A concluir a sua extensa e marcante intervenção, proferida a 10 de Setembro de 2005, no Segundo Simpósio Internacional Amílcar Cabral, organizado pela Fundação Amílcar Cabral e realizado na cidade da Praia, afirmou Carlos Veiga: “Depois, e não menos importante, houve o cidadão da nossa terra, da África e do mundo - imbuído do espírito de missão e de serviço em prol do seu povo; o líder lúcido, corajoso e destemido, inconformado e ousado, patriota amigo e querido do seu povo e prestigiado internacionalmente; e houve o Homem - sensível, culto, superior, mas sempre modesto e íntegro e sobretudo sempre humano. Homem que seguramente nos fez falta ao longos destes anos de Independência, porque, parafraseando o que ele próprio disse, não foi imprescindível, mas era necessário, pelo proveito e utilidade que podíamos tirar da sua experiência vasta e rica, do seu prestígio internacional, da profundidade e amplitude dos seus conhecimentos e cultura e das suas elevadas qualidades humanas, éticas e políticas. É este homem multifacetado e a grandeza da obra que construiu, a Independência, que é justo e dever de todos nós recordar e homenagear. Por isso, e com muita honra e orgulho, termino, prestando a minha sincera homenagem a Amílcar Cabral”.
SEGUNDA PARTE
6. É, pois, nesse concreto circunstancialismo que Carlos Veiga analisa a concepção do Estado de Amílcar Cabral fundada no conceito de democracia revolucionária, o qual teria sido necessária e indelevelmente marcado pelas concepções políticas típicas dos regimes políticos de partido único e alegadamente pela inerente confusão entre o Partido e o Estado, aliás, amalgamados num Partido-Estado. Assim, considera Carlos Veiga que a concepção cabraliana de Estado, acima referida, podia ser filiada, tal como os Estados da chamada legalidade socialista, também desqualificados pelo Professor Gomes Canotilho, devidamente citado por Carlos Veiga, como “Estados da deriva totalitária socialista”, nas concepções de Estado de não direito ou de Estado contra o direito. Na opinião de Carlos Veiga, nos termos da concepção de Estado adoptada por Amílcar Cabral e pelos seus sucessores, e citando o estudioso António Duarte Silva “é o partido que exerce verdadeiramente o poder político, enquanto “vanguarda política”, “força, luz e guia do nosso povo na Guiné e em Cabo Verde”, “força motriz da revolução” e, nas condições pós-coloniais de existência de um Estado independente e soberano, enquanto “expressão suprema da vontade e da soberania populares”. Sempre citado por Carlos Veiga a propósito do regime político bissau-guineense de partido único, considera António Duarte Silva (in A Independência da Guiné-Bissau e a Descolonização Portuguesa, Porto, Edições Afrontamento, 1977), que “o poder supremo pertence ao Partido, que este é, de direito e de facto, um partido único a que nenhuma outra instituição deve escapar” e que “o Partido acaba por ser não só um meio de expressão da soberania do povo, mas também a origem e o fundamento do poder político”. Por seu lado, e citado por Carlos Veiga, considera o sociólogo bissau-guineense Carlos Lopes que no sistema político de partido único implantado na Guiné-Bissau pelo PAIGC, “cabe aos órgãos do poder do Estado o mero papel instrumental de ratificação e de execução das decisões dos órgãos superiores do mesmo partido”, supomos que para os devidos efeitos jurídico-formais de outorga da generalidade, da abstração, da obrigatoriedade geral intrínsecas à juridicidade e características das normas do direito positivo vigente, às decisões e deliberações emanadas dos órgãos do partido.
Conclui Carlos Veiga que “foi, pois, no modelo de Partido/Estado, em que o partido único, substancialmente, absorve o Estado, que as ideias de Cabral conduziram a Guiné e Cabo Verde em tema de construção do Estado, no advento das independências”. Considera ademais que tal “ é decorrência da concepção de Cabral sobre os partidos políticos”, na situação concreta da luta anti-colonial, pois que considera que para o sucesso dessa luta não seriam necessários muitos movimentos políticos, sendo, pelo contrário, imprescindível “uma ampla frente de unidade e luta contra o colonialismo” dirigida por um “instrumento-base”, ”uma vanguarda solidamente unida e consciente da verdadeira significação e do objectivo da luta de libertação que vai dirigir” e que deveria conduzir não só a luta para a independência, mas também a luta para o progresso social e ser, assim, “a força motriz da revolução”, opinião também corroborada por Olívio Pires, citado por Carlos Veiga.
