toda a sua tristeza. Não queria tanta dor dentro de si. Sentia raiva, uma vontade imensa de encontrar uma forma de magoar profundamente a mãe do Rui.
Desde o início da sua relação que tentava ser simpática, mas a senhora embirrou desnecessariamente com ela, e não deixava passar uma oportunidade de fazê-la sentir-se inferior. Tinha a sensação que não era uma questão de racismo nem de preconceito. A mulher não gostava mesmo dela, tão simples quanto isso. E para completar o seu drama familiar, tinha a sua cunhada.
A disparatada da Margarida precisava urgentemente de um filtro entre o cérebro e a boca, algo que que lhe controlasse os músculos da língua, impedindo-a de dizer tudo o que lhe passa pela cabeça. Media pouco mais de um metro e meio, mas Margarida fazia-se sentir por onde passava. Ao contrário da mãe, nunca insinuava nada, dizia os seus disparates claramente, e ainda com muita descontração.
Nessa tarde, apesar da sua intenção real ter sido de safar-lhe da teia cozida pela mãe, Margarida não ajudou porcaria nenhuma. “Em África os homens não têm juízo, fazem filhos e desaparecem”. Que África é que Margarida conhecia? Sabia lá ela alguma coisa sobre os africanos. Algumas pessoas falam de África como se fosse o Alentejo, e não fazem a mínima ideia da málaga de culturas, interesses, economias, povos e sabores espalhados pelos cinquenta e três países do continente (ndr, quando este conto foi escrito haviam 53 nações em África, hoje são 54 com a divisão do Sudão em dois países, o do Norte e o do Sul).
Com que direito a destrambelhada da cunhada juntou no mesmo julgamento todos os homens africanos, sabendo que apenas o seu suposto pai era um criminoso? Por que um etíope, um gabonês, um marroquino ou um zimbabweano devia ser condenado por causa do estupor de um cabo-verdiano? Os africanos não têm juízo? Quem tem juízo é o banana e o tarado do teu marido, que por várias vezes apanhei-o a olhar para o meu traseiro pelo espelho da tua sala.
Os homens africanos têm juízo, sim, pois todos os que ela foi conhecendo ao longo dos trinta e quatro anos da sua vida, têm pai e mãe. Nunca conheceu nenhum africano com vergonha de apresentar o seu bilhete de identidade, evitando revelar que na parte da afilhação consta apenas o nome da mãe. Alguns africanos com quem estudara na universidade faziam questão de soletrar o seu apelido aos professores, porque tinham pavor a que alguém lhes chamasse d’outra coisa que não fosse o seu verdadeiro nome.
De vez em quando, um professor engasgava-se ao pronunciar o apelido de um dos colegas da Guiné ou d’Angola, mas os mesmos tratavam logo de retificar e soletrar o nome de família. Tinham muito orgulho no seu nome, pois constituía uma herança, um carimbo de pertença a uma linhagem, fosse ela qual fosse, um nome é uma história.
A chuva estava agora mais intensa, e os seus olhos pingavam no mesmo ritmo.
Manuela desceu a Calçada de Carris a uma velocidade incontrolável, e quase que batia num carro, no cruzamento do semáforo, que tinha ficado vermelho para o sentido em que ela ia. Não se assustou, nem abrandou. Ouviu a buzina do condutor, que teve de fazer uma manobra brusca para não bater nela, e teve a certeza de que naquele momento o motorista estava a chamar-lhe todos os nomes.
- Grita, chama-me sim o pior de todos os nomes, chama-me de filha de uma grande vaca, pois a minha mãe bem que merece este nome.
Ela é culpada de tudo isso. Ah!, o escrivão também teve muita culpa. Então não sabia que para se fazer uma criança são necessárias duas pessoas? Como é que o desgraçado do escrivão foi capaz de aceitar registar uma criança sem a menção do pai. Seria preferível deixar-lhe sem registo, do que fazer um trabalho incompleto. Devia ter obrigado a minha mãe a dizer o nome do meu pai. Sim, o senhor dos registos também tem muita culpa... no cartório!
