"Partilhando o pensamento do Barão de Montesquieu, segundo o qual “A injustiça que se faz a um é uma ameaça que se faz a todos”, ou o de Leon Tolstói de que “O errado não deixa de ser errado só porque a maioria concorda e participa”, pois deve-se admitir que nenhum cidadão digno desse nome poderá dormir tranquilo quando se encarcera uma pessoa a 7 anos de prisão, não por ter cometido crime de homicídio, de terrorismo, trafico de drogas, de assalto a mão armada, de pedofilia, mas apenas porque auxiliou à evasão de um cidadão que se encontrava aparentemente sob o regime de permanência na habitação. Tratou-se, como se depreende do próprio processo, de um crime comum que embora praticado por um titular de cargo político não pode ser transformado, porque sim, em crime de responsabilidade."
“os tribunais não podem aplicar normas inconstitucionais […] e como o TC é um tribunal está constitucionalmente obrigado a ponderar todos os aspetos relevantes para as questões de constitucionalidade de normas que lhe tenham sido submetidas à apreciação”
Gomes Canotilho in Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993
Neste dia 18 de julho de 2025, completam-se 4 anos sobre a data da detenção fora de flagrante delito, e posteriormente preso preventivamente e condenado, sem autorização “válida” da Assembleia Nacional, do deputado da Nação, Amadeu Oliveira.
Sem uma autorização “válida” na medida em que quando as autoridades judiciárias praticaram os citados atos processuais, a resolução que lhes daria cobertura legal não tinha sido publicada no Boletim Oficial.
Um processo que nasceu torto por força da emotividade, em prejuízo da razão, e que nunca se endireitou, talvez, um pouco por vaidade ou, quiçá, influenciado por ímpeto de contornos revanchistas.
Ora, determina a Constituição da República, alínea d) do nº 1 do artigo 269º que “São obrigatoriamente publicados no jornal oficial da República de Cabo Verde, sob pena de ineficácia jurídica”, entre outros atos do Estado, as Resoluções da Assembleia Nacional.
Além disso, se se conjugar essa determinação constitucional com o disposto no nº 3 do artigo 3º da mesma Constituição, segundo o qual “As leis e os demais atos do Estado, do poder local e dos entes públicos em geral só serão válidos se forem conformes com a Constituição”, dir-se-á que aqueles atos processuais praticados pelas autoridades judiciárias, com base numa resolução que carecia de eficácia jurídica, não eram válidos, exatamente por força do disposto no nº 3 do artigo 3º da mesma Constituição.
Tais vícios iniciais não foram corrigidos até a conclusão do processo que determinou a condenação do deputado a sete anos de prisão, e com uma pena acessória de perda do mandato e de inelegibilidade por 4 anos que começará a contar a partir do final do cumprimento da pena.
Apesar de todas as garantias legais e constitucionais que constam do ordenamento jurídico cabo-verdiano, foi possível, neste caso, conduzir e concluir um processo judicial com graves e inusitados atropelos ao direito e à legalidade, sem que disso resultasse qualquer intervenção dos órgãos que dispõem de poderes e especiais deveres em garantir o Estado de Direito.
Até ao aparecimento deste processo, parecia impossível em Cabo Verde democrático imputar crimes a alguém, sem ter de os provar; ou de alguém ser condenado com base, não em provas irrefutáveis, mas, simplesmente em convicção firmada a partir de “por ser” ou de inferências ou de deduções inquinadas, sem nenhuma preocupação de se aferir se essas “perceções propriocetivas” têm alguma relação com a realidade factual e a verdade material.
A justiça não se compagina com o desejo de vingança!
A Justiça não rima com ajustes de contas, por muita vontade que se tenha de os fazer! A Justiça é o respeito e a submissão às regras e ao direito constituídos!
A Justiça obriga e requer a equidistância, a ponderação e a imparcialidade!
A justiça, num Estado de Direito Democrático, não admite regimes especiais ou de exceção para julgar cidadãos, seja por que tipo de crime que tenha cometido!
