Queila Soares: Pandemia empurrou menores para as ruas do Sal   
Entrevista

Queila Soares: Pandemia empurrou menores para as ruas do Sal  

Eram 17h45 do dia 15 de junho de 2021: duas crianças de 7 e 10 anos pediam dinheiro à porta de uma loja chinesa na cidade de Santa Maria. Os dois irmãos precisavam levar para a mãe ingredientes para o preparo do jantar. Queriam um pacote de esparguete e um potinho de polpa de tomate. “Petisc já no tem, senhora”, disse o mais velho, segurando uma lata de salsinhas. Poucos minutos depois, um casal de estrangeiros entrega-lhes uma bolsa com o que tinham pedido. Junto, havia um pacote de bolachas e alguns rebuçados.Quando, em abril de 2020, as portas dos hotéis, restaurantes, bares e vários outros serviços e empresas se fecharam para proteger a população do coronavírus, as portas da pobreza, da vulnerabilidade e de outras violências se escancararam para muitas crianças e adolescentes da ilha do Sal. Com idas às escolas restritas a apenas três dias por semana, com horários de aulas limitados e sem recreios, foram empurradas para o perigoso mundo das ruas.Santiago Magazine entrevista Queila Soares, delegada do ICCA no Sal, para quem a ilha e o país precisam buscar soluções imediatas por forma a assegurar a proteção das nossas crianças e garantir o seu desenvolvimento saudável e integral

Santiago Magazine - No último ano nota-se que há mais crianças a perambular e a mendigar pelas ruas do Sal, principalmente em Santa Maria. A pandemia devolveu as crianças às ruas?

Queila Soares - Sim vivenciamos a situação de crianças na rua, quando passam mais horas que o devido e desacompanhados de adultos, quando muitas vezes não retornam para as suas casas, quando há uma tendência para o abandono escolar, quando desenvolvem hábitos e vícios de rua, como a mendigagem e o consumo de álcool e outras drogas, quando se tornam vítimas de abuso e exploração sexual e exploração ao trabalho infantil, entre outras situações negativas. Outrora acreditávamos que o Turismo era uma das principais causas do fenómeno de crianças na rua, mas a pandemia do Covid 19 veio nos provar que afinal é apenas mais um estímulo. A pandemia colocou a olho nu que a família tem a principal e maior responsabilidade nessa matéria. O Turismo está praticamente parado desde o ano passado. Além disso, a presença dos pais em casa e na vida dos filhos tem sido maior. No entanto, o fenómeno de crianças na rua mantem-se e há até uma tendência para o seu aumento. Acreditamos que a pandemia tem sim muito peso nesta situação. Com o encerramento e/ou a diminuição do tempo de permanência nas escolas as crianças passaram a ter mais tempo livre. E, com a falta de espaços de ocupação e de lazer, acabam desembocando nas ruas. Por outro lado, a situação económica das famílias ficou muito mais fragilizada, porque muitas pessoas foram para o desemprego. Com isso as crianças passaram a ter maior participação mais nas atividades geradoras de rendimento, através de vendas ambulantes e até da mendigagem. Tememos que essa situação se agrave ainda mais com a retoma do Turismo. A questão psicológica também pode estar na origem desse retorno das crianças às ruas, porque estando em casa, desempregados e com os filhos para cuidar, muitos pais e encarregados de educação acabam por ficar mais impacientes, chegando até em situações de maus-tratos. E, perante um ambiente como esse, muitas crianças acabam por buscar o refúgio nas ruas.

De há alguns anos para cá notava-se uma redução significativa de crianças nas ruas ou crianças pedintes. Sabe quantificar ou tem identificado os menores que neste momento encontram-se em situação de risco?

Neste momento, dispomos de uma lista de mais de 100 crianças em situação de rua na ilha, que serão integradas num novo programa, cujo arranque está previsto para o mês de julho. O projeto “Reforço da Capacidade de Intervenção do ICCA e Formação/Capacitação de Crianças e Adolescentes de/na Rua” dará cobertura às ilhas do Sal, Boa Vista, Santiago e São Vicente, onde há maior índice de crianças na rua.

