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Algumas reflexões a propósito do livro de João Paulo Tavares de Oliveira intitulado A UTOPIA NO ROMANCE BIOGRAFIA DO LÍNGUA, DE MÁRIO LÚCIO SOUSA* - 2ª Parte
Cultura

Algumas reflexões a propósito do livro de João Paulo Tavares de Oliveira intitulado A UTOPIA NO ROMANCE BIOGRAFIA DO LÍNGUA, DE MÁRIO LÚCIO SOUSA* - 2ª Parte

Por ser uma narrativa ficcional, o romance de Mário Lúcio Sousa comporta na parte referente ao antigo escravo cubano Esteban Montejo uma série de especificidades que superam o mero testemunho pessoal sobre a sua história individual de vida e as suas memórias a propósito de uma sequência de épocas da história de Cuba para abalançar-se à construção do protagonista como um menino-prodígio que, com apenas sete meses de idade, aprende a falar como se fosse um gramático e, por isso, é contactado, ainda criança, pelo Rei de Portugal, também um infante, o qual fora previamente informado desse autêntico milagre pelo governador de Cabo Verde. Nessa sequência, o rei de Portugal emite as devidas instruções no sentido de se escrever a biografia oficial desse menino-prodígio de sete meses de idade, instruções que são cumpridas e levadas a bom termo pelo governador da colónia que nomeia um soldado como biógrafo oficial do menino-prodígio doravante chamado Língua. Tudo se complica quando este recusa a sua nomeação para servir como língua (intérprete) no comércio de escravos negros da costa africana vizinha, pois que esta recusa e desobediência do Língua faz-lhe merecer a pena de condenação a trabalho escravo nas plantações.

SEGUNDA PARTE

III

BREVE ANÁLISE DO LIVRO DO MESTRE JOÃO PAULO TAVARES DE OLIVEIRA SOBRE O ROMANCE A BIOGRAFIA DO LÍNGUA, DE MÁRIO LÚCIO SOUSA

Permita-se-me nesta hora enaltecer a escolha pelo autor João Paulo Tavares de Oliveira de um romance da já rica e vasta obra ficcional de Mário Lúcio Sousa para ser objecto/matéria da sua investigação e, assim, proporcionar-nos um conhecimento mais detalhado e aprofundado da literatura caboverdiana.

E o desiderato parece ter sido plenamente conseguido.

Senão vejamos:

1. No primeiro capítulo intitulado “A Literatura Cabo-Verdiana em Face das Outras Literaturas Africanas de Língua Portuguesa”, o autor intenta contextualizar, com sucesso, o surgimento da escrita de autoria caboverdiana e, em especial, da literatura de marca identitária cabo-verdiana no quadro mais vasto das escritas de autoria lusógrafa africana e das literaturas africanas de língua portuguesa.

Situando o surgimento de todas as poéticas africanas de língua portuguesa na segunda metade do século XIX (com uma única excepção angolana), o autor traz à colação algumas importantes especificidades caboverdianas, quais sejam:

a) A escrita ainda no século XVