PAICV: que já vai sendo tempo de se sentar à volta da fogueira
Ponto de Vista

PAICV: que já vai sendo tempo de se sentar à volta da fogueira

A disputa para a liderança do PAICV (eleições directas em que só votam os Militantes) é um momento alto de pujança organizacional e tem, por isso mesmo, de ser um processo de enriquecimento interno, tranquilo e denso de ideias e propostas, pelo que não pode haver candidatos avalizados ou ‘ungidos’ e candidatos que seriam perigosos para o partido ou, como já disse, populistas. Não! Todos são igualmente Militantes, capazes, com provas dadas e determinados a fazer. Todos desejam o melhor para o Partido e para Cabo Verde. Todos estão em condições de, pela sua própria voz, dizer ao que vêm. E falo de ‘dizer’ ao Partido enquanto um todo; não a plateias segmentadas. Cumpre à Direcção do Partido criar essas condições de fala interna, com igualdade de circunstâncias e de tratamento para todos os Candidatos. Bem sei que não é da cultura do PAICV enaltecer e proteger os seus, mas, nesta altura da estrada, seria ajuizado não estar assim a desferir ataques a Militantes e Quadros do Partido e que são, igualmente, activos de Cabo Verde.

0. De hábito, escrevo de madrugada, mas hoje tiro proveito deste Domingo quente e de bruma seca para alinhar alguns pontos sobre uma matéria que tem vindo a ser constante nas notícias, merecendo, por conseguinte, o juízo e o pronunciamento de todos os cidadãos e todas as cidadãs deste Cabo Verde. Refiro-me ao PAICV, à sua agenda, aos seus episódios... à forma, em suma, que escolheu para estar nas manchetes. Tentarei, pois, dizer o que penso, a partir do meu ponto de observação e com os dados de que disponho. E também, naturalmente, com base na minha experiência, que procuro seja sempre consequente, e que já vem de muito longe. Conquanto distante, procuro não estar desatento.

1. Pelos padrões mais recuados no tempo, ‘fogueira’ seria sinónimo de, por exemplo, passeios a São Jorginho, jornadas de reflexão, seminários, campanhas de plantação de árvores, círculos de debate, encontros de quadros... Mais recentemente houve a experiência das Universidades de Verão... Pois que é próprio (necessário!) às famílias partidárias reunir-se, debater ideias, confraternizar-se, convergir no essencial e para bem do essencial, fortalecer-se como corpo unido... Os Militantes e Simpatizantes têm de conhecer-se e conviver uns com os outros. Importa reconhecê-lo, todavia, há um modo de estar e de fazer que se foi perdendo com o tempo, e é pena! E não é de hoje que faço este tipo de observação, pois que nunca abri mãos do direito/dever de ser crítico.

2. No período imediatamente a seguir às eleições de 1991, o Partido ficara naturalmente aturdido. Não era para menos. Eu havia estado nas campanhas em São Vicente, encabeçadas por Abílio Duarte, mas recebo, de Silvino da Luz, a indicação de que o meu contributo era necessário ao nível central. Pude, assim, integrar o pequeno grupo que, ao lado do Secretário-Geral Pedro Pires, assegurara a permanência na Sede Nacional na noite eleitoral de 13 de Janeiro. Sei bem como o silêncio foi ocupando espaço, da mesma forma que sei muito bem como muitos se foram afastando e acomodando-se aos novos tempos. Nos períodos de mudanças há sempre egoísmos e covardias, grandes e pequenas... Ou apenas a necessidade de sobrevivência ou auto-preservação. Num olhar sereno sobre o passado, é saudável perceber que no perseverar há custos pessoais pesadíssimos para os quais nem todos tem estaleca. Mas há quem tenha tido, e por isso pagaram facturas. Porventura continuam a pagar...