7. É neste contexto político que, segundo Carlos Veiga, se teria constituído no período pós-colonial em Cabo Verde um Estado de não-direito ou um Estado contra o direito (contraposto a um verdadeiro Estado de direito), por isso caracterizado como centralizado, monolítico e marcado pela ausência da separação entre os poderes legislativo, executivo e judiciário e pela inexistência de um verdadeiro catálogo de direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos, porque sempre condicionados e/ou amiúde funcionalizados para a prossecução dos fins e objectivos do Estado e do regime da democracia nacional revolucionária.
Ainda assim, assevera Carlos Veiga que, felizmente, os sucessores de Amílcar Cabral não aplicaram em Cabo Verde, tendo mesmo desaplicado no nosso país, alguns dos seus ensinamentos sobre a problemática da construção do Estado e da sociedade pós-coloniais, alegadamente devido às características próprias da sociedade caboverdiana, sobretudo de natureza identitária e cultural. Segundo Carlos Veiga, essas mesmas características próprias da sociedade caboverdiana não teriam sido devidamente consideradas por Amílcar Cabral, confrontado que fora com as condições específicas da luta político-armada na Guiné-Bissau, mas foram tidas devidamente em conta pelos seus sucessores depois do seu regresso a Cabo Verde, vindos dessa mesma luta político-armada, obrigados que tinham sido a adaptar-se às novas e específicas circunstâncias prevalecentes nas nossas ilhas. Assim, embora infelizmente, segundo o líder histórico do MpD, também se tenha aplicado o essencial da teoria de Amílcar Cabral sobre a democracia revolucionária, “não se arrebentou com o Estado colonial”, “não se fez a revolução, mas optou-se pela via reformista”, “nem a pequena-burguesia se suicidou como classe”.
Residiria, pois, no pragmatismo dos sucessores de Amílcar Cabral nas nossas ilhas a verdadeira razão porque em Cabo Verde o regime político de partido único socializante e o seu correlativo e alegado Estado de não direito se tenha demostrado como menos radical, violento e repressivo por comparação com outros modelos aparentados e similares de regimes políticos implantados em outras paragens.
8. Depois de contestar com alguma veemência e contundência a pertinência e a viabilidade da aplicação em Cabo Verde não só do conceito de democracia revolucionária, mas também de outras teorias e estratégias políticas gizadas por Amílcar Cabral, com destaque para o suicídio de classe da pequena-burguesia (que, aliás, Carlos Veiga parece confundir com o suicídio da classe média em geral) e para o seu desiderato de “rebentar com o Estado colonial”, Carlos Veiga intenta retirar ilações e lições positivas de alguns ensinamentos e consignas cabralistas colhidos dos seus escritos, sobretudo daqueles resultantes do “seu esforço titânico de formação de quadros”, e incluindo aqueles relativos a alguns princípios nucleares do PAIGC, como a democracia revolucionária, o centralismo democrático, a direcção colectiva e a crítica e autocrítica. Nessa sequência, considera Carlos Veiga que muitos desses ensinamentos “são susceptíveis de uma interpretação actualizada e mostram-se válidos e incontornáveis, ainda hoje, como referências de ética e comportamentos políticos, para o aperfeiçoamento constante da nossa democracia, sempre um “assunto inacabado, na agenda política actual”, determinada pela nova vivência do país, marcada pela emergência de um Estado Constitucional de Direito Democrático e Social, plenamente consagrado na Constituição Política de 1992, e de uma democracia liberal aberta à alternância política e à condução de “políticas capitalistas liberais, capitalistas sociais e/ou socialistas democráticas”.
