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Política de História, Memória e Identidade em Cabo Verde – Parte III   
Ponto de Vista

Política de História, Memória e Identidade em Cabo Verde – Parte III  

...faz todo sentido o que presidente do IPC disse acerca da necessidade de uma nova edição sobre História Geral de Cabo Verde. Aliás, essa necessidade já se encontrava prevista, pois, a DGPC e o IICTP notavam “Qualquer que seja o grau de aceitabilidade do produto final, é sempre possível uma outra versão da História de Cabo Verde, tanto melhor como pior do que esta.” Portanto, já é tempo de avançar com esse projeto, inclusive hoje temos melhores condições para uma versão melhor da nossa história. Falta apenas a vontade política!

Parte III: A política educacional de Mestiçagem em Cabo Verde

Todavia, um olhar mesmo que breve, mas atento e crítico, sobre os manuais atualmente usados, nota-se que as orientações são outras. Por exemplo, o manual escolar de ciências integradas de quarta classe não começa com origem da humanidade e não tem nada sobre a escravatura. Já o manual escolar de quinta classe sobre história e geografia de Cabo Verde, baseado nos mesmos pressupostos epistêmicos e ideológicos, não começa com a origem da humanidade e tem muito pouco sobre escravatura.

Gostaria de partilhar um episódio que ilustra muito bem os problemas em relação aos manuais atualmente usados, dada a orientação ideológica e epistemológica neles contida. O manual escolar de ciências integradas de quarta classe, precisamente usado pelo meu filho, afirma: “A sociedade cabo-verdiana é o resultado da união dos povos africanos e dos europeus que colonizaram o arquipélago desde o século XV.” (p.22) Mas, como assim “união” num contexto marcado pela escravatura e colonialismo?  Disse ao meu filho para dizer à professora que a cultura caboverdiana foi forjada numa sociedade escravocrata que resultou de uma cultura com influências europeias e africanas. A professora respondeu ao meu filho que é verdade aquilo que eu disse, só não ensinou daquela forma porque o manual não abordava assim, logo não poderia “desviar”.

Mais do que um exemplo isolado, a ideia contida naquele manual demonstra que o poder da ideologia de mestiçagem é muito forte: “Apesar de resultar de negros africanos e de brancos europeus, a sociedade cabo-verdiana, na atualidade, é mestiça, ou seja, dos negros e dos brancos nasceram os mestiços que são a maior parte da sociedade. A sociedade e a cultura cabo-verdianas são hoje mestiças, conservando traços europeus, traços africanos e elementos que resultaram da união dos dois. Assim, ao contrário de vários países africanos, não há etnias em Cabo Verde e as diferenças entre europeus e africanos desapareceram.” (p.22) Esta frase demonstra o posicionamento sobre a identidade caboverdiana, com o surgimento de mestiço, produto de senhor branco e escrava negra, que vai moldar a cultura e identidade caboverdianas, excluindo, entretanto, os escravizados, os fujões, os libertos, etc., e recusar a existência da raça, racismo e supremacia branca em Cabo Verde. Como este processo aconteceu não é bem explicado, mas a ideia que tinha uma união que resultou desse mestiço que criou a cultura caboverdiana é tese abraçada pela maior parte da elite caboverdiana.

A ideia de mestiço surgia num contexto de hierarquizações de raças e o negro-africano encontrava-se no nível mais baixo e comparado com os animais. No século dezanove, Arthur de Gobineau, o diplomata francês, escreveu Essai sur I’inégalité des races humaines (1855), com esta ideia de hierarquia das raças humanas com Arianos no topo da pirâmide.  Por isso, a mistura com os arianos resultava na decadência da raça ariana e branca em geral. Porém, Anténor Firmin, o diplomata Haitiano e um dos pioneiros de antropologia, respondeu Gobineau com o seu livro, De I’égalité des races humaines (1885), que defende a igualdade das raças humanas e a única origem da humanidade em África. Também, Firmin refuta a ideia de que o “mulato”, com origem na palavra mula (de boro e cavalo), era infértil. Ele mostra a intelectual produtividade dos “mulatos” em nova república de Haiti, que foi libertado pelos Africanos escravizados. O livro dele refuta a tese pro-escravocrata de inferioridade do negro-africano e infertilidade dos “mulatos” e as justificações do racismo científico, particularmente quando a Conferência do Berlim (1884-1885) estava acontecendo para dividir África como um bolo para os europeus. 