A justiça num Estado de Direito e Constitucional, regido fundamentalmente por princípios e regras do direito, e que declara que o Estado se submete à Constituição e às convenções internacionais, em que é parte, não pode ignorar olimpicamente princípios processuais caraterizadores de um Estado de Direito Democrático moderno, tais como:
(i) o princípio pró homine (ii) o princípio da liberdade (iii) o princípio da igualdade perante a lei (iv) o princípio da igualdade entre as partes (v) o princípio da imparcialidade (vi) o princípio da legalidade (vii) o princípio do in dubio pro reo (viii) o princípio do devido processo (ix) o princípio da contradição.
A efetiva obediência aos princípios consagrados em normas legais, é a garantia, a todos, que a condução de qualquer processo, especialmente penal, está subtraída do domínio do voluntarismo e da arbitrariedade.
O grande problema deste intrincado processo foi o facto de as autoridades judiciárias apressadamente terem produzido a acusação antes de reunir as indispensáveis provas que a pudessem objetivamente sustentar.
As supostas provas apresentadas para sustentar a acusação de um crime de responsabilidade foram e eram não só frágeis e inconsistentes, como baseadas em suposições e subjetividades.
Essas fragilidades ficaram mais evidenciadas quando o Tribunal da Relação de Barlavento descreveu a imputação objetiva do crime atribuída ao deputado que, correlacionada com o correspondente tipo penal constante do código penal, afastava de forma inequívoca o cometimento de crime de responsabilidade que paradoxalmente acabou por ser condenado.
De um eventual cometimento de um “pecado venial” acabou-se por ser condenado por um “pecado mortal”. Este facto faz recordar o julgamento de Jesus Cristo.
Cristo foi inicialmente condenado pelo Sinédrio à morte por blasfémia por Se considerar Filho de Deus, mas acabou por ser condenado à morte por crime de sedição contra o Império Romano numa manobra política de Pilatos que acabou por ficar registada na história como a de “lavar as mãos”.
De um suposto crime de cariz religioso, Ele acabou por ser incriminado e condenado por um forjado crime político.
No processo do Deputado Amadeu Oliveira, aconteceram situações que eram impensáveis, senão mesmo inimagináveis na atual conjuntura democrática do país, convencidos que vivíamos num Estado Constitucional e de Direito, onde todos, incluindo o Estado se submetia à Constituição, porque considerada, no quadro do ordenamento jurídico cabo-verdiano, a Lei-mãe da qual imana todas as outras.
Um consenso sobre a supremacia da Constituição construído ao longo de décadas do constitucionalismo cabo-verdiano que ninguém julgava poder ser quebrado, mormente por quem está vinculado a vigiar e a garantir o cumprimento da Constituição. Um consenso rompido sem agendamento, nem debates e, muito menos, o contraditório, quase por obra de mágica, quando o Tribunal Constitucional decidiu introduzir “costumes constitucionais contra a constituição” com força derrogatória de normas constitucionais.
E a pergunta que justamente se coloca é a seguinte: Qual teria sido a razão a justificar essa rutura?
A razão de fundo parece ter a ver com o enorme “golpe” que seguramente constituiria para os poderes públicos a declaração de inconstitucionalidade da Resolução nº 3/X/2021.
O reconhecimento de um vício processual ab origine em resultado da aplicação de uma lei ineficaz conduziria, por certo, à anulação das diligências realizadas e ter-se-ia de recomeçar o processo do zero.