É, assim, que para Carlos Veiga:
“-A unidade e luta podem inspirar a busca de consensos nacionais (…) indispensáveis na luta ainda titânica contra a pobreza e outros flagelos e para o desenvolvimento sustentado e sustentável do país”;
-”O acento posto no dever democrático de participar, de dar opinião, que Cabral retira do seu princípio de centralismo democrático pode inspirar no tempero participativo indispensável para apurar a nossa democracia representativa”;
-”A tónica do poder concreto nas mãos do povo que Cabral punha na democracia revolucionária pode inspirar-nos para o necessário aprofundamento da descentralização e da cada vez mais urgente regionalização do poder; “
-”A inclusão que Cabral faz no âmbito da democracia revolucionária do apelo para que se acabe com a mentira, se defenda e se diga sempre a verdade e de não enganar o povo com conversas e promessas falsas e a que ninguém tenha medo de perder o poder deve inspirar-nos no combate à fraude eleitoral e à demagogia, ao populismo e ao ataque pessoal no combate político;”
-E, finalmente, “princípios como “partir da realidade, ser realista”; “ agir muito para pensar bem e pensar muito para melhor agir ”, “pensar com as nossas próprias cabeças e andar com os nossos próprios pés” (“independência de pensamento e de acção”), etc, são recomendações que nenhum político e nenhuma organização política podem desdenhar ou deixar de aplicar” sobretudo, acrescenta Carlos Veiga, nas condições das oportunidades e dos riscos de um mundo globalizado e da necessidade de afirmação de um pequeno país insular como Cabo Verde.
Prossegue Carlos Veiga, asseverando que a vida e a obra exemplar de Amílcar Cabral não ficariam em nada beliscadas pela conclusão anteriormente tirada sobre a sua concepção de Estado pós-colonial, porque construída em circunstâncias muito específicas da condução da luta político-armada na Guiné-Bissau.
A concluir a sua extensa e marcante intervenção, proferida a 10 de Setembro de 2005, no Segundo Simpósio Internacional Amílcar Cabral, organizado pela Fundação Amílcar Cabral e realizado na cidade da Praia, afirmou Carlos Veiga: “Depois, e não menos importante, houve o cidadão da nossa terra, da África e do mundo - imbuído do espírito de missão e de serviço em prol do seu povo; o líder lúcido, corajoso e destemido, inconformado e ousado, patriota amigo e querido do seu povo e prestigiado internacionalmente; e houve o Homem - sensível, culto, superior, mas sempre modesto e íntegro e sobretudo sempre humano. Homem que seguramente nos fez falta ao longos destes anos de Independência, porque, parafraseando o que ele próprio disse, não foi imprescindível, mas era necessário, pelo proveito e utilidade que podíamos tirar da sua experiência vasta e rica, do seu prestígio internacional, da profundidade e amplitude dos seus conhecimentos e cultura e das suas elevadas qualidades humanas, éticas e políticas. É este homem multifacetado e a grandeza da obra que construiu, a Independência, que é justo e dever de todos nós recordar e homenagear. Por isso, e com muita honra e orgulho, termino, prestando a minha sincera homenagem a Amílcar Cabral”.