Apesar de o “mulato”, resultado do branco e negro, ser bastante desprezado, com o advento do Estado Novo, Cabo Verde vai constituir-se no modelo de colonialismo português. O famoso adágio português disse: “Deus criou o Homem, e o Português criou o Mulato.” Por isso, Cabo Verde passaria a ser “colônia modelo” do colonialismo português.

A Luta Contra Branqueamento de História de Cabo Verde

A importância da história de Cabo Verde está mais procurada agora pela juventude e, aparentemente, os dirigentes políticos vêm reagindo. Por exemplo, no dia 20 de janeiro de 2022, na RTP “PR [de Cabo Verde] apela à criação de ferramentas para melhor incluir a história do país nas escolas.”  Ainda, em 2022, numa entrevista para Marcha Cabral, Adérito Tavares (Capinero Abada), um membro de Pilorinhu, uma associação comunitária de Txada Grandi Frenti, sublinhava a necessidade de uma nova história para ensinar aos jovens. Realmente muitos caboverdianos, particularmente os jovens, querem conhecer a história de Cabo Verde, África e mundo de um modo mais profundo. No entanto, por causa da alienação cultural, racismo, subdesenvolvimento econômico, democracia elitista e eleitoralista, as reinvindicações populares continuam sendo ignoradas.

Talvez percebendo tais exigências dos jovens e até do IPC, o Ministro da Educação, o Amadeu Cruz disse: “Os manuais da História de Cabo Verde devem ser neutros, em termos ideológicos. Concordo. Assim sendo, esses manuais poderão ser revistos para conferir neutralidade—em todos os sentidos! -, especialmente para valorizar todos os factos da História de Cabo Verde, sem distorções e sem valorações.” (Especial Educação, edição n 784 do A Nação, 08 de setembro de 2022, p.33) Pode a história ser escrita com neutralidade, sem ideologias? A história como disciplina procura objetividade, mas esta objetividade não significa neutralidade, porque as perguntas, as fontes, as consultas etc., pressupõem a tomada de posição e seletividade.

A nossa elite política e intelectual ainda não acha problemática manter a estátua de Diogo Gomes, entre outras tantas figuras escravocratas e colonialistas. Porém, com mais de quatrocentos anos de escravatura em Cabo Verde, ainda não tem nenhuma estátua de um único escravizado, particularmente dos fugitivos de djulangi. Esta memória colonialista continua afetando a nossa perspectiva histórica. Por isso, não é à toa que ainda não temos debate no parlamento sobre a remoção sobre estátuas como de Diogo Gomes que uma petição, intitulada: “Remoção de Monumentos pró-escravagistas e coloniais em Cabo Verde”, elaborado por Gilson Varela Lopes, tendo sido entregue a 11 de agosto de 2021, à Assembleia Nacional De Cabo Verde, com quase 2000 assinantes. Por que é que ainda não houve qualquer debate?

No artigo, Descolonizar Cabo Verde-Para Além da Remoção Das Estátuas disse muito bem o desafio: “questionar o mapa cognitivo imperial e os legados do colonialismo implica tocar fundamentalmente na educação. Por isso, entendemos que é preciso ir mais longe: reformar e atualizar os conteúdos históricos dos currículos, dos programas, dos manuais escolares e outros recursos educativos e pedagógicos usados no ensino e, sobretudo o ensino da História e da Cultura cabo-verdianas, tem sido feito com base numa narrativa de glorificação colonial e de romantização dos vários enfrentamentos irreconciliáveis e contraditórios entre si que deram origem a nativas/os mestiças/os, etc.) O currículo e vários conteúdos adotados no ensino da História e da Cultura Cabo-verdianas têm sido marcados por uma visão luso-tropicalista, influenciando diretamente a interpretação e a cultura histórica das nossas e dos nossos estudantes.”