A este propósito, num extenso, como fundamentado Parecer de Direito, de 110 páginas, assinado pelo Professor Doutor Jorge Bacelar Gouveia (2023)[1], Catedrático da Universidade Nova de Lisboa e da Universidade Autónoma de Lisboa, o constitucionalista português debruçou-se sobre o processo Amadeu Oliveira, e defendeu, a propósito da sua detenção, antes da entrada em vigor da Resolução 3/X/2021, que, e cita-se: “As consequências de ter havido uma detenção determinada por uma autorização parlamentar ineficaz conduzem a uma “detenção em abuso de poder”, inconstitucional e ilegal, assim ferindo ab origine todo o processo judicial que aí se iniciou. Nem sequer é possível conjeturar uma qualquer sanação da ineficácia provocada pela não publicação tempestiva da resolução por via de uma eventual retroatividade da mesma porque não há, em matéria de limitação da liberdade individual, diplomas retroativos, como muito bem o estatuem tanto o art. 17º, nº 5, da CRP, como o art. 32º, nº 2, da CRCV, este especificamente quanto à matéria da lei penal incriminadora, tanto faz se substantiva ou processual” (Parecer de Direito - pág. 71).
Pois bem, a saída encontrada para manter o processo válido contra todas evidências foi, de todo, inesperada.
O Tribunal Constitucional decidiu “validar” uma Resolução da Comissão Permanente da Assembleia Nacional manifestamente inconstitucional, através de um Acórdão, também inconstitucional, no dizer do constitucionalista Wladimir Brito[2] que também se pronunciou sobre a referida decisão.
Como bem vincou o Professor e constitucionalista, Bacelar Gouveia (2023), no citado parecer de direito sobre o processo Amadeu Oliveira, “a posição do Tribunal Constitucional neste aresto ficará para a antologia das decisões mais contraditórias que alguma vez este órgão constitucional tomou na sua ainda curta existência”
O Tribunal Constitucional, pelo seu estatuto de guardião da Constituição, conferido pela alínea a) do artigo 215º segundo a qual lhe compete, entre outras, proceder a “fiscalização da constitucionalidade e legalidade”, tendo, entretanto, o legislador constitucional lhe imposto que o deveria fazer “nos termos da Constituição”, e não o contrário.
Os poderes outorgados pela Constituição ao Tribunal Constitucional para proceder à fiscalização da constitucionalidade e legalidade só podem ser exercidos nos termos da constituição, não tendo a constituição deixado espaço e nem bases que pudessem habilitar o Tribunal Constitucional a agir fora ou contra a Constituição.
Aliás, de acordo com a doutrina do Professor e Doutor em Direito, Jorge Carpizo, (2009)[3], in “EL Tribunal Constitucional y sus Limites”, referindo-se aos poderes de um Tribunal Constitucional, afirma que se “a Constituição não lhe concede expressamente um poder e o tribunal o atribui a si através de uma interpretação”, conclui o Prof. que dessa decisão resultará três consequências: “(a) estaria excedendo a sua competência como órgão constituído e usurpando funções que não lhe correspondem; (b) em vez de proteger e ser o guardião da Constituição, estaria violando-a e talvez criando uma crise constitucional e política sem que ninguém pudesse resolvê-la por meios legais; (c) quebra-se a ideia de que os órgãos constituídos são poderes limitados que só podem agir de acordo com sua competência constitucional”.
Há, pois, dois aspetos que devem ser sublinhados nesta doutrina de Jorge Carpizo (2009):
1) O primeiro, terá a ver com a competência. Um Tribunal Constitucional não pode exercer poderes que a constituição não lhe conferiu expressamente;
2) O segundo, prender-se-á com a submissão à constituição. Um Tribunal Constitucional ao exercer poderes que não lhe estejam reservados expressamente pela Constituição, deixa de ser o seu guardião e passa a ser o seu violador.
Para esse eminente professor e pesquisador, o “constitucionalismo moderno fundamenta-se, entre outros aspetos, na diferença entre o Poder Constituinte e os poderes constituídos. Enquanto o Poder Constituinte é um poder de origem, um poder que se encontra em si mesmo, os poderes constituídos derivam da Constituição”. O Prof. Carpizo entende que enquanto “o Poder Constituinte é o poder criador de toda a ordem jurídica, os constituídos são criados pelo próprio Poder Constituinte na Constituição. Enquanto o Poder Constituinte, em princípio, é um poder juridicamente ilimitado, os constituídos são completamente limitados, pois não podem agir além da competência que lhes é indicada pela Constituição”.