9. Cabe, neste preciso contexto, relembrar que, como referido anteriormente, são inúmeros os factos históricos que atestam que Amílcar Cabral e o PAIGC empreenderam múltiplos esforços no sentido de, em conformidade, aliás, com o Programa Mínimo do PAIGC, unir organicamente numa Frente Unida todas as forças nacionalistas e patrióticas da Guiné dita Portuguesa e de Cabo Verde para a obtenção da independência política desses dois territórios coloniais portugueses da África Ocidental. É, assim, que, em 1961, é criada em Dacar a Frente Unida de Libertação (FUL), que pretendia congregar de forma orgânica a grande maioria das organizações nacionalistas da Guiné e de Cabo Verde, designadamente, por um lado, a UDC (União Democrática de Cabo Verde) e a MLICV (Movimento de Libertação das Ilhas de Cabo Verde), e, por outro lado, o Movimento de Libertação da Guiné, a União das Populações da Guiné Portuguesa, etc., mantendo cada uma dessas organizações políticas a sua autonomia organizacional, estatutária e programática em face do PAIGC, a única organização co-fundadora da FUL com natureza intrinsecamente binacional, se nos abstrairmos do chamado Movimento de Libertação da Guiné e Cabo Verde (MLGC), de Dacar, e que uniu todas as demais organizações nacionalistas de Cabo Verde e da Guiné dita Portuguesa, acima referidas, na Reunião/Conferência das Organizações Nacionalistas da Guiné dita Portuguesa e de Cabo Verde e que culminaria na constituição da mesma FUL, bem como do chamado Movimento de Libertação da Guiné e Cabo Verde (MLGCV), de Conacri, e do chamado Movimento de Libertação da Guiné e Cabo Verde (MLGC), de Ziguinchor, os quais podiam ser considerados como meras organizações políticas satélites do PAIGC para o representar no seio das comunidades emigradas oriundas de Cabo Verde e da Guiné dita Portuguesa. Segundo elucida o próprio Amílcar Cabral numa das suas palestras em crioulo no Seminário de Quadros, de 1969, e posteriormente publicada com o título “A Evolução e As Perspectivas da Nossa Luta”, os trabalhos preparatórios da Conferência para a criação da FUL foram da exclusiva responsabilidade do PAIGC, tendo todavia a mesma organização política unitária de natureza frentista então criada soçobrado nas intrigas políticas internas e na inactividade dos seus membros, tendo, por isso, fracassado totalmente do ponto de vista politico e organizacional. Nessa sequência, as organizações nacionalistas da Guiné dita Portuguesa criaram a FLING (Frente de Libertação para a Independência Nacional da Guiné), que, apoiada pelo Governo do Senegal, viria a tornar-se a principal adversária política (bissau-) guineense do PAIGC. Com efeito, e segundo informações constantes do livro Amílcar Cabral (1924-1973) - Vida e Morte de um Revolucionário Africano, de Julião Soares Sousa, foi o MLG (Movimento de Libertação da Guiné), relembre-se que uma das organizações políticas co-fundadoras da FUL e, depois do fracasso desta, uma das futuras organizações políticas co-fundadoras da FLING, a iniciar a luta armada na Guiné dita Portuguesa, em 1961, dois anos antes do assalto ao Quartel de Tite, o qual marcou o início da luta armada conduzida pelo PAIGC. Foi também com base nesse facto e nesse feito históricos que a FLING empreendeu uma renhida disputa com e contra o PAIGC para o seu reconhecimento junto da OUA (Organização da Unidade Africana) como o único e legítimo representante do povo da Guiné dita Portuguesa. Tendo comprovado que era de facto a única organização efectivamente presente no terreno político-militar da luta na Guiné dita Portuguesa e no terreno da luta política clandestina em Cabo Verde, e que a acção armada promovida pelo MLG no território da Guiné dita Portuguesa fora uma acção esporádica e sem qualquer consequente sequência, a contrario da luta armada promovida pelo PAIGC e iniciada depois de uma intensa e longa campanha de preparação político-armada dos combatentes, vindos dos centros urbanos e dos campos, e de mobilização política prévia e extensiva das populações camponesas da Guiné dita Portuguesa, o PAIGC viria a merecer, em 1965, o reconhecimento por parte da OUA como único e legítimo representante dos povos da Guiné dita Portuguesa e das ilhas de Cabo Verde. Foi nessas concretas circunstâncias internas e internacionais que o PAIGC se constituiu em partido/movimento de libertação binacional único nas áreas libertadas da Guiné dita Portuguesa e no plano da representação internacional da luta dos povos da Guiné e Cabo Verde, para, mais tarde, se consagrar como Partido/Estado nessas mesmas zonas/regiões libertadas, posteriormente proclamadas como Estado soberano e independente com a denominação oficial de República da Guiné-Bissau.