A sogra e a cunhada não tinham nada a ver com esta história. Os culpados eram o escrivão e a sua mãe. Não havia ninguém mais culpado que a sua mãe nesse sofrimento que tem carregado a vida toda. Como é que ela foi capaz de estar com alguém e deixar que depois essa pessoa a riscasse da sua vida com uma criança na barriga, como se não passasse de sonho mau, em que depois de acordarmos vamos fazendo coisas boas durante o dia até esquecermos completamente do pesadelo? Será que a sua mãe continuou a ver o homem que lhe engravidou a passar à sua frente todos os dias, ou será que ele desapareceu logo a seguir à notícia da gravidez? Quanto tempo terá durado a relação dos seus pais, ou será que nem chegou a ser uma relação?
Veio-lhe à mente, de repente, uma imagem indecente da sua mãe, na idade atual, estendida no chão de num beco junto à casa onde passou a infância, o beco onde costumava brincar com os amigos do bairro da Achada Santo António. O corpo volumoso da sua mãe estava sem forças, com a blusa rasgada e a saia levantada, mostrando o pouco que sobrara da sua roupa interior, com sinais de muita luta contra o seu agressor.
Será que eu sou fruto de uma violação?
Enquanto a ideia procurava um espaço para instalar-se na sua mente, Manuela teve tempo apenas para pisar a fundo no travão e fazer um movimento automático para esquivar o seu colo, enquanto abria a porta do carro. Não conseguiu segurar o azedo que lhe subia do estômago para a boca, misturado com as fatiotas que conseguiu petiscar, antes de a sua sogra ter começado com a conversa sobre os nomes. Vomitou para a estrada uma boa parte da dor dessa maldita tarde. Livrou-se do cinto de segurança, desceu do carro e prendeu o cabelo com um elástico fino, que levava no pulso. Vomitou mais um pouco. Estava a poucos metros do túnel do Olival Bastos e a chuva batia-lhe levemente na cara, arrastando as suas lágrimas que foram ficando cada vez menos salgadas.
Desde que se lembrava de si como gente, foram tantas as suas especulações a volta do seu pai incógnita. Estranhava o facto de a sua mãe sempre mudar de assunto quando ela questionava, mas nunca tinha colocado a hipótese de ela ser fruto de uma violação. Arrependeu-se profundamente de tudo o que lhe disse na noite em que brigaram e que ela lhe pôs fora de casa e, nesse momento, perdoou-lhe, o facto de ter escondido a sua verdadeira história durante todos esses anos. Não podia nem imaginar o sofrimento que a sua mãe carregou e continuará a carregar para o resto da vida. Ao invés de julgar-lhe e condenar-lhe, devia mais era agradecer-lhe pela coragem que teve ao aceitar-lhe como filha, embora fosse fruto da pior agressão que uma mulher pode sofrer. Pobre da sua mãe, quis poupar-lhe da sua triste história e em troca só recebeu revolta e agressões.
Lembrou-se da palma da mão quente da sua mãe na sua cara, na noite em que ela insinuou que ela provavelmente tinha estado com vários homens, ao mesmo tempo, e por isso não sabia dizer ao certo quem era o pai da criança que tinha trazido ao mundo. Merecia mais, merecia uma surra de verdade, merecia ser abandonada num caixote de lixo como acontece todos os dias com outras crianças indesejadas, rejeitadas. Não merecia o amor e os cuidados da mulher que teve coragem de deixá-la nascer.
“Qual violação qual quê!, eu não sou fruto de violação coisa nenhuma!, as pessoas teriam me dito”, confortou-se a si mesma.