O contexto geral era, na verdade, extremamente desfavorável, hostil mesmo, mas impunha-se resistir e avançar. Desde logo, era necessário reagrupar-se, reorganizar e relançar-se. No dia 17 de Março, na sua primeira reunião após as Eleições Legislativas (13 de Janeiro) e Presidenciais (17 de Fevereiro) de 1991, o Conselho Nacional decidiu convocar uma Conferência Nacional de Quadros (CNQ), tendo logo, para o efeito, constituído uma Comissão Organizadora, a qual tinha a seguinte composição: Adão Rocha (Presidente), António P. Tavares, Arlete Vera Cruz, Armindo Maurício, Atelano Fonseca, Cláudio Furtado, Cristina Duarte, Felisberto Vieira, Hélder Araújo, Inês Brito, Jorge Tolentino, José Maria Neves, José Pedro Andrade, Júlio Correia, Manuel Varela, Marcos Oliveira, Margarida Cardoso, Mário Matos, Pedro Bettencourt. Tal Conferência veio a decorrer nos dias 10, 11 e 12 de Maio, no então Centro Social 1º de Maio, à Fazenda, contando com 120 Quadros originários de todos os Sectores, como então se dizia. (entre parêntesis: julgo que o PAICV nunca fez uma sessão pública de reconhecimento a esse Cidadão tão invulgar quanto discreto que é Adão Rocha) Essa CNQ deu um contributo decisivo para o relançamento do Partido. Aliás, já o seu ‘Documento de Enquadramento’ é uma peça política substanciosa, de análise e projecção. Na CNQ coube a mim (Apresentador) e a Marcos Oliveira (Moderador) animar o primeiro painel sobre estratégias de renovação. Pouco tempo depois, o Congresso decorreu, também no Centro Social, num ambiente mais enriquecido e de confiança em crescendo. A CNQ havia cumprido o seu papel! Aliás, nenhum observador minimamente atento desconhece a qualidade e a acutilância da Oposição Democrática protagonizada pelo PAICV durante os anos noventa, em várias frentes que não apenas no Parlamento. Por exemplo, o contributo na frente da Imprensa foi relevantíssimo, conquanto sempre injustiçado nos balanços de conveniência. Veja-se que a própria expressão ‘Partido Tambarina’ vem desses tempos de resistência. Ou de fortalecimento na resistência, para ser mais preciso. O regresso do PAICV ao Poder, em 2001, foi absolutamente meritório. Havia feito a travessia das areias incandescentes, havia sido o primeiro a protagonizar o exercício da Oposição Democrática no Cabo Verde de Democracia e estava preparado para exercer o Poder nessa nova realidade político-institucional. Tratava-se então de um Partido em toda a extensão do conceito. Unido, ciente da sua matriz político-ideológica, com um claro sentido dos seus propósitos e, por conseguinte, também com as ambições pessoais, sempre legítimas, mantidas em níveis sustentáveis. Muitos fizeram concessões a bem de um interesse maior, porventura ainda marcados pelas lógicas colectivistas de antanho. Essa generosidade tem sido penalizada, diuturnamente. No primeiro Congresso realizado após o regresso ao Poder, foi aprovada a ‘Declaração de Princípios’, ainda vigente. Foi escrita, de fio a pavio, numa madrugada de inspiração e afinco, por Mário Matos, Ilídio Cruz e por mim. Esses eram tempos de trabalho intenso e desprendido. O que se traduziu também na Governação. Tive a honra de integrar o primeiro Governo, em 2001, e sei o quanto funcionava o espírito de equipa, sem o qual, de resto, não teria sido possível fazer caminho. Nenhum de nós trazia experiência governativa precedente: aprendemos fazendo. Estando na Presidência do Conselho de Ministros, tive a alegria de ir recebendo os que entraram depois e de os ajudar na integração.

