CARLOS VEIGA, A FIGURA HISTÓRICA E HUMANA DE AMÍLCAR CABRAL E O SIGNIFICADO POLÍTICO E SIMBÓLICO DA INDEPENDÊNCIA POLÍTICA DE CABO VERDE
Colunista

CARLOS VEIGA, A FIGURA HISTÓRICA E HUMANA DE AMÍLCAR CABRAL E O SIGNIFICADO POLÍTICO E SIMBÓLICO DA INDEPENDÊNCIA POLÍTICA DE CABO VERDE

...segundo Carlos Veiga, trinta anos depois do seu assassinato era natural que algumas teses de Amílcar Cabral fossem questionadas. É, assim, que o líder histórico do MpD intenta também co-responsabilizar Amílcar Cabral, ainda que de forma parcial e indirecta, pelos supostos e/ou reais malefícios totalitários do regime político caboverdiano de democracia nacional revolucionária, implantado em Cabo Verde pelo PAIGC e consolidado pelo seu sucessor islenho, o PAICV. Para tanto, alegou o líder histórico do MpD que uma parte do legado teórico-doutrinário e da concepção de Partido-Estado e de Estado pós-colonial ter sido adoptada pelo primeiro líder do PAIGC nas condições muito particulares advenientes da urgente necessidade de administrar as chamadas zonas/regiões libertadas da Guiné dita Portuguesa e de proclamar unilateralmente a existência do Estado independente e soberano da Guiné-Bissau como resultado jurídico-constitucionalmente e internacionalmente relevante da longa luta político-armada conduzida pelo PAIGC sob a sua destemida e clarividente liderança. Nesta óptica, e prosseguindo nas suas explanações expendidas no acima referido Segundo Simpósio Internacional Amílcar Cabral, de Setembro de 2004, considerou Carlos Veiga que é a “democracia revolucionária”, enquanto princípio fundante do sistema político de Partido-Estado implantado, primeiramente, nas áreas libertadas da Guiné-Bissau e, depois, tornado extensivo e político-constitucionalmente impregnante dos Estados soberanos e independentes da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, consabidamente modelados como regimes políticos de partido único socializante, depois oficialmente adoptando a designação de regimes políticos de democracia nacional revolucionária, nos quais o PAIGC foi unilateralmente erigido como partido único, isto é, como “o único partido autorizado” e qualificado, ademais, como “força, luz e guia do nosso povo”, “expressão suprema da vontade soberana do povo”, “força política dirigente da sociedade” e “força política dirigente da sociedade e do Estado”, entre outros atributos, epítetos e qualificativos supra-constitucionais.

PRIMEIRA PARTE

1.    Em face das, para mim surpreendentes e abstrusas afirmações, recentemente trazidas a público por alguns escribas da nossas praça (alguns deles, aliás, detentores de elevadas responsabilidades políticas e intelectuais, pelo menos num passado recente), e que questionam a importância histórica de Amílcar Cabral e o significado único, irrepetível e matricial da conquista pelo povo caboverdiano da sua independência política, convém trazer à colação  e  para o devido conhecimento de um mais vasto público, nacional e estrangeiro, alguns depoimentos anteriores de Carlos Veiga, o líder histórico do MpD, designadamente daqueles proferidos no Segundo Colóquio Internacional Amílcar Cabral, realizado em 1998, na cidade da Praia, e no Segundo Simpósio Internacional Amílcar Cabral, realizado em 2004, na mesma cidade da Praia.

Nesses dois eventos internacionais organizados pela Fundação Amílcar Cabral, ressalta-se a expressa exaltação por parte do líder histórico do MpD da figura histórica e humana de Amílcar Cabral, cujo centenário foi celebrado urbi et orbe com grande e indesmentível sucesso no passado ano de 2024, e do significado político-simbólico da independência nacional de Cabo Verde, cujo cinquentenário se comemora neste ano de 2025. 

É, assim, que no Discurso que proferiu no acima referido Segundo Colóquio Internacional Amílcar Cabral, realizado em homenagem ao fundador do PAIGC e Herói dos Povoos da Guiné-Bissau e de Cabo Verde e ao seu amigo e camarada dilecto, Mário de Andrade, e cuja Abertura Solene foi, aliás, presidida por Carlos Veiga, enquanto Primeiro-Ministro de Cabo Verde, ele afirma que  Amílcar Cabral e Mário de Andrade são “dois homens que souberam sonhar o sonho das nossas independências, recusando-se a aceitar passivamente o destino de humilhação e dependência que a história parecia ter traçado para os nossos povos e acreditando, convictamente, na força das nossas nações e na sua capacidade de construir um futuro diferente”. 