Nessa noite, o colo do Rui estava particularmente acolhedor, como há algum tempo não o sentia. Margarida havia ligado a contar ao irmão a falta de propósito da mãe, e ele ficou de sobreaviso. Recebeu-a com um abraço e, sem grandes perguntas, levou-lhe para a casa de banho. Manuela tremia, sem conseguir dizer uma palavra e deixou o seu companheiro cuidar dela. Rui ajudou-lhe a tirar o casaco, as botas, o resto da roupa, e meteu-lhe debaixo do chuveiro de água quente. Mais tarde, trouxe-lhe uma caneca de chá e deixou-se ficar quieto ao seu lado, em cima da cama.
- Quero sim ver um psicólogo.
Disse pausadamente, com os olhos fixos no interior da caneca como uma cigana que tenta ler a sorte através das borras do café.
- Ok, tratamos disso depois, agora tenta descansar. Rui estava ali para ela, e ela via e sentia todo o seu esforço.
Improdutiva. Foi assim que Manuela classificou a primeira sessão com o psicólogo, quando o seu companheiro lhe perguntou como tinha corrido.
- Sinceramente, acho as conversas contigo e com a Drª Lígia muito mais orientadoras e proveitosas do que com este Dr., e não vejo interesse nenhum em passar uma hora sentada naquele sofá. Eu faço as minhas perguntas e ele responde-me com outras perguntas, cujas respostas eu não tenho. Eu quero paz, não quero ficar nesse limbo a vida toda. Não vou voltar lá.
Mas ela voltou. Rui conseguiu convencê-la de que as primeiras sessões eram apenas para se conhecerem e ela poder ganhar confiança no médico. Disse-lhe que o processo era mesmo assim, longo e era preciso tempo para a conversa fluir naturalmente, e começar a dar resultados. Compareceu a apenas mais duas sessões e desistiu de vez. Rui não a obrigou a ir. Em vez disso, tentou levá-la consigo para a ginástica. Um corpo cansado tinha menos tempo para pensar asneiras, disse-lhe. Manuela participou numa aula de spinning no ginásio perto de casa, e no dia seguinte não conseguiu andar em condições. Isto não é para mim, desistiu. Yoga era muito parado e fazia-lhe sono, também não queria.
Vieram dias cinzentos e noites em claro, em que ela tinha medo de fechar os olhos para não ter de ver a imagem da mãe estendida num beco da Achada Santo António. Algumas noites eram mais alegres, Rui inventava uma tábua de queijos e frutas, bebiam vinho e escolhiam um bom filme para acompanhar. Numa dessas noites, depois de fazerem amor, Manuela virou-se para a sua mesa-de-cabeceira e engoliu duas pílulas de uma só vez.
- Não quero engravidar! Antes de se colocar uma criança no mundo deve-se ter a certeza de que a sua história será completa, disse com muita firmeza, ao ver o olhar de questionamento do namorado
Vieram depois outras noites em que Manuela acordava de um sonho estranho e, sem fazer barulho, ia para sala chorar para não incomodar o namorado. Rui ia ao seu encontro e tentava oferecer-lhe algum conforto com o seu abraço, já que não podia fazer muito mais. Houve uma noite em que Rui fingiu não ter sentido os movimentos dela ao abandonar a cama, nem o ruído da porta do quarto, quando saiu. Nas noites seguintes ele não precisou fingir, não ouviu de todo.
Cidade da Praia, dezembro de 2018:
Na cabeça de Nha Preta, ninguém no seu perfeito juízo, sai de casa num sábado de manhã para ir comer cachupa guisada num restaurante. Pura perda de tempo e desperdício de dinheiro! Mulher que se preze prepara tudo de véspera, acorda cedo e põe a panela riba di lume, e se for na lenha ainda melhor. Sim, porque cachupa de lenha não tem nada a ver com a cachupa de gás.
Apesar de não ter dito nada, Manuela pôde ler toda insatisfação estampada na cara da sua madrinha, enquanto revirava, com muito fastio, os grãos de milho que tinha no prato. Conhecia-a muito bem, e conseguia perceber quando algo não lhe agradava.