O período dos agravos e mágoas viria anos depois e continua a contaminar TUDO o que acontece no PAICV ainda hoje. Pois que o empurrar com a barriga não resolve nada, como se sabe. Adia e agrava, simplesmente. Hoje, é importante reconhecer que, em termos inter-geracionais, há uma experiência, toda uma capacidade de conceber e de fazer que não se passou para os mais novos. Pura e simplesmente não se passou. E não estou a dizer nada que já não tenha dito algures. Por exemplo, na primeira sessão do Conselho Nacional após as eleições de 2015, quando todos iam de espada em riste contra o ainda Primeiro Ministro, fiz uma pormenorizada intervenção de leitura das etapas, sucessos, falhanços, erros... Cristina Fontes, presidente desse órgão, teve a gentileza de me deixar falar para lá do tempo estipulado... Não havia como ter ganho as eleições, defendi então, e que seria bom para o Partido voltar à Oposição. Disse José Maria Neves que a minha intervenção lhe tinha feito justiça. Quem lá esteve e tenha memória (bem sei que ser desmemoriado rende muito hoje em dia), certamente se recordará do que eu disse. Jorge Lopes instou-me a publicar essa minha intervenção. Não o fiz, todavia. Mas guardo as fichas manuscritas que levava.

3. E um dado revelador de que muito do Partido tem ficado pelo caminho, é a evidente sede de debate, de conhecimento, de interacção no seio da família PAICV. Não há debate interno! Já não se senta à fogueira... E isso tem consequências, é evidente. Por exemplo, está-se presentemente a fazer em público, designadamente nas redes sociais, o que naturalmente seria (deveria ser) feito internamente, num contexto organizacional em que o debate fosse natural, prática corrente. A palavra ‘Camarada’, na sua fortaleza de conteúdos, contém também a ideia de estar junto, de ombro a ombro, de franqueza e lealdade. Há, infelizmente, um esbatimento do Partido em favor de uma ideia peregrina de que tudo deve ser ‘lavado’ na praça pública e de que é a Democracia que exige que seja assim... O que equivale, no limite, a recusar aos Partidos, em geral, a sua esfera de intimidade, exclusiva dos Militantes, de definição do que lhes seja estratégico. Ou não fossem Organizações para o combate político!...  Nenhum partido político se fortalece submetendo-se a tamanho ‘striptease’ em que tudo é dito e discutido na praça pública. Ma casta de cosa é esse???

4. Há pouco mais de dez anos, e aponto isto como experiência comparada, quando se colocou a hipótese de o Partido Socialista português realizar ‘Primárias’ para a identificação do melhor candidato a Primeiro Ministro, questionado sobre isso, o Professor Freitas do Amaral respondera assim: ‘Levanta problemas sérios. Enquanto a marcação do Congresso ou de diretas seria perfeitamente legítima, estamos, neste caso, perante uma coisa nova, não só no PS como nos partidos portugueses.

À luz do Direito português, a realização de primárias para o candidato a PM só pode ser posta em prática se houver uma alteração dos Estatutos do PS. Até agora estavam previstas eleições para o Secretário-geral, no pressuposto de que, se o partido ganhar, será ele o PM. Se se admite, à partida, que o candidato a PM resulte não de eleições diretas mas de primárias, então terá de realizar-se essa alteração estatutária, que, tanto quanto sei, o PS faz em Congresso. Ou então seria ilegal e facilmente impugnável’.

5. Adiante! Em defesa do fortalecimento do trabalho partidário pronunciei-me demoradamente na minha comunicação à Conferência Nacional de 2012, realizada sob o lema ‘Pensar o Futuro, hoje!’. Analisei e fiz propostas, bem como lancei desafios. Aquilo que na altura eu chamava de ‘angústias, inquietações e questionamentos’ continuam actuais. Cfr. o meu ‘Tempos de inCertezas’, Praia, 2016, pp 69ss. Ou seja, e são só exemplos, já então insurgia-me contra duas vias perniciosas: uma, a da transformação do Partido em máquina eleitoral, que só acorda e se aquece nas vésperas de embates eleitorais. Por mor disso, não se investe na Formação, essa espinha dorsal de qualquer Organização Política. Historicamente, aliás, o Departamento de Organização e Formação era ‘o’ Departamento! Hoje, há um confrangedor desconhecimento da História do Partido e da sua matriz ideológica, mas também dos seus Protagonistas em vários momentos dessa História, o que leva a que Militantes e Dirigentes façam pronunciamentos e adoptem posicionamentos em nada compagináveis com o que seja, com o que é o PAICV. Verdadeiramente. Não têm a menor ideia do que seja a ‘Declaração de Princípios’ e vão atirando chavões a esmo. E não há ninguém, nenhuma instância que reponha normalidade ao curso. Demite-se... Permite-se... Nessa deriva, o Partido acaba por abrir as portas a interesses outros e mesmo a lugares dirigentes e de projecção nacional chegam neófitos inteiramente desconhecedores do ‘sal da casa’. E dá no que dá!... Dito de outra forma, os Partidos têm de ser identificáveis pela sua Matriz. É nessa identificabilidade (=confiabilidade) que se conquista a Sociedade, e esta é muito mais ampla do que o leque de Militantes e Simpatizantes. O PAICV é sobremaneira importante e necessário a Cabo Verde para se descaracterizar, e assim perder-se, no transitório, na balbúrdia, nas quezílias, nas guerrinhas fratricidas. Assim nenhum Partido ganha credibilidade para receber o leme do país.