O Tribunal Constitucional, sem ter em devida conta as questões a volta da identificação, da existência e do desenvolvimento de costumes constitucionais contra a constituição, e sem que ninguém tivesse invocado o costume como fonte legitimadora do ato normativo produzido pela Comissão Permanente da Assembleia Nacional, decidiu, por iniciativa própria, sentenciar de forma lapidar: “admitindo-se o costume constitucional contra a Constituição como o Tribunal admite, tal significa que se pode aceitar um efeito derrogatório em relação à norma do nº 1 do artigo 148º da Constituição da República. Assim, a resolução nº 3/X/2021, de 12 de julho, da Comissão Permanente não é inconstitucional por ser conforme a norma costumeira constitucional” (Acórdão 17/2023).
Esta decisão do Tribunal Constitucional foi simplesmente uma declaração da sua demissão das suas responsabilidades, enquanto guardião da Constituição e da garantia jurisdicional da Constituição, e uma machadada fatal na sua própria jurisprudência quando anteriormente disse que “A ideia essencial que se pode extrair do princípio da constitucionalidade é que num Estado de Direito como o nosso, a validade dos atos dos poderes públicos, assumam ou não a forma de lei, depende da sua conformidade orgânica, formal e material com os princípios e normas constitucionais” (acórdão 27/2017 pág. 56/57).
Ou que “nenhum órgão de soberania pode exercer poderes que lhe não sejam atribuídos nos termos da Constituição. Mas também não pode dispor das suas competências, transmiti-las a outra autoridade ou conformá-las de modo diferente. O princípio da prescrição normativa da competência é, numa ordem constitucional de Estado de Direito, manifestação de duas ideias mais fundadas: a de limitação do poder público como garantia da liberdade das pessoas e da separação de poderes e articulação dos órgãos do Estado entre si e entre eles e os órgãos de quaisquer entidades ou instituições públicas” (acórdão 27/2017 pág. 57).
Um Tribunal Constitucional que livremente decide num determinado acórdão que “nenhum órgão de soberania pode exercer poderes que lhe não sejam atribuídos nos termos da Constituição. Mas também não pode dispor das suas competências, transmiti-las a outra autoridade ou conformá-las de modo diferente”, dizia nenhum tribunal pode, em sã consciência, num outro acórdão, aceitar candidamente a usurpação de poderes da Assembleia Nacional pela Comissão Permanente sem explicar do porquê passou a pensar de forma diversa ou por que razão mudou de jurisprudência.
Porque torna-se difícil de entender como um Tribunal Constitucional pode aceitar a existência de costumes constitucionais contra a constituição com poderes derrogatórios de normas constitucionais, sem entrar em flagrante contradição, quando assumiu num acórdão anterior que “nenhum órgão de soberania pode exercer poderes que lhe não sejam atribuídos nos termos da Constituição”.
Aceitar como o Tribunal Constitucional admitiu que a Comissão Permanente possa funcionar fora e acima das disposições constitucionais, é o mesmo que admitir a existência de órgãos superconstitucionais com poderes e força normativa superiores à Constituição.
E não estaremos aqui perante a subversão da ordem constitucional?
O Tribunal Constitucional, enquanto tribunal, não estará vinculado a uma determinação constitucional, segundo a qual “Os tribunais não podem aplicar normas contrárias à Constituição ou aos princípios nela consignados”?
E o Tribunal Constitucional tem poderes para alterar a constituição?
Os juízes do Tribunal Constitucional que juraram cumprir a Constituição não quebraram o seu próprio juramento quando admitiram a existência de costumes constitucionais contra a constituição?
Analisando o artigo 5º da Lei nº 56/VI/2005 que estabelece a competência, a organização e o funcionamento do Tribunal Constitucional, a citada norma dispõe de forma clara que “No exercício das suas funções, o Tribunal Constitucional apenas deve obediência à Constituição e à lei”. A obediência à constituição e à lei só pode significar que o Tribunal Constitucional não pode e nem deve agir por ação ou omissão contra a Constituição porque a ela deve obediência.
