É tempo de deixar para trás o ciclo da lamúria e da resignação. A maior reparação histórica que África pode exigir... é aquela que começa com ela própria. Reivindicar o passado é legítimo, mas assumir o presente é vital. Investir em educação, saúde, infraestruturas, estabilidade institucional e participação cívica. Descolonizar mentalmente e tornar a boa governação o cartão-de-visita do continente. Criar um ambiente de negócios moderno, transparente e competitivo. Promover a mobilidade interna, baixar barreiras ao comércio, reforçar os mecanismos de integração regional. Não basta sobreviver. É tempo de liderar. E para isso, África não precisa de piedade nem de salvação: precisa de respeito, compromisso e responsabilidade partilhada. O século XXI pode ser o século africano. Mas só será se os africanos assim o quiserem e se o construírem, passo a passo, com inteligência, rigor e dignidade.
Introdução – O dilema moral da África contemporânea
“Devemos resolver o problema da África.”
É uma frase dura, mas necessária. A pobreza, os conflitos e a emigração desesperada não são acidentes isolados — são sintomas de crises estruturais profundas. Não basta continuar a culpar o passado colonial, o Ocidente ou o sistema internacional. É preciso olhar para dentro. É preciso assumir responsabilidades.
Durante décadas, o continente africano foi apresentado como um espaço a ser ajudado. Foi assim que muitos o viram: um campo humanitário de emergência permanente. Mas essa narrativa não pode durar para sempre. A África precisa de fazer a sua própria revolução moral: substituir a cultura da vitimização por uma ética da reconstrução. É um dilema do nosso tempo - entre externalizar ou assumir. E desse dilema depende o futuro de mais de mil milhões de pessoas.
A armadilha da vitimização permanente
É verdade que o colonialismo europeu deixou feridas profundas. Dividiu povos, extraiu recursos, e impôs sistemas de poder alheios à identidade africana. Mas continuar a usar esse passado como explicação total para os fracassos do presente é perigoso e injusto para com os africanos que acreditam na mudança.
A externalização da culpa tornou-se uma saída demasiado confortável: se sou pobre, a culpa é do rico; se sou governado por corruptos, a culpa é do Ocidente; se emigro por desespero, a culpa é das fronteiras fechadas da Europa. Essa mentalidade é paralisante. Porque quando a culpa nunca é minha, também nunca será minha a responsabilidade de mudar.
Não se trata de negar as injustiças históricas. Trata-se de reconhecer que a solução não pode vir só de fora. A mudança precisa de começar dentro: nas escolas, nas famílias, nas lideranças, nas comunidades. O verdadeiro progresso só nasce quando cada um aceita que também é parte do problema e, por isso mesmo, pode ser parte da solução.
A condição africana não pode continuar a ser definida apenas por feridas passadas. O continente tem jovens com talento, recursos em abundância, e uma diáspora que continua a contribuir com remessas e conhecimento. Mas nenhuma ajuda externa, nenhum perdão de dívida, nenhum investimento será suficiente se África não acreditar em si mesma e se não se responsabilizar pelo seu destino.
Diagnóstico do continente: desafios estruturais
O potencial de África é inegável, mas os obstáculos também. Muitos dos desafios que o continente enfrenta hoje não se explicam apenas por fatores externos, mas sobretudo por realidades internas mal resolvidas.
A explosão populacional, por exemplo, coloca enorme pressão sobre os sistemas de saúde, educação, emprego e infraestrutura. Até 2050, a população africana deverá duplicar, ultrapassando os 2,5 mil milhões. Essa força demográfica pode ser uma oportunidade. Mas sem planeamento, investimento e educação, transforma-se num fardo.
A instabilidade política é outro fator crónico. Golpes de Estado, conflitos étnicos e guerras civis continuam a perturbar regiões inteiras. A má governação, muitas vezes marcada pela corrupção endémica, falta de transparência e captura do Estado por elites, impede a construção de instituições sólidas e de confiança.
Além disso, existe uma contradição alarmante: África é um dos continentes mais ricos em recursos naturais, mas a maior parte da sua população vive em pobreza extrema. O que falta não é riqueza. É gestão. O que falta não é potencial. É visão e vontade política.