Como é que o ICCA-Sal tem lidado com estas questões?

Lidar com esta situação não tem sido nada fácil, principalmente numa altura em que as crianças e adolescentes estão cada vez mais resistentes a mudanças e cumprimento de regras. As famílias continuam sendo muito negligentes no que refere os cuidados dos filhos, desde a pequena infância. O fenómeno de crianças na rua sempre foi combatido pelo ICCA, juntamente com parceiros locais, nacionais e internacionais. Em 2004 criou-se o projeto “Integrar para Não Entregar” em Espargos, financiado pela Cooperação Portuguesa e coordenado pelo ICCA em parceria com a Associação Chã de Matias (ACM), onde funciona o Centro até hoje. Desde 2019, a coordenação do Centro passou para ACM, enquanto ONG, e é supervisionado pelo Ministério da Família através do ICCA. Em 2010 criou-se o Projeto Nôz Kasa, em Santa Maria, que também deu vasão e mitigou a situação de crianças de e na rua. A ilha vem desenvolvendo a passos largos, acolhendo pessoas e famílias de todo o país e do mundo, cada uma com suas especificidades e seus problemas. Não obstante a necessidade de reforço nos instrumentos de prevenção e combate a este fenómeno, temos vindo a desenvolver um grande trabalho em matéria de combate ao aumento de crianças na rua. De 2018 a 2021 uma média de 10 adolescentes foram inseridos em centros de acolhimentos e socioeducativos, como medidas de proteção. Além disso, dezenas de crianças e adolescentes foram reinseridas em famílias alargadas e de acolhimento tanto local como noutras ilhas. É certo que muito ainda há por fazer.

Havia alguns dos projetos sociais voltados para acolhimento e acompanhamento de crianças em situações de risco acabaram por fechar as portas. O que aconteceu com estas organizações?

O projeto Castelos do Sal em Santa Maria fechou as portas em meio à pandemia, o que muito lamentamos. Prestava um importante papel e dava um grande contributo através de acompanhamento de crianças e adolescentes em situação de rua na cidade de Santa Maria. Era um projeto que dependia, maioritariamente, de doações pontuais dos turistas e outros ajudas internacionais. Creio que, não obstante os apoios dos serviços públicos locais e nacionais, a pandemia veio agravar a sua situação financeira, culminando com o seu encerramento.

A falta de casas de acompanhamento tem também algum reflexo no aumento de meninos e meninas nas ruas?

A falta de centros de acolhimento por 24 horas constituem uma carência no que tange as respostas para situações mais preocupantes, como casos em que as crianças estão a perder os vínculos com a família, aquelas em que as famílias são muito pobres e não têm uma residência com as condições mínimas de acolhimento e proteção. Casos em que as crianças são vítimas de maus-tratos, pois as suas famílias ainda usam métodos educativos a base de castigos físicos severos e psicológicos ou verbais, ou quando são vítimas de negligência, porque as famílias não se importam e as abandonam a própria sorte. Digo ainda que a falta de ATL’s representa uma grande lacuna para a ilha, já que as escolas e jardins infantis ou creches não oferecem as condições para ocupação de tempos livres. Com a pandemia, os espaços educativos, que constituem a segunda casa para as crianças e adolescentes em situação de risco, diminuíram a carga horária de acolhimento, contrariando as demandas e exigências da situação delicada que vivemos no momento. Daí que muitos passam hoje a maior parte de seu tempo na rua.

O ICCA tem estado no terreno para analisar a situação dessas crianças, que com a pandemia suas famílias ficaram mais pobres por causa do desemprego?