Para além da vinculação do Tribunal Constitucional à Constituição e à lei, os seus juízes também estão vinculados, pelo juramento na sua investidura, quando declaram: “Juro por minha honra cumprir a Constituição e as demais leis da República e desempenhar fielmente as funções em que fico investido” (Artigo 22º da Lei nº 56/VI/2005).
Jurar cumprir a Constituição não pode significar, em nenhum caso, aceitar ou validar atos contra a constituição, sob pena de os juízes constitucionais estarem a desonrar o seu juramento e quebrar a sua vinculação aos ditames constitucionais.
Ademais, o ordenamento jurídico pátrio não deixa espaços para tergiversações interpretativas quando no nº 1 do artigo 277º da constituição está expressa de forma taxativa que: “São inconstitucionais as normas e resoluções de conteúdo normativo ou individual e concreto que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados”.
A Constituição da República impõe/ordena que se declare inconstitucionais as normas e resoluções que a contrarie, assim como os seus princípios, e estando o Tribunal Constitucional submetido à constituição e à lei, não lhe cabendo, senão aplicar a constituição, como é o seu papel e sua obrigação, como, aliás, defende Gomes Canotilho[4] (1993) “Todos os atos normativos devem estar em conformidade com a Constituição. Significa isto que os atos legislativos e restantes atos normativos devem estar subordinados, formal, procedimental e substancialmente, ao parâmetro constitucional”.
E face a este “festival” de atropelos, omissões e contradições o que fazer?
Com um parlamento dispondo de uma outra configuração e integrado por deputados mais cientes das suas responsabilidades, poder-se-á abrir um novo processo de fiscalização abstrata de constitucionalidade da Resolução nº 3/X/2021, de 12 de julho, provavelmente analisada pelo Tribunal Constitucional, integrado por novos juízes, com menos propensão para ativismo judicial e dispostos a reporem a ordem constitucional gravemente atentada no Acórdão 17/2023.
Partilhando o pensamento do Barão de Montesquieu, segundo o qual “A injustiça que se faz a um é uma ameaça que se faz a todos”, ou o de Leon Tolstói de que “O errado não deixa de ser errado só porque a maioria concorda e participa”, pois deve-se admitir que nenhum cidadão digno desse nome poderá dormir tranquilo quando se encarcera uma pessoa a 7 anos de prisão, não por ter cometido crime de homicídio, de terrorismo, trafico de drogas, de assalto a mão armada, de pedofilia, mas apenas porque auxiliou à evasão de um cidadão que se encontrava aparentemente sob o regime de permanência na habitação.
Tratou-se, como se depreende do próprio processo, de um crime comum que embora praticado por um titular de cargo político não pode ser transformado, porque sim, em crime de responsabilidade.
Os crimes comuns, aqueles que podem ser cometidos por qualquer cidadão, se forem perpetrados por titular de cargos políticos, só se convertem em crimes de responsabilidades, se tiverem referência expressa “ao exercício de funções”, por um lado, ou, por outro, se forem cometidos com “abuso ou desvio do poder”, assim determina o nº 1 do artigo 3º Lei nº 85/VI/2005.
Ora, todos os outros casos de crimes comuns que não preencham essas condições, se cometidos por titulares de cargos políticos, mantêm a sua natureza de crimes comuns, e os titulares de cargos políticos que os cometerem devem responder perante um tribunal comum da primeira instância como qualquer cidadão como doutrina o Professor Jorge Miranda (2001)[5].
No caso em apreço, foi o próprio Tribunal da Relação que afirmou na página 106 do acórdão que o deputado não praticou “nenhum ato formalmente típico das suas funções parlamentares” ou que as ações do deputado não se enquadravam em um “ato típico do exercício do mandato de Deputado, que se traduza na prática de poderes formais” (Acórdão TR pág. 106), e sendo assim, não poderia ter abusado ou desviado do poder já que não exerceu as suas funções e prerrogativas parlamentares.