A segunda via perniciosa que abordei em 2012 e quero recordar agora é a seguinte: ‘é preciso não cair na lógica corrosiva de um Partido de barões’, dizia eu então. Mas não é que se caiu mesmo!?... Continua a haver um pequeno núcleo que se julga, e assim funciona, como guardiões de um suposto cálice do fogo, ou seja, de um verdadeiro ou genuíno PAICV. Tudo tem de acontecer a seu contento. O que é mau para o crescimento e o fortalecimento do Partido e, aliás, está à revelia da realidade. Há um novo e diferente Povo do PAICV, hoje em dia. De resto, é imensa a transformação sociológica no Cabo Verde de hoje. Sobretudo, há uma Juventude que quer e tem o direito a fazer diferente. Deixem-na! Ela saberá, melhor do que ninguém, ser dona e mestre do seu Tempo.

6.  A disputa para a liderança do PAICV (eleições directas em que só votam os Militantes) é um momento alto de pujança organizacional e tem, por isso mesmo, de ser um processo de enriquecimento interno, tranquilo e denso de ideias e propostas, pelo que não pode haver candidatos avalizados ou ‘ungidos’ e candidatos que seriam perigosos para o partido ou, como já disse, populistas. Não! Todos são igualmente Militantes, capazes, com provas dadas e determinados a fazer. Todos desejam o melhor para o Partido e para Cabo Verde. Todos estão em condições de, pela sua própria voz, dizer ao que vêm. E falo de ‘dizer’ ao Partido enquanto um todo; não a plateias segmentadas. Cumpre à Direcção do Partido criar essas condições de fala interna, com igualdade de circunstâncias e de tratamento para todos os Candidatos. Bem sei que não é da cultura do PAICV enaltecer e proteger os seus, mas, nesta altura da estrada, seria ajuizado não estar assim a desferir ataques a Militantes e Quadros do Partido e que são, igualmente, activos  de Cabo Verde. Isto dito, parece-me que os Candidatos, todos eles, devem dar provas de serenidade e devem poder afirmar-se com autonomia e autenticidade, libertando-se de certas vizinhanças sob pena de caírem em pelejas que vêm de trás e que não são suas. Este é um dado necessário para, com serenidade, se perceber qual, dos candidatos, o melhor preparado e posicionado para liderar o Partido e, na sequência, galvanizá-lo para os próximos embates eleitorais. Quem seja o eleito para ser Presidente, tem de poder fechar, de vez, este já longo capítulo de desavenças no seio do PAICV. Colocar-se acima, ser Grande, e proclamar: terminou! Começa um Novo Dia! No imediato, seria extraordinário se o debate (interno) regressasse ao seu espaço natural, fossem eliminados os ataques entre Camaradas e se concentrasse na construção de propostas (teses, como se dizia antigamente) a defender pelo Partido, quem quer que seja o Presidente que vier a ser eleito. Não é próprio de uma Família partidária estar a facas e alguidares assim desta maneira na arena pública. Os adversários é que ganham com isso, é óbvio. E concluo dizendo isto: a eleição do Presidente do Partido é uma etapa; no dia seguinte tem de continuar a haver Partido para, ao menos... liderar. Não apenas cacos ou fanicos. Convenhamos!...

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