No seu livro, Tempos de um Tempo que passou, Jorge Querido disse que em princípio o modelo de Estado depois da independência foi modelo português, piorando a situação com o MpD  (p.384-385). Em parte, é porque a epistemologia dominante mantém com uma forte conexão à lusofilia, impossibilitando que se tenha um profundo sentido de história de Cabo Verde e de África em geral. O meu artigo, “Descolonizar judiciário caboverdeano: o direito fundamental da alteração ao nome”[1], O Supremo Tribunal de Cabo Verde recusou a meu pedido de reconhecimento da sentença estrangeira sobre a mudança do meu nome, invocando lei colonial, que nunca foi abandonada depois da independência. Esta recusa está ligada à negação da nossa história como na altura escrevi: “Para um africano torna-se escravo e com novo status social, ele foi batizado e o padre deu-lhe um nome cristão, este significava “nome d’igreja.” Por isso, o seu nome próprio foi retirado e sem nenhum apelido originário. Então, deu-se início a um processo de ladinização pelo império português com a alienação, desumanização e desafricanização de milhões de africanos, que representavam uma violência simbólica, cultural e epistêmica. Depois, as suas religiões, as danças, as cantigas e línguas foram proibidas. Um processo sangrento, violento tanto físico como psicológico desde a sua captura no continente. Porém, com o fim escravatura, o colonialismo português em África, particularmente em Cabo Verde, continuou com a negação da cultura africana, o que até hoje provoca conflito identitário.”

Cidade Velha foi patrimônio de Humanidade precisamente por causa sa rota de escravizado de africanos, mas terá de o ser porque os primeiros resistentes em Cabo Verde eram africanos escravizados na Ribeira Grande que foram para os vales.

Esta frustração em relação à necessidade de uma nova história ou conhecer a nossa história melhor, vem não somente dos ativistas, provenientes dos diferentes bairros, mas também dos estudantes universitários que, cada vez mais, estão reclamando para a inclusão de pensadores africanos, designadamente Amílcar Cabral, e da história africana sem eurocentrismo ou “africanismo” ocidental.

Para ter mais acesso ao arquivo colonial em Portugal, em 14 de janeiro 2022, (País ao Minuto), teve um artigo sobre “Cabo Verde vai digitalizar oito mil documentos históricos. O Arquivo Nacional de Cabo Verde iniciou os trabalhos para digitalizar e resgatar oito mil documentos históricos existentes em Portugal, no âmbito de protocolo assinado em 2019, mas que esteve parado devido à pandemia, disse hoje fonte oficial.” Porém, como bem disse o presidente do IPC, esta unilateralidade das fontes não é boa para reescrever a nossa história. Para ele, a inclusão da arqueologia, sobretudo a estribada na escavação, oferece mais dados.

A propósito, a inclusão das fontes orais seria de extrema importância no tal processo da reescrita histórica. Nessa linha, em 1987, Dr. T.V. da Silva alargou o documento “Tradições Orais de Cabo Verde: campos e subcampos (levantamento para recolha)” com anterior pesquisa de Oswaldo Osório e ele, que identificou 23 campos e 272 subcampos de temas em história oral em Cabo Verde. (T. V. da Silva, 2005, p.209) Destes 23 campos, Da Silva identificou: literatura oral, cantigas de trabalho, outras cantigas, música e dança, festas tradicionais populares, devoções populares, usos e costumes, meteorologia, técnicas agrícola, técnicas de pecuária, técnicas de pesca, culinária, construção civil, medicina tradicional, jogos tradicionais, acontecimentos naturais e de carácter sociológico, nomes de animais, peixes e bichos, e nomes de plantas e frutas. Vários intelectuais, como Toyin Falola, propõem o uso do “arquivo ritual”, pelo fato de incluir elementos que vão além do arquivo colonial, tais como a história oral, objetos, ditados, canções etc. Neste tipo de trabalho, com recurso às fontes orais pode-se apresentar duas referências paradigmáticas: Djibrl Tamsir Niane (ao escrever sobre o império do Mali) e Jan Vansina.

Dito isto, faz todo sentido o que presidente do IPC disse acerca da necessidade de uma nova edição sobre História Geral de Cabo Verde. Aliás, essa necessidade já se encontrava prevista, pois, a DGPC e o IICTP notavam “Qualquer que seja o grau de aceitabilidade do produto final, é sempre possível uma outra versão da História de Cabo Verde, tanto melhor como pior do que esta.” Portanto, já é tempo de avançar com esse projeto, inclusive hoje temos melhores condições para uma versão melhor da nossa história. Falta apenas a vontade política!

*Doutorado em História Africana

[1] No jornal caboverdiano, A Nação, nº 776, 14 de julho de 2022, 14.

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