Tal como estabelece a Constituição da República, nomeadamente no nº 1 do artigo 123º “Os titulares de cargos políticos respondem política, civil e criminalmente pelos atos e omissões que praticarem no exercício das suas funções e por causa delas”, sendo obrigatória, para determinação do crime de responsabilidade, a existência de um nexo de casualidade entre o crime praticado e o exercício de funções.
Como muito bem explica Ana Cláudia de Barros Cruz[6] (2017) ao responder à pergunta se a ilicitude, relativamente ao crime de responsabilidade decorre da mera titularidade do cargo detido pelo agente, refere que “O juízo de ilicitude presente nos crimes de responsabilidade reporta-se quanto a todos os tipos previstos ao contexto funcional da prática do facto, ou seja, ao exercício de funções. [...] Não é, todavia, a mera titularidade do cargo ou a posição do autor de onde resulta o dever…”.
Deste modo, parece evidente que para imputar a um titular de cargo político crimes de responsabilidade, não bastará, simplesmente, o identificar como titular de um cargo político, exige-se que se reconheça e se identifique, de forma objetiva, que os atos praticados, passíveis de incriminação, tenham relação e decorram do exercício de funções.
E não foi o que aconteceu nesse “histórico” processo.
Assim, a severidade da punição imposta ao deputado Amadeu Oliveira vai mesmo à revelia da própria função punitiva numa sociedade que prime pelo humanismo e pela dignidade da pessoa humana.
Sem um pingo de piedade, pune-se o homem, o pai, os filhos, sobretudo menores, a família, sem a menor ideia do impacto que esta severidade tem sobre aqueles que dependem do provedor do seu bem-estar, enquanto que aqueles que tomam essas decisões severas e brutais nem estão aí, já que o exercício de ponderação e razoabilidade parecem ausentes da escola humanista que professam.
Neste caso concreto do deputado, Amadeu Oliveira, parece que foi utilizado o “Direito Penal do Inimigo” que Eugenio Raúl Zaffaroni[7], que foi ministro da Suprema Corte Argentina, professor titular e Diretor do Departamento de Direito Penal e Criminologia da Universidade de Buenos Aires, descreve, no seu livro sob o título, “O Inimigo no Direito Penal”, que “O poder punitivo sempre discriminou os seres humanos e lhes conferiu um tratamento punitivo que não correspondia à condição de pessoas, dado que os considerava apenas como entes perigosos ou daninhos”. Ainda segundo Zafarroni tais “seres humanos são assinalados como inimigos da sociedade e, por conseguinte, a eles é negado o direito de terem suas infrações sancionadas dentro dos limites do direito penal liberal, isto é, das garantias que hoje o direito internacional dos direitos humanos estabelece universal e regionalmente”.
Dos pecados cometidos nesse processo ninguém escapa ileso: Nem Assembleia Nacional, nem a Procuradoria-Geral da República, nem os Tribunais e nem o Presidente da República, todos traíram a Constituição da República que (todos) solenemente juraram cumprir, fazer cumprir e respeitar.
Referências:
[1] GOUVEIA, J. B. Parecer de Direito. Lisboa: 2023
[2] BRITO, W. Entrevista Jornal A Nação. Nº 817, 27 de abril 2023
[3] CARPIZO, J. EI Tribunal Constitucional y sus Limites. México: Editora y Librería Jurídica Grijley E.I.R.L., 2009
[4] CANOTILHO, J. J. G. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993
[5] MIRANDA, J. Imunidades constitucionais e crimes de responsabilidade. Rev. Direito e Justiça, 15, 27-48. 2001
[6] CRUZ, A. C. de Barros. A imputação do facto comparticipado nos crimes de responsabilidade penal política. Lisboa: 2017
[7] ZAFFARONI, E. R,: O Inimigo no Direito Penal. Editora Revan, 2007