10. Parece-nos, pois, incorrecto, apressado, erróneo e/ou errado considerar que Amílcar Cabral seria, de antemão e por princípio, contrário a qualquer forma de multipartidarismo, mesmo nas condições históricas específicas da sociedade colonial e da luta anti-colonial existentes na altura tanto na Guiné dita Portuguesa como também em Cabo Verde. O que nos parece evidente nele e no seu pensamento político é o seu realce à necessidade da existência de uma organização política de vanguarda que pudesse orientar com sucesso a luta pela independência política, no período colonial, e pelo progresso social, no período pós-colonial, quer no quadro de um único e amplo movimento de libertação binacional, quer ainda no âmbito de uma Frente Unida congregadora de várias organizações políticas nacionalistas da Guiné e de Cabo Verde. Não tendo a experiência da FUL (Frente Unida de Libertação) tido sucesso e sobrevivido como organização unitária de carácter frentista, optou Amílcar Cabral pela continuação da luta pela independência política, doravante na forma político-armada, sob a orientação da organização política binacional dos povos da Guiné e de Cabo Verde por ele fundada em 1956 e que, a partir de então, deveria conjugar em si a dinâmica e a dialéctica partido-movimento, isto é, que deveria ser simultaneamente uma ampla frente de categorias e classes sociais em luta pela independência e um partido de vanguarda. Com efeito, a partir do fracasso da FUL Amílcar Cabral passou a considerar as antigas organizações políticas parceiras do PAIGC na mesma FUL como sendo controladas por oportunistas políticos que visavam sobretudo satisfazer as suas ambições pessoais de poder e riqueza e ocupar os lugares eventualmente vagos na hierarquia político-administrativa e económico-social em substituição dos colonialistas portugueses, e que, ademais, não estariam dispostos a embrenhar-se consequente e seriamente na preparação e na consecução de uma luta político-armada de longa duração como único meio deixado pelas autoridades colonial-fascistas portuguesas aos povos da Guiné dita Portuguesa e de Cabo Verde bem como aos povos das restantes colónias portuguesas para a obtenção das respectivas independências políticas.
É para fundamentar a sua opção política estratégica que Amílcar Cabral relembrou e aduziu durante o célebre Seminário de Quadros, realizado durante alguns dias, em 1969, na cidade de Conacri, os seguintes factos políticos e sociológicos característicos da dominação colonial portuguesa nesse período (vide a obra de Amílcar Cabral: Pensar Muito para Agir Bem, Intervenções no Seminário de Quadros, 1969 (Organização de Luis Fonseca, Olívio Pires e Rolando Vera-Cruz Martins, edição da Fundação Amílcar Cabral, Praia, 2014):
a) O PAIGC foi a primeira organização política nacionalista surgida na Guiné dita Portuguesa e em Cabo Verde, tendo sido criada na clandestinidade, em 1956, na cidade de Bissau, em razão da natureza colonial-fascista do poder político instalado não só na Guiné dita Portuguesa e nas ilhas de em Cabo Verde, mas também nas demais colónias/províncias ultramarinas portuguesas e na própria Metrópole colonial. Em razão da natureza colonial-fascista desse poder político era proibida e severamente punida a criação de partidos políticos, os quais, quando criados, somente podiam actuar na mais estrita e rigorosa clandestinidade política. No que se refere à Guiné dita Portuguesa, Amílcar Cabral refere-se a uma primeira organização política anterior ao PAIGC fundada na clandestinidade por ele próprio, mas que teria sido “uma desilusão”. Trata-se certamente do misterioso MING (Movimento para a Independência Nacional da Guiné), presumivelmente criado em 1955 e cuja fundação teria sido uma das razões da “apressada saída” de Amílcar Cabral da Guiné dita Portuguesa por ordem ou por recomendação do Governador Alvim com quem tivera, “uma longa conversa”, segundo palavras do próprio Amílcar Cabral. Por outro lado, segundo consta do livro Amílcar Cabral (1924-1973) - Vida e Morte de um Revolucionário Africano, de Julião Soares Sousa, Rafael Barbosa teria participado na fundação de um Partido Socialista da Guiné dita Portuguesa, de que todavia se sabe muito pouco ou quase nada. Anote-se neste contexto que João Lopes e Pedro Monteiro Cardoso foram membros encartados do Partido Socialista Português, não tendo todavia a independência política de Cabo Verde estado nos horizontes político-ideológicos desses dois importantes letrados caboverdianos.