Nessa ocasião, Carlos Veiga caracterizou Amílcar Cabral e Mário de Andrade como “dois homens de craveira superior, de visão e inteligência brilhantes, de coragem, que também souberam dar tudo de si mesmos, sacrificar o seu bem-estar, desprezar benesses e regalias materiais, para lutar a luta dura mas nobre da libertação dos nossos povos e, com humildade, buscar nas nossas terras e nas nossas  gentes a  inspiração e a força. 

Dois homens, pois, que merecem a nossa homenagem e gratidão, sobretudo pela via da continuação da obra que começaram e de enriquecimento crescente e contínuo do legado que nos deixaram”. 

Mais à frente, e colocando a caboverdianidade como centro nevrálgico da  proverbial resiliência do povo das ilhas e diásporas e  como fermento, ao longo da história, da conhecida resistência anticolonial das ideias autonomistas e  independentistas das suas elites letradas, asseverou Carlos Veiga que “ a independência foi o coroar desse esforço secular de construção e afirmação da nossa identidade cultural  e nacional, um momento ímpar na nossa história, o resultado de uma consciência colectiva cada vez mais aguda de nós mesmos, das nossas diferenças e semelhanças com outros  povos e culturas, e a concretização da nossa vontade comum de encontrar o nosso rumo e lugar próprios e específicos na humanidade, despertados e conduzidos pela acção de homens valorosos e heróicos, à frente dos quais está,  indubitavelmente, Amílcar Cabral. 

Reiterou ainda o então Primeiro-Ministro de Cabo Verde no Segundo Colóquio Internacional Amílcar Cabral, de 1998: “É forte, entre os caboverdianos residentes e da diáspora, mesmo entre os de segunda geração, este sentido de um destino comum e de pertença total a uma mesma comunidade. Suficientemente forte para gerar o consenso do povo cabo-verdiano em relação aos grandes desafios da sua existência e progresso. 

Foi esse consenso que tornou possível a independência e a construção de um Estado credível e útil na comunidade internacional, desmentindo, na prática, aqueles que nos negavam a autodeterminação  com fundamento na inviabilidade de as ilhas assumirem o seu próprio destino; foi ele que permitiu uma transição tranquila, sustentada e exemplar para a democracia; é ele ainda que tem permitido ao povo cabo-verdiano sobreviver, progredir e ser,  efectivamente, um povo vencedor ao longo de séculos de luta tenaz contra as adversidades e as condições muito difíceis de  existência que a natureza madrasta nos legou. A força da caboverdianidade e a solidez do consenso que lhe está subjacente são o factor mais importante de confiança no futuro de Cabo Verde e no complexo e árduo combate que é preciso continuar a fazer pelo desenvolvimento e felicidade dos cabo-verdianos”.  

É neste contexto que deve ser também referida a comunicação apresentada por Carlos Veiga, em Setembro de 2005, ao Segundo Simpósio Internacional Amílcar Cabral. Nessa comunicação, asseverou Carlos Veiga numa por demais feliz e pertinente expressão que “para todos os cabo-verdianos, Amílcar Cabral é o Primeiro dos seus Heróis e o Maior dos Homens Grandes de Cabo Verde”, em razão de “ter sido dos primeiros a apresentar a independência como a única opção da nação caboverdiana colonizada, que a teorizou quanto a fundamentos e objectivos, que concebeu e construiu os instrumentos, a estratégia e a táctica para a conquistar, e que dirigiu a luta armada para a obter”. Prosseguiu o líder histórico do MpD: “Assassinado cobarde e traiçoeiramente, a solidez do trabalho realizado até então, a clareza das orientações deixadas, o gigantismo da coragem e a profundidade das convicções que soube incutir nos seus colaboradores mais próximos permitiram que, mesmo sem a sua presença inteligente, estimulante e mobilizadora, o sonho por que tanto lutou se concretizasse pouco depois”. Por tudo isso, Amilcar Cabral foi considerado por Carlos Veiga  “o principal obreiro da Independência” política da Guiné e de Cabo Verde. Independência política de Cabo Verde que, segundo Carlos Veiga,  é e permanece “a marca mais indelével da nossa História”.   