A emigração em massa de jovens, incluindo quadros qualificados, revela uma crise de confiança no futuro. Muitos fogem não apenas da guerra ou da fome, mas da ausência de oportunidades reais de progresso. O drama das travessias no Mediterrâneo é o retrato mais cruel dessa desesperança.
Reconhecer estes desafios é o primeiro passo para superá-los. Negá-los, ou responsabilizar sempre terceiros, é perpetuar o atraso.
O caminho da reconstrução: visão e prioridades
Se quisermos “vender” África como um continente de oportunidades para os próprios africanos e para o mundo é preciso definir uma visão clara e ambiciosa. E essa visão deve assentar em cinco princípios fundamentais: inclusão, sustentabilidade, inovação, conectividade e liderança ética.
África deve projetar-se como um continente mais verde, mais azul (com economia marítima valorizada), mais digital, mais inteligente e mais justo. Isso implica acesso universal a serviços essenciais: água potável, habitação, energia, educação e saúde. Sem isso, qualquer discurso de desenvolvimento é vazio.
As prioridades para as próximas décadas são claras:
Energia: mais de metade da população africana não tem acesso a eletricidade. Não se pode falar de industrialização ou transformação digital sem resolver o acesso à energia limpa e acessível.
Infraestruturas: estradas, telecomunicações, sistemas de saneamento, portos e ferrovias são fundamentais para integrar mercados e reduzir custos logísticos.
Capital humano: investir na educação, na formação técnica, na literacia digital e na ciência. Não basta ter uma população jovem. É preciso que ela esteja preparada para liderar.
Ambiente de negócios: melhorar a regulação, a justiça económica, os sistemas fiscais e os incentivos ao investimento privado.
Inclusão social: garantir que mulheres, jovens e comunidades rurais tenham acesso efetivo às oportunidades geradas pelo crescimento.
Sem esquecer a revolução digital, que já está em curso em várias cidades africanas, com hubs de inovação, startups tecnológicas e soluções locais para problemas locais. África pode dar um salto direto para a economia digital, desde que crie as bases certas.
O futuro começa por aí: pela decisão consciente de desenhar o desenvolvimento em vez de continuar a reagir à tragédia.
África no contexto multipolar
Vivemos num mundo onde os velhos centros de poder já não controlam sozinhos o destino global. A ordem internacional tornou-se multipolar, com novos atores a disputarem influência: China, Índia, Brasil, Turquia, e blocos como o Sudeste Asiático ou o Golfo. Nesse cenário, África não pode continuar a ser apenas palco. Tem de ser protagonista.
A União Africana tem dado passos importantes nesse sentido. A entrada no G20 é um sinal claro de reconhecimento internacional. Mas o verdadeiro poder virá quando África conseguir agir de forma mais coordenada internamente, como bloco económico e político.
Países como Nigéria, Ruanda e Botswana mostram que é possível combinar estabilidade, inovação e crescimento. São exemplos de que o continente tem capacidade de gerar modelos próprios de sucesso sem imitar cegamente os padrões ocidentais ou orientais.
A integração regional será decisiva. A Zona de Comércio Livre Continental Africana (AfCFTA) tem potencial para criar o maior mercado do mundo em número de consumidores. Mas, para isso, é preciso harmonizar regulações, eliminar barreiras não tarifárias e facilitar a mobilidade de pessoas e bens. Hoje, o custo de fazer comércio dentro de África é três vezes superior ao da média mundial. Uma realidade que precisa de mudar com urgência.
A geopolítica do século XXI será marcada por blocos flexíveis, por alianças pragmáticas e por economias interdependentes. África tem de entrar nesse jogo com uma agenda própria, defendendo os seus interesses, os seus valores e a sua dignidade.
O futuro não será entregue. Será disputado. E quem não estiver preparado para disputar… será novamente dominado.
A dívida, a evasão fiscal e o paradoxo financeiro
Talvez o maior paradoxo do continente africano seja este: África é rica, mas está financeiramente encurralada. Rica em recursos naturais, biodiversidade, juventude e criatividade. Mas presa num ciclo vicioso de dívida, fuga de capitais e dependência externa.