b) É a própria situação colonial que, dissolvendo os antagonismos políticos e reduzindo e aplainando as eventuais contradições políticas entre as diferentes categorias e classes sociais nativas (e os grupos étnicos autóctones, para o caso da Guiné dita Portuguesa), leva a uma grande convergência de objectivos políticos imediatos dessas mesmas categorias e classes sociais nativas (e dos grupos etno-linguísticos nativos, para o caso da Guiné dita Portuguesa) face ao poder colonial e consistentes primacialmente na obtenção da independência política pela nação-classe colonizada. Como anteriormente analisado e dissecado, para Amílcar Cabral esses interesses políticos imediatos podiam ser melhor corporizados e salvaguardados no quadro de uma única organização política, que, para garantir esses mesmos objectivos políticos imediatos, mas também os interesses fundamentais do povo colonizado, em especial das suas classes trabalhadoras, bem como os objectivos estratégicos de longo prazo da luta de libertação nacional, num futuro pós-colonial em liberdade, democracia e progresso para todos, deveria ter a natureza simultânea de partido-movimento. Para tanto, a organização política em luta pela independência dos povos da Guiné dita Portuguesa e de Cabo Verde deveria manter uma ampla base organizativa/orgânica de apoio social à luta pela independência política, ao mesmo tempo que era “dirigida pelos mais capazes e aptos”, como diria Carlos Veiga (quiçá numa outra forma de significar a controvertida expressão cabraliana “melhores filhos do nosso povo”), assim constituindo-se um “partido dentro do partido”.
c) A démarche unitária de Amílcar Cabral estendeu-se consabidamente às demais colónias/províncias ultramarinas portuguesas em África com a constituição sucessiva do MAC (Movimento Anti-Colonial), da FRAIN (Frente Revolucionária Africana para a Independência Nacional das Colónias Portuguesas) e, finalmente, da CONCP (Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas), integradas, em formatos sucessivos diferenciados, pelo PAIGC, pelo PLUAA (Partido da Luta Unida dos Africanos de Angola, fundado por Viriato da Cruz e outros nacionalistas progressistas angolanos, depois pelo MPLA), pela UDENAMO (União Democrática Nacional de Moçambique, de Marcelino dos Santos, depois pela FRELIMO, de Eduardo Mondlane) e pelo CLSTP (Comité de Libertação de São Tomé e Príncipe, depois pelo MLSTP), tendo sido igualmente notável o esforço de Amílcar Cabral no apoio à formação tanto do PLUAA e do MPLA como da FRELIMO, a partir de várias organizações políticas nacionalistas originárias tanto de Angola como de Moçambique, bem como na constituição do CLSTP e da sua posterior e tardia transformação em MLSTP.
Por outro lado, é sempre de se ter em conta a preocupação maior e permanente de Amílcar Cabral com a componente participativa, democrática e popular do Estado a erigir e implantar nos nossos países independentes e soberanos. É assim que, antecipando a emergência de um regime político de partido único socializante, pelo menos e em especial na Guiné-Bissau, em face das circunstâncias específicas atinentes à condução de uma luta político-armada vitoriosa e da constituição do PAIGC em Partido-Estado nas áreas/zona/regiões libertadas do mesmo país, diz o líder caboverdiano/bissau-guineense aos congressistas norte-americanos que o interpelaram a esse propósito:
“Conseguimos uma das mais importantes realizações no quadro da nossa luta - as primeiras eleições gerais realizadas no nosso país, a criação dos conselhos regionais e da primeira Assembleia Nacional Popular da Guiné-Bissau.
Posso dizer-vos que não sonhámos para realizar isto. Não se trata do resultado de um sonho de Cabral. Foi uma necessidade que resultou da luta. Uma necessidade para nos impor, no Partido, limites à nossa própria acção, possibilidades de exercer controle sobre nós, pois, no quadro do desenvolvimento da luta de libertação, se não for simultaneamente criado algo para ajudar a agir sempre corretamente talvez se estejam a criar as condições para a sua própria derrota. E a melhor maneira de colocar limites a nós mesmos é criar as condições para o povo nos colocar esses limites.