Sim. Temos estado a analisar e a dar toda a cobertura necessária e possível, sempre em coordenação com os nossos parceiros. O CNK, que trabalha diretamente com as crianças em situação de rua e outros riscos, na cidade de Santa Maria, bem como noutros centros da ilha que dão cobertura nesta matéria, viu-se obrigado a fechar as portas no início da pandemia. Mas, as crianças e suas famílias nunca ficaram desprovidas de atenção da nossa parte. Durante alguns meses distribuímos cestas básicas para as famílias e alguns ainda continuam a serem beneficiadas. Temos feito acompanhamento e controlo das crianças através de visitas domiciliar e também via telefone. No momento preocupa-nos muito a situação atual de várias famílias que estão a passar por várias privações, principalmente a nível económico.  Tememos que a mendigagem por parte de menores venha aumentar ainda mais, quando voltarmos a ter os hotéis cheios e os turistas a passear pelas ruas de Santa Maria. Mas estamos atentos, preparando e reforçando as nossas capacidades de atuação. Aproveitamos para apelar aos guias, agentes e promotores turísticos que nos ajudam na sensibilização dos turistas, chamando atenção para que não deem dinheiro ou comida às crianças pedintes, e sim que façam doações junto de instituições de proteção de menores.

Quais os projetos sociais a funcionar hoje no Sal e com bons resultados na proteção da criança e do adolescente?

Temos alguns projetos sociais, públicos e privados, que trabalham direta e indiretamente com menores, sobretudo os mais vulneráveis, e que de certa forma têm dado resultados positivos. Contudo, ainda que bons, são insuficientes e não constituem as respostas para algumas situações mais delicadas. Temos vários espaços de acolhimentos voltados aos cuidados da pequena infância e pré-escolar, como creches, jardins ou casas de solidariedade, desenvolvidos pela Câmara Municipal. Também contamos com algumas ONGs com espaços do tipo, como a Associação de Apoio a Crianças Terra Boa, por exemplo. Já para as organizações voltadas para crianças dos 6 aos 17 anos, integradas no sistema de ensino básico e secundário, temos em Santa Maria a CNK e a Cooperativa de Mulheres, em Espargos o Centro Juvenil de Chã Matias e Centro Comunitário Africa 70 e na Terra Boa o grupo Unidos Futuro Crianças da Terra Boa.

O Sal pela sua característica de ser uma ilha turística é uma das mais vulneráveis para crianças e adolescentes. No passado, vários relatos de exploração sexual a menores vieram o público. Melhoramos nesta questão. Hoje, há mais controlo?

Realmente a questão do abuso e da exploração sexual, é uma grande preocupação. Temos recebido alguns relatos de exploração sexual de menores associados ao turismo sexual, apesar de não haver denúncias oficiais. Ainda assim, o nosso trabalho de combate aposta sempre na prevenção. Mas a nossa grande preocupação neste momento, tem a ver com o envolvimento sexual entre adolescentes e adultos nacionais e residentes. Existem casos que estão sob alçada judicial.

E como é que o ICCA está a trabalhar para combater esse fenómeno?

Durante todo o mês de junho, a Delegação do ICCA levou a cabo um programa radiofónico sobre o tema “Educação Sexual para Todos”. Uma iniciativa que visa formar, informar e sensibilizar as crianças e adolescentes, as famílias e toda a comunidade salense para a necessidade de agir em prevenção ao abuso e exploração sexual de menores. Entre maio e junho, realizamos várias outras atividades de prevenção como lançamento da campanha contra o tráfico de pessoas, especialmente crianças. A nível nacional, houve a alteração do Código Penal que dá uma maior abertura a denúncias e aumenta a idade penal para crimes de abuso e exploração sexual contra crianças e adolescentes. Lançamos, em parceria com o ITCV e a Associação GUIANTUR, o “Código de Conduta Mundial para a Proteção das Crianças Contra a Exploração Sexual em Viagem e Turismo”. Também está em fase de aprovação, o Plano Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. Não tem sido fácil controlar estes fenómenos, nem temos em mãos estudos que confirmam afirma o aumento de casos de abuso sexual a menores. Porém, acreditamos que hoje em dia as comunidades estão muito mais informadas e sensibilizadas para denunciar este tipo de crime. Estamos na linha da frente no combate e prevenção, apelando à população para denunciarem, porque a criança é sempre a prioridade absoluta.