Muitos países africanos gastam hoje mais a pagar juros da dívida do que investem em educação e saúde. E não porque tenham gasto em excesso, mas porque fatores externos, como a subida das taxas de juro pela Reserva Federal dos EUA ou pelo Banco Central Europeu tornaram a dívida impagável. É uma crise do sistema internacional de financiamento, que precisa de ser repensado com justiça.
Mas há responsabilidades internas que não podem ser ignoradas. Estima-se que todos os anos saem ilegalmente mais recursos de África do que entram sob forma de ajuda ou investimento estrangeiro. São fluxos ilícitos, corrupção, evasão fiscal e contratos opacos. A riqueza existe, mas é desviada.
A solução exige três frentes:
• Combate à evasão fiscal e aumento da base tributária.
• Repatriamento de ativos desviados para contas em paraísos fiscais.
• Criação de uma arquitetura financeira internacional capaz de reestruturar a dívida de forma justa, previsível e transparente.
África não pode continuar a depender da “boa vontade” dos credores. Precisa de negociar como quem sabe o que quer e como quem sabe que o seu futuro vale mais do que qualquer pacote de ajuda condicional.
O verdadeiro desenvolvimento financeiro começa quando os recursos africanos são postos, primeiro, ao serviço dos africanos.
Conclusão: O apelo à liderança ética e à ação coletiva
África tem o que é preciso para mudar o seu destino. Tem juventude, tem recursos, tem talento, tem voz. O que falta é um compromisso coletivo com o futuro ancorado em ética, visão e coragem política.
O continente precisa de lideranças fortes, mas não autoritárias; de líderes com sabedoria, mas também com humildade; com visão estratégica, mas enraizados nas realidades locais. Líderes que respeitem as liberdades civis, a dignidade humana e os direitos sociais. Que saibam governar, mas também escutar.
É tempo de deixar para trás o ciclo da lamúria e da resignação. A maior reparação histórica que África pode exigir... é aquela que começa com ela própria. Reivindicar o passado é legítimo, mas assumir o presente é vital.
Investir em educação, saúde, infraestruturas, estabilidade institucional e participação cívica. Descolonizar mentalmente e tornar a boa governação o cartão-de-visita do continente. Criar um ambiente de negócios moderno, transparente e competitivo. Promover a mobilidade interna, baixar barreiras ao comércio, reforçar os mecanismos de integração regional.
Não basta sobreviver. É tempo de liderar. E para isso, África não precisa de piedade nem de salvação: precisa de respeito, compromisso e responsabilidade partilhada.
O século XXI pode ser o século africano. Mas só será se os africanos assim o quiserem e se o construírem, passo a passo, com inteligência, rigor e dignidade.
Comentários
jcf, 12 de Mai de 2025
Finalmente um texto que diz o que há muito precisa ser dito, sem rodeios nem paninhos quentes. Chega da eterna lamúria, da vitimização confortável, do discurso vazio que aponta sempre o dedo para fora mas nunca olha para dentro. A maior reparação que África pode exigir — como bem escreve o autor — começa por uma profunda reconciliação consigo mesma: com a sua história, com as suas escolhas, com a sua responsabilidade pelo presente.
jcf, 12 de Mai de 2025
O texto acerta em cheio ao afirmar que o futuro do continente não será doado, será disputado. E para isso não bastam promessas, planos em PowerPoint ou discursos de ocasião. É preciso liderança ética, instituições fortes, combate real à corrupção, investimento a sério em educação, saúde e inovação. Não é teoria — é sobrevivência.jcf, 12 de Mai de 2025
Este editorial devia ser leitura obrigatória para ministros, presidentes, parlamentares, dirigentes de ONGs e até para a chamada sociedade civil que muitas vezes também se esconde atrás do "coitadismo". África tem tudo o que precisa — menos a coragem colectiva de romper com o ciclo do autoengano.Não precisamos de piedade, precisamos de coluna vertebral. E este texto entrega isso com clareza e dignidade.
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