Dito de outro modo, temos de ser muito consequentes com os nossos princípios. Queremos que o nosso povo assuma gradualmente a autoridade da sua vida. Para tal o Partido não é suficiente. É muito perigoso o facto de que, nas nossas condições históricas, tenhamos de ter apenas um partido. É necessário criar algum órgão, algum instrumento que transmita às pessoas a consciência efetiva de que são elas as donas do seu próprio destino.
Sim, é verdade que hoje afirmamos que toda a gente está no Partido. Se disser a algumas pessoas que elas não são do Partido ficarão furiosas.
Mas, ao mesmo tempo, é necessário criar qualquer coisa de novo com vista a desenvolver o que poderemos, em linguagem clássica, chamar de ‘democracia prática ’ no nosso país.(“Conversando com Amigos Americanos” in Amilcar Cabral-A Luta Criou Raízes, edição da Fundação Amílcar Cabral, Praia, 2018).
Relembre-se neste contexto que, sem o nomear expressa e explicitamente, esta componente participativa, democrática e popular tinha como pressuposto a prevenção e a repressão de um qualquer despotismo político-militar ou de uma qualquer forma de facciosa tirania partidária, protagonizados por dirigentes e responsáveis político-militares transfigurados em sanguinários e arbitrários chefes de guerra, e que, a haver e havendo efectivamente, constituiriam certamente indesejáveis expressões de um Estado de não direito ou de um Estado de contra direito, ainda que embrionariamente. Pelo contrário, desde o histórico Congresso de Cassacá do PAIGC, de 1964, que o PAIGC e o seu líder Amílcar Cabral envidaram esforços assinaláveis para extirpar definitivamente do cenário da luta político-armada na Guiné dita Portuguesa os abusos, a prepotência e as arbitrariedades dos responsáveis político-militares do Partido que, nas zonas libertadas por eles controladas, se tinham transformado em autênticos régulos e déspotas, em total desconformidade e inobservância das Palavras de Ordem Gerais do Partido e das leis vigentes nas zonas libertadas, quer no que se refere ao respeito devido no relacionamento dos responsáveis e militantes armados do partido com as populações civis e com os prisioneiros de guerra portugueses, quer no se refere à condução da própria guerra, quer ainda no que se refere à dignificação das pessoas e da criação das condições para a efectiva igualdade de todos em todas as esferas da vida pública e da vida privada. Tal é particularmente verosímil, verdadeiro e relevante no que respeita à pugna de Amílcar Cabral em prol da emancipação das mulheres, pelo respeito das crenças religiosas dos militantes e combatentes do partido e das populações em geral, mesmo se discordando delas, pelos esforços envidados para a melhoria da suas condições de vida mediante a disseminação do ensino, dos cuidados de saúde e do abastecimento em bens essenciais, mesmo em situação de guerra, bem como para o aumento e a melhoria da sua consciência cívica de cidadãos de um novo país, no qual o poder devia ser do povo, para o povo e pelo povo, em necessária decorrência da luta do povo, pelo povo e para o povo e devidamente concretizado em organismos políticos, judiciários e de gestão corrente dos próprios assuntos do seu imediato interesse e em outras instituições representativas das populações, mesmo que de forma ainda assaz embrionária e incipiente. Tudo isso que acaba de ser referido e colhido das obras de Amílcar Cabral e da sua excepcional liderança da luta político-armada do PAIGC constituiu-se em conquistas incomensuráveis num país, a Guiné dita Portuguesa, em que, até 1960, mais de 90% dos seus habitantes estavam sujeitos ao abjecto estatuto do indigenato, a trabalhos forçados, a açoites, prisões arbitrárias e a todos os abusos e arbítrios das autoridades coloniais e dos seus representantes e agentes locais, incluindo, até, execuções sumárias, assim consubstanciando o poder político e a administração coloniais (esses sim!) autênticas, genuínas e verdadeiras expressões de um Estado de não direito ou um Estado de contra-direito, tal como, aliás, o próprio Amílcar Cabral tinha denunciado em 1960, em Londres, no impressionante documento intitulado A Verdade/Factos sobre as Colónias Africanas de Portugal, com vista a, deliberadamente, quebrar o Muro de Silêncio à volta de um pretensamente idílico colonialismo português de teor luso-tropical. Como é também do conhecimento geral, os dirigentes, responsáveis e militantes do PAIGC seriam sujeitos a torturas, sevícias, assassinatos, prisões e deportações e, depois de iniciada e consolidadada a luta político-armada de libertação binacional, vindo as mesmas populações bissau-guineenses acima referidas a ser objecto de massacres, bombardeamentos, assaltos aéreos terroristas, incêndio das suas culturas e de outros crimes de guerra e de vários crimes contra a humanidade impiedosamente perpetrados pelas forças policiais e militares colonialistas portuguesas.
