Num tempo em que os actuais governantes exigem pedidos de desculpa pelos erros históricos do partido único, não seria igualmente urgente que pedissem desculpa por estas realidades presentes e constantes? Pelos transportes que não funcionam, pelas ligações que não acontecem, pelas embarcações que não chegam e pelos cidadãos que, abandonados, se vêem obrigados a improvisar perigosamente para não perderem tudo? Por tudo isto, o que se exige não é só justiça para o pescador, mas um compromisso real com a dignidade de quem vive nas ilhas. Que se reconheça a urgência de repensar a política de transportes, de exigir responsabilidade pública e de proteger quem decide agir quando o Estado se ausenta. Porque a solidariedade, quando criminalizada, denuncia mais do que um erro…revela a falência moral de um sistema.
Quem viaja em Cabo Verde aprende que, além de barco, é preciso ter sorte, paciência e uma fé desumana no improviso.
Foi nesse vazio institucional que um pescador local surgiu como única possibilidade. Contratado por quem já não tinha alternativa e num total desespero, esse homem aceitou levar um grupo de passageiros até Santiago numa embarcação de pesca, consciente do risco, da informalidade e da falta de condições, mas também da urgência que o Estado não soube, ou não quis, respeitar. A travessia foi feita em condições precárias, sem coletes suficientes, apenas com a bravura de nôs sangue criol, e de quem sabe que em Cabo Verde, a diferença entre cumprir um compromisso ou perder tudo pode depender de uma decisão radical moda ess li.
O episódio ocorreu na ilha do Maio, recentemente abalada por sucessivos constrangimentos na ligação marítima com a capital. Segundo a Inforpress, e vários relatos confirmados em vídeo, um grupo de passageiros recorreu a um barco de pesca por se encontrar durante dias sem solução de transporte.
O porto da ilha, remodelado em 2022 com pompa, financiamento internacional e promessas de mobilidade inter-ilhas, encontra-se assoreado, ou seja, com acumulação de areia que impede a atracação de navios como o Kriola, em segurança. A própria CV Interilhas confirmou publicamente num comunicado oficial, que “o navio está impedido de encostar à rampa metálica devido ao assoreamento que ali se verifica”.
Sem navios e com escassa capacidade aérea, os passageiros, que tinham, segundo as fontes locais, voos marcados para os seus países de acolhimento, onde os aguardavam compromissos ou simples prazos legais a cumprir, viram-se encurralados. Foi nesse contexto, extremo e desesperado, que decidiram contratar um pescador da ilha para garantir a travessia até Santiago. A viagem, feita numa pequena embarcação de pesca, sem estrutura adequada nem protecção completa. Foi realizada por necessidade, e não por temeridade; foi uma solução imposta pela omissão ou falha gravosa do Estado, e não uma aventura de gente inconsciente.
Contudo, o pescador poderá incorrer numa multa e viu a sua embarcação apreendida, segundo relatos locais e informações partilhadas nas redes sociais. O absurdo atinge aqui o seu clímax: o Estado falha no cumprimento do seu dever, e pune o cidadão que agiu para compensar essa falha. Castiga-se a bóia e absolve-se o naufrágio.
Não se trata de celebrar a quebra da legalidade, mas de questionar com frontalidade que outra escolha havia. E, sobretudo, de afirmar que, num Estado digno, o improviso solidário de um cidadão não pode ser criminalizado quando surge da ausência absoluta de alternativas públicas. A justiça não é cega: é exigente, mas também contextual. E, quando pune quem ajudou, perde toda a legitimidade.
Pior ainda, e que a mim choca profundamente, é que, há quem conheça os factos de perto e, por fidelidade partidária, prefira a mudez estratégica. São filhos do Maio que, em vez de se levantarem perante o escândalo, escolhem baixar os olhos, aplaudir ministros e justificar o injustificável; como se o dever de solidariedade e de denúncia dependesse da cor do boletim de voto. Usam a sua influência para manter o desconforto abafado e a realidade distorcida, contribuindo activamente para que casos como este se repitam…porque não há nada mais cúmplice do que o silêncio perante a injustiça, sobretudo quando vem de quem mais devia indignar-se.
E se este episódio não é caso único, também não é acaso. No Fogo, produtores alimentam animais com frutas que deviam abastecer as ilhas, por falta de transporte para escoar a produção, como denunciado pela RTC e testemunhado por comerciantes e agricultores, que alertam para a deterioração económica local. Na Brava, os barcos vêm e vão consoante o vento, e em Saninclau, o transporte é uma promessa adiada entre dois ciclos eleitorais. Em todas essas ilhas reina a mesma ausência de comunicação, o mesmo padrão de convocar passageiros para as docas com horas de antecedência, só para depois adiar viagens sem qualquer explicação, compensação ou pedido de desculpas. Uma autêntica humilhação tornada rotina. Un passá por iss ess óne cónd un bai pa Saninclau.
Num tempo em que os actuais governantes exigem pedidos de desculpa pelos erros históricos do partido único, não seria igualmente urgente que pedissem desculpa por estas realidades presentes e constantes? Pelos transportes que não funcionam, pelas ligações que não acontecem, pelas embarcações que não chegam e pelos cidadãos que, abandonados, se vêem obrigados a improvisar perigosamente para não perderem tudo?
Por tudo isto, o que se exige não é só justiça para o pescador, mas um compromisso real com a dignidade de quem vive nas ilhas. Que se reconheça a urgência de repensar a política de transportes, de exigir responsabilidade pública e de proteger quem decide agir quando o Estado se ausenta. Porque a solidariedade, quando criminalizada, denuncia mais do que um erro…revela a falência moral de um sistema.
FORTE APLAUSO