- Não está boa a cahupa, madrinha? Perguntou-lhe num tom de gozo, à espera de uma resposta meio atravessada.
- Está… o médico disse para não comer muita gordura, também não gosto muito de bacon, do toucinho, Nha Preta respondeu, sem tirar os olhos do prato.
A esplanada do Café Sofia, no Plateau, estava cheia de turistas que aguardavam pela atuação de uma jovem artista, com cara de rapazinho, que afinava o violão e acertava o microfone com os “um…dois…som…um…um”, colando os lábios ao instrumento. Os empregados do estabelecimento circulavam com uma certa desorientação, tentando acalmar os clientes com um “vai sair já”, e oferecendo sorrisos a quem vem de fora.
Nos anos em que Manuela viveu com a sua madrinha, na Achada Santo António, nunca foram a um restaurante. Comer fora era apenas em casa de familiares e de amigos próximos, e nessas ocasiões, só se aceitava um prato modesto para não fazer desfeita. Comer bem mesmo, mastigar a cabeça do peixe até ficar em pasta dura e cinzenta, ou roer um osso até um boby recusar-se a dar seguimento à tarefa, eram coisas para se fazer apenas em casa, e de preferência com um bom vinho, daqueles de pacote de cartão. Queria agradecer Nha Preta pela sua criação, dar-lhe a oportunidade de viver o que as duas não puderam experimentar nos idos tempos difíceis.
- O que estás à espera para fazer um filho, Manuela? Tens algum problema que te impede de engravidar? Podes até não casar, ninguém é obrigado a casar…mas filho…hum…é a única coisa que temos de verdade!
Nha Preta fuzilou Manuela com um olhar de autoridade, sem pudor de estragar a contenteza, que a afilhada tinha estado a sentir desde que se encontraram naquela manhã.
- Uma mulher sem filho não é nada, e tu sabes bem disso! Alguém pode ter um bom trabalho, ter dinheiro, conhecer o mundo todo, mas se não tiver ninguém para lavar-lhe quando não conseguir mais segurar o seu corpo, se não tiver ninguém para enterrar-lhe…hum… o fim do ser humano é ingrato, minha filha! Enquanto são jovens, vocês pensam que a vida é só isto e aqui e acabou.
Nha Preta falava agora com o mesmo tom de ordem que usava para explicar à afilhada, quando tinha 7 anos, que uma mulher nunca deve deixar a sua calcinha por lavar. E continuou, enquanto a sua interlocutora a escutava serenamente.
- Homem pode ter filhos até morrer, não se comparam connosco. Eles podem fazer a sua vida toooooda e depois pensar em ter filhos. Homens podem ser pais com idade de ser avô, nós não! Nós temos prazo de validade e não podemos descuidar com o tempo. Quantos anos tens, Manuela, estás perto de quarenta, não?
Manuela quis virar a mesa com a porcaria da cachupa para cima da mulher que a acolheu, ainda pequena, aquando da emigração da sua mãe, e educou-lhe até a adolescência.
- É assim que funciona na vossa cabeça, não é? Fazer filho e largar no mundo…Deus há de ajudar! O importante é ter alguém que te lave e te vista a mortalha, antes de seres enfiada num caixão! Ter filho só por ter, não interessa como, e tudo fica bem depois, não é?! Quando foi a última vez que estiveste com os teus dois filhos, há séculos emigrados na América, que laços tens com os teus netos? percebes quando te falam em inglês? Não percebes patavina! Não sabes nada sobre a vida dos teus filhos! Foste tu, não foste? Foste tu que aconselhaste a minha mãe a parir-me sem ter um pai, não foste? Velha rabugenta…o que sabes tu sobre a vida? Sabes o que significa profissão ou carreira, sucesso? Não sabes nada, pois sempre vendeste tralhas dos bidons vindos da América. É só mesmo isso que sabes da vida! Se eu tiver que fazer um filho, será quando me der na real gana, com um pai que também queira esse filho, que tenha orgulho de dar o seu nome à criança. Um pai que cuide, e sobretudo que ame o seu filho! Não vou fazer como a minha mãe que me largou no mundo, com um campo por preencher sobre a minha identidade.