Acrescentou ainda Carlos Veiga que “Amílcar Cabral tem uma outra faceta que o eleva ainda mais”, pois que sempre se mostrou preocupado com a fase pós-colonial da luta e da vida dos povos que ajudou a libertar e, assim, também do povo caboverdiano, prevenindo e asseverando em reiteradas ocasiões que a independência política não é a etapa final da luta de libertação nacional, mas uma simples, se bem que uma sua muito importante fase, designadamente e segundo Carlos Veiga, “o ponto de partida necessário  e uma estação de trânsito obrigatória para o percurso rumo a uma marca ainda mais profunda, a um objectivo ainda mais importante e decisivo: a conquista completa da sua dignidade, da sua liberdade e do seu progresso, pelo livre desenvolvimento das forças produtivas nacionais e da sua colocação ao serviço do povo”. Ou por outras palavras, também correntes no discurso de Amílcar Cabral e referidas igualmente por Carlos Veiga: para a construção das condições de dignificação do povo, cujos filhos não lutam somente para ter um hino, uma bandeira e um governo nacionais, mas primacialmente para melhorar as suas próprias condições de vida e para a concretização prática do seu direito à liberdade, à dignidade, à paz, ao progresso e ao bem-estar material e espiritual, numa sociedade libertada do medo,  da fome, da miséria e da ignorância.
Neste contexto, não deixou Carlos Veiga de realçar o valioso contributo teórico de Amílcar Cabral para o pensamento político contemporâneo ao sublinhar que i. somente existe verdadeira libertação nacional quando haja verdadeira libertação das forças produtivas nacionais de toda e qualquer dominação estrangeira; ii. a maior ameaça contra o movimento de libertação nacional é o neo-colonialismo; iii. a necessidade da inelutável escolha na fase pós-colonial entre a opção socialista e a dominação imperialista de tipo neo-colonial; iv. o suicídio de classe do sector revolucionário da pequena-burguesia de serviços, alcandorada ao poder do Estado pós-colonial é a condição sine qua non para a viabilização da opção socialista, acima referida; vi. no caso colonial, torna-se indispensável a constituição de uma frente unida da nação-classe colonizada contra a burguesia metropolitana e os seus representantes coloniais; vii.no caso neo-colonial, é premente a necessidade de uma ampla aliança de classes, incluindo com os sectores patrióticos da burguesia nacional, contra a burguesia imperialista e a classe dirigente nativa. 

2. Parecem-nos ser assaz significativos os acima referidos posicionamentos do primeiro Presidente do MpD e antigo Primeiro-Ministro de Cabo Verde em relação à figura histórica e humana de Amílcar Cabral, pois que o singulariza e o diferencia nitidamente dos posicionamentos de outras personalidades políticas ligadas ao MpD, com destaque para os Deputados do Grupo Parlamentar do mesmo partido político na Assembleia Nacional que decidiram chumbar a proposta de Comemoração do Centenário Natalício de  Amílcar Cabral durante todo o ano de 2024 e constante do projecto de Resolução da iniciativa da Fundação Amílcar Cabral e trazida para a discussão e a votação do Plenário da mesma Assembleia Nacional pelo Grupo Parlamentar do PAICV. 

Tais considerações têm outrossim um especial significado em virtude de terem sido proferidas por uma individualidade, também ela integrante do Panteão das Grandes Personalidades Históricas Caboverdianas em razão de ser o líder histórico do MpD por ter sido sucessivamente: o primeiro Coordenador Provisório e o primeiro Presidente eleito do mesmo partido/movimento político; antigo Primeiro-Ministro de Cabo Verde por dois mandatos consecutivos conquistados com maioria qualificada e derrotando, primeiramente, o histórico Pedro Pires e, depois, Aristides Lima, candidatos a Primeiro-Ministro designados pelo PAICV; antigo candidato presidencial apoiado pelo MpD e derrotado por duas vezes por Pedro Pires, por sua vez apoiado pelo PAICV;  antigo candidato a Primeiro-Ministro designado pelo MpD, do qual foi de novo eleito Presidente, e derrotado por José Maria Neves, Presidente do PAICV; antigo líder do MpD, colocado na oposição parlamentar durante quinze anos, e antigo candidato presidencial apoiado pelo MpD e derrotado por José Maria Neves, apoiado pelo PAICV. 

3. Para Carlos Veiga, “por outro lado, a validade das teses de Cabral, no contexto em que se inseriam, foi confirmada pelos resultados alcançados: as independências da Guiné e de Cabo Verde”, reiterando o líder histórico do MpD em seguida, de modo assaz peremptório, ufano e solene: “Cabral, a sua memória e o símbolo que é pertence deste modo a todos os cabo-verdianos: querer apropriar-se, privativamente, dele é diminui-lo e tentar reduzir, injusta e injustificadamente, a sua estatura superior de Primeiro de nossos Heróis e não o homenagear, honrar e dignificar é incompreensível e inaceitável”.  