Prevê-se que com a vacinação em massa, os turistas voltem a escolher a ilha do Sal como destino de eleição. O ICCA não teme que toda essa situação do turismo sexual, envolvendo crianças e adolescentes volte a assombrar a ilha?

É claro que tememos todo e qualquer problema que o Turismo possa acarretar associado às nossas crianças e adolescentes. É fundamental que se crie cada vez mais condições humanas e materiais, a nível da justiça e dos serviços sociais para que possamos acompanhar a reabertura e a evolução do turismo nacional. Do mesmo modo, deve-se envolver os agentes e operadores turísticos para juntos combatermos essa problemática.

Falou há bocado da falta que faz um espaço de acolhimento 24 horas. Para quando um abrigo que possa receber as crianças e adolescentes vulneráveis também à noite?

Existe um projeto no papel de construção de um Centro de Emergência Juvenil. Já temos terreno para tal, mas ainda estamos atrás de financiamento. Este investimento podará vir a dar respostas que tanto procuramos no que refere aos problemas associados ao fenómeno de crianças na rua e outras situações de violência contra a criança e o adolescente, nomeadamente de maus-tratos, negligência e abusos sexual, e violência baseada no género que, em boa parte, acaba atingindo também as crianças e adolescentes.

Qual o papel da sociedade nessa matéria de proteção de crianças e adolescentes?

A sociedade somos cada um de nós que estamos mais próximos das crianças, com mais facilidade de identificar e denunciar problemas para que os serviços possam intervir. Além de estar atenta, de proteger e denunciar, a sociedade tem um papel preponderante no desenvolvimento e criação de ONG’s e projetos sociais como forma de dar a sua colaboração nos cuidados e proteção das nossas crianças. Hoje temos redes de proteção nacional e locais, temos importantes ONG’s, associações e grandes projetos, todos mobilizados pela força da sociedade civil. De modo que, posso dizer qua a sociedade não está, e nem nunca estará, fora da proteção da criança e do adolescente. Muito pelo contrário.

Isso quer dizer que o ICCA tem a sociedade como parceira?

O ICCA nunca trabalha só. Está sempre associado empresas e organizações sociais. Atuamos sempre em coordenação e parceria com instituições públicas e privadas, como as ONG’s, Associações e todos os serviços possíveis na resolução dos problemas das nossas crianças e adolescentes. Isso inclui a sociedade no seu todo. Como diz o ECA, somos um sistema de proteção, constituído por vários agentes públicos e privados, nomeadamente: os Tribunais e o Ministério Público, o ICCA, a CNDHC-Comissão Nacional para os Direitos Humanos e Cidadania, os CMDDC- Comités Municipais de Defesa dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes, as ONG’s e Associações Comunitárias de Base de carater laico ou religioso. As crianças e famílias necessitam de atuação em diversas esferas de suas vidas na qual apresentam vulnerabilidade. Daí a necessidade de trabalharmos em extrema articulação. Precisamos estar cada vez mais unidos.

Que apelo deixa à sociedade no geral sobre esta temática?

A todas as famílias, que protejam e cuidem das suas crianças, pois elas serão o futuro do país. A toda a comunidade peço que denunciem qualquer situação de violação dos direitos das nossas crianças, que não estimulem vício da mendigagem, que não deem dinheiro ou alimento às crianças na rua. Ao contrário, que façam chegar os seus donativos aos serviços de proteção e que alertem as instituições sobre crianças e adolescentes em situações de risco. Denunciem! Omissão é crime.

Para denunciar:

Disque Denúncia: 8001020

Polícia Nacional: 132

 

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