Como é por demais sabido, toda a gesta libertadora do PAIGC liderado por Amílcar Cabral visava a promoção e a defesa não só do Direito Internacional Público, o qual, desde a aprovação da Resolução 1514 (XV), de 14 de Dezembro de 1960, da Assembleia-Geral da ONU, fornecia uma sólida e insofismável base legal à luta dos povos colonizados para o exercício do seu direito à autodeterminação e independência política, mas também para a sedimentação, na vindoura Guiné-Bissau e no futuro Cabo Verde independentes e soberanos, dos mais elementares, inalienáveis e imprescritíveis direitos humanos e liberdades fundamentais, a que, aliás, somente com o desencadeamento da luta político-armada de libertação binacional as populações da Guiné-Bissau puderam aceder e começar a usufruir de forma alargada e em medida incomensuravelmente mais extensa tanto no período liberal monárquico e liberal republicano português como igualmente no período colonial-fascista português.
Por outro lado, são conhecidas as genuínas preocupações de Amílcar Cabral com as questões relativas ao exercício democrático do poder político na administração das zonas/regiões libertadas pelo Estado nascente e ainda muito marcado pela ambivalente fisionomia de um Partido/Estado, mediante uma crescente participação popular na mesma administração, bem como com a salvaguarda do respeito dos direitos humanos e a garantia das liberdades fundamentais no funcionamento dos órgãos do Partido/Estado e no seu relacionamento com as populações dessas mesmas zonas/regiões libertadas.
É assim que no Seminário de Quadros, de 1969, o líder político-militar caboverdiano/bissau-guineense explanou o seu posicionamento, que era o posicionamento do PAIGC, sobre a questão do Estado colonial versus Estado pós-colonial, nos seguintes termos:
“Pretendemos destruir toda a possibilidade de que, amanhã, aqueles que libertaram a terra ou outros abusem do nosso povo. O nosso objectivo não pode ser tomar conta do palácio do governador, da casa do administrador ou do chefe de posto para fazermos o mesmo que eles faziam. O nosso objectivo é destruir o Estado colonial para criarmos um novo Estado, diferente, na base da justiça, do trabalho e da igualdade de oportunidades para todos os filhos da nossa terra, a Guiné e Cabo Verde. Queremos portanto eliminar tudo quanto seja um obstáculo ao progresso do nosso povo, todas as relações que na nossa sociedade sejam contra o progresso e a liberdade do nosso povo. Ao fim e ao cabo, queremos oferecer possibilidades concretas e iguais a qualquer filho da nossa terra, homem ou mulher, para avançar como ser humano, dar tudo da sua capacidade, desenvolver o seu físico e o seu espírito, em resumo ser um ser humano à altura da sua capacidade” (in “Alguns Tipos de Resistência - Resistência Política”, in obra acima citada A Luta Criou Raízes).
Comentários
LIma, 20 de Fev de 2025
Fez a guerra com milhares de mortos em vez de dialogar, Submeteu-se à União Soviética e China, ara instaurar uma ditadura em vez de uma democracia. Foi assassinado pelos seus apaniguados e hoje os caboverdianos fogem para Portugal
Responder
O seu comentário foi registado com sucesso.