Todavia e segundo Carlos Veiga, trinta anos depois do seu assassinato era natural que algumas teses de Amílcar Cabral fossem questionadas.
É, assim, que o líder histórico do MpD intenta também co-responsabilizar Amílcar Cabral, ainda que  de forma parcial e indirecta, pelos supostos e/ou reais malefícios totalitários do regime político caboverdiano de democracia nacional revolucionária, implantado em Cabo Verde pelo PAIGC e consolidado pelo seu sucessor islenho, o PAICV. Para tanto, alegou o líder histórico do MpD que uma parte do legado teórico-doutrinário e da concepção de Partido-Estado e de Estado pós-colonial ter sido adoptada pelo primeiro líder do PAIGC nas condições muito particulares advenientes da urgente necessidade de administrar as chamadas zonas/regiões libertadas da Guiné dita Portuguesa e de proclamar unilateralmente a existência do Estado independente e soberano da Guiné-Bissau como resultado jurídico-constitucionalmente e internacionalmente relevante da longa luta político-armada conduzida pelo PAIGC sob a sua destemida e clarividente liderança. 
Nesta óptica, e prosseguindo nas suas explanações expendidas no acima referido Segundo Simpósio Internacional Amílcar Cabral, de Setembro de 2004, considerou Carlos Veiga que é a “democracia revolucionária”, enquanto princípio fundante do sistema político de Partido-Estado implantado, primeiramente, nas áreas libertadas da Guiné-Bissau e, depois, tornado extensivo e político-constitucionalmente impregnante dos Estados soberanos e independentes da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, consabidamente modelados como regimes políticos de partido único socializante, depois oficialmente adoptando a designação de regimes políticos de democracia nacional revolucionária, nos quais o PAIGC foi unilateralmente erigido como partido único, isto é, como “o único partido autorizado” e qualificado, ademais, como “força, luz e guia do nosso povo”, “expressão suprema da vontade soberana do povo”, “força política dirigente da sociedade” e “força política dirigente da sociedade e do Estado”, entre outros atributos, epítetos e qualificativos supra-constitucionais. Segundo Carlos Veiga, foi a  condição supra-constitucional do PAIGC e, depois, do PAICV, que teria propiciado a concepção do Estado independente e soberano de Cabo Verde como mero instrumento para a aplicação do “programa político, económico, social, cultural, de defesa e segurança” definido por esse mesmo “partido de vanguarda”, cujos dirigentes, responsáveis e militantes alegadamente se consideravam e se fizeram alcandorar a um privilegiado estatuto político de “melhores filhos do nosso povo”, por isso, alçados ao status de “detentores exclusivos  do monopólio do poder político”. Em razão disso tudo, defendeu Carlos Veiga que, apesar das suas  actuais virtualidades e potencialidades enquanto potenciador de uma democracia participativa complementar da moderna democracia representativa de feição democrático-liberal e matriz ocidental, tempestivamente consagrada na Constituição Política caboverdiana de 1992, o conceito de democracia revolucionária foi sujeito nos últimos anos a severas e demolidoras críticas porque, tal como os “Estados da legalidade socialista “, nos quais alegadamente Amílcar Cabral se teria inspirado para criar a sua concepção de Estado fundada no conceito de democracia revolucionária, o regime político de partido único socializante de Cabo Verde, comum e oficialmente designado de regime político de democracia nacional revolucionária, pode ser inserido na categoria de Estado de não direito e/ou de Estado contra o direito, diametralmente oposto, do ponto de vista conceptual, ao Estado de Direito e ao Estado de Direito Democrático, plasmados na Constituição Política caboverdiana de 1992. 

4. Vale todavia relembrar que, em Dezembro de 1960, Amílcar Cabral tinha apresentado ao Governo português em nome do PAIGC um Memorando no qual propunha uma solução pacífica e negociada para a obtenção da independência política da Guiné dita Portuguesa e de Cabo Verde com instauração imediata das liberdades democráticas fundamentais de expressão do pensamento, de reunião, de manifestação, de associação, de greve e de criação de partidos políticos e de organizações sindicais com vista à realização de eleições gerais e livres por sufrágio universal, directo, igual e secreto da Câmara de Representantes do Povo da Guiné Portuguesa, na proporção de um representante para trinta mil habitantes, e da Câmara de Representantes do Povo de Cabo Verde, na proporção de um representante para dez mil habitantes, sendo que ambas as Câmaras de Representantes seriam dotadas de poderes soberanos, constituintes e legislativos e de designação dos respectivos poderes executivos, ficando abertas as possibilidades alternativas da união entre os dois territórios ou da sua independência separada, conforme decidissem em reunião conjunta as duas Câmaras de Representantes. 