Manuela encarou a sua madrinha com um olhar molhado, e teve uma certa dificuldade em manter as mãos paradas sobre a mesa. Tinha as orelhas quentes, e o coração batia de forma acelerada. Sentia uma espécie de formigueiro na língua e as suas pernas tremiam. Com a ajuda do polegar direito foi girando de forma compulsiva um anel de ouro que a sua mãe lhe ofereceu quando completou vinte anos.
Se Nha Preta entrasse na sua mente nesse instante, teria ouvido tudo o que vocês acabaram de ler há dois parágrafos acima, e provavelmente Manuela teria de receber pêsames nos dias que se seguiriam. Mas como o que acontece na nossa mente, fica na nossa mente, se assim desejarmos, o grito de indignação, desabafo e descompostura para a sua madrinha ficou apenas nos pensamentos de Manuela, e o pequeno-almoço de sábado continuou sem sobressaltos. A maior parte da cachupa de Nha Preta ficou no prato.
- Quando eu engravidar, a madrinha será a primeira pessoa a saber, não é preciso fadiga. Respondeu-lhe com um sorriso meio desencontrado com os olhos.
A artista de cabelo rapado acabou finalmente as afinações e soltou a voz: Nha pretinha…canta bo tcham ouvi bo voz…sorri bo tcham oia bo beleza…coração já batem….
Mais um navio cruzeiro atracara no porto da Praia, no início daquela manhã de Dezembro, e já se podia sentir o movimento, e olhares curiosos dos turistas pelo Plateau. Circulavam pela rua pedonal, com as suas mochilas pesadas, carregadas de águas e snaks trazidos do navio. O Mercado da Praia, é um ponto de paragem obrigatória, onde metem conversa com as vendedeiras de fruta e tiram fotografias aos peixes que acham bonitos, ou algum bebé rechonchudo que esteja a brincar junto à banca da sua mãe.
- Wonderful. Dizem eles, os turistas acham wonderful a nossa vida de todos os dias.
Um abraço carregado de solidariedade e força para todas as pessoas que têm a lacuna da paternidade nas suas vidas.
Feliz Dia do Pai para todos os pais que assumem as suas responsabilidades.
Jaquelina Vaz
Cidade da Praia, dezembro de 2018.
Comentários
Fane Macueia, 26 de Mar de 2025
Pobre Manuela, ela passou por tanto! Sem um pai reconhecido, com uma sogra e cunhada que a julgam e a estigmatizam... é uma pena que ela tenha que passar por isso. Mas, apesar de tudo, ela é uma guerreira! Continua a buscar respostas sobre o seu passado e não se deixa abater pelo estigma social. É inspirador ver como ela supera os obstáculos e encontra a sua própria identidade.
A grande força a todas outras Manuelas.
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Ireneu Vaz, 23 de Mar de 2025
Muito profundo, real e intenso. Dramaticamente verdadeiro. Um artigo que nos faz lembrar das nossas fragilidades e nossas escolhas de vida. Parabens pela forma, estilo e conteudo do texto ???
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Ana (eu) Teixeira, 20 de Mar de 2025
História interessante, mas tinha de passar em Queluz Massamá?
Vontade de ler até ao fim.
Obrigada pela partilha
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Armindo Tavares, 19 de Mar de 2025
História interessante, emocionate e contada com um realismo estonteante. Narrativa longa mas que se lê sem tirar o pé do acelerador, sem se importar do risco de cometer ou provacar acidente na Estrada do Cariz.
Muito obrigado
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