A essa démarche liberal-democrática de Amílcar Cabral não deve ter sido estranha a sua recorrente e sistemática qualificação do Estado português da altura e das suas extensões político-administrativas nas colónias/províncias ultramarinas  portuguesas como Estado colonial-fascista, com isso certamente querendo significar que, não obstante caber essencialmente ao povo português e às suas organizações políticas a luta contra o salarazismo e o fascismo na Metrópole portuguesa, a luta contra a dominação colonial portuguesa empreendida por movimentos de libertação nacional progressistas e socializantes, como era o PAIGC, implicava necessariamente o arrebentamento e o desmantelamento da ossatura e do  aparato fascistas da sua extensão político-administrativa e estadual colonial/provincial-ultramarina nos nossos países africanos. Por isso, não foi certamente por acaso que o Programa Maior do PAIGC elege e define a defesa dos direitos humanos e a consagração das liberdades fundamentais como um dos objectivos cruciais e fulcrais dos futuros Estados independentes e soberanos  da Guiné (-Bissau) e de Cabo Verde. Por outro lado, e como, citando Mário Silva, Carlos Veiga refere, aliás, muito bem, a primeira Constituição Política da Guiné-Bissau, aprovada pela Assembleia Nacional Popular (ANP) desse país, depois de ter proclamado unilateralmente o Estado independente e soberano da Guiné-Bissau enquanto República  democrática, laica, unitária, anti-colonialista e anti-imperialista, referia-se expressamente, numa postura muito rara entre os Estados independentes existentes nessa altura,  à Declaração Universal dos Direitos do Homem. 

5. A apresentação do Memorando ao Governo português pelo PAIGC liderado por Amílcar Cabral,  e acima referido, foi, aliás, expressamente mencionado por Carlos Veiga na sua comunicação apresentada ao Segundo Simpósio Internacional Amílcar Cabral. Considera todavia (e erroneamente, na minha opinião), que com o início (e acrescentamos nós, com o crescente sucesso da luta político-armada de libertação binacional dos povos da Guiné-Bissau e de Cabo Verde) e “influenciado quer pelas correntes de opinião em voga nos anos sessenta do século XX”, designadamente das concepções marxistas, aliás, partilhadas com a generalidade dos dirigentes dos movimentos de libertação nacional das colónias portuguesas, quer pelos países socialistas de onde provinham “os apoios políticos e ideológicos” à luta conduzida pelo PAIGC, e tendo  ademais e  sobretudo em conta a emergência no território da Guiné-Bissau das chamadas zonas/regiões libertadas, Amílcar Cabral “rompe com o modelo de democracia pluralista de inspiração liberal e passa a defender a democracia revolucionária, elevada a princípio fundamental da organização do partido, conjuntamente com os princípios da crítica e da autocrítica, da direcção colectiva  e do centralismo democrático, a ele estreitamente ligados”, sempre guiado pelos princípios cardeais do seu pensamento político consubstanciados nas palavras de ordem Partir da Realidade da nossa Terra, Ser Realistas e Pensar Muito os nossos Problemas para Agir Bem e Agir Muito para Pensar Melhor,  com vista a adaptar o  seu partido-movimento de libertação binacional  às condições da luta armada na Guiné-Bissau e à necessidade premente da administração das acima referidas zonas/regiões libertadas.  

Da opção por esses princípios e da adopção dessa óptica organizacional na concepção do Estado pós-colonial, teria  resultado, segundo Carlos Veiga, uma simbiose (diriamos nós que, até, uma osmose) entre o PAIGC e o nascente Estado da Guiné-Bissau, cuja independência política seria proclamada unilateralmente, já depois do “traiçoeiro ” assassinato do seu demiurgo e principal pensador e autor intelectual, a 24 de Setembro de 1973, seguindo-se, acrescentamos nós, já nas condições propiciadas pelo  golpe de Estado militar do 25 de Abril de 1974 e pela sequente Revolução dos Cravos em Portugal, a correlativa aceleração da História nas colónias/províncias ultramarinas portuguesas, tudo culminando na abertura e na conclusão das negociações conducentes à obtenção das respectivas independências políticas durante todo o ano de 1975, nelas se inserindo a proclamação da independência política e da soberania nacional e internacional de Cabo Verde, a 5 de Julho de 1975, depois de um período de transição política de mais ou menos seis meses. 

Partilhe esta notícia

Comentários

  • Este artigo ainda não tem comentário. Seja o primeiro a comentar!

Comentar

Caracteres restantes: 500

O privilégio de realizar comentários neste espaço está limitado a leitores registados e a assinantes do Santiago Magazine.
Santiago Magazine reserva-se ao direito de apagar os comentários que não cumpram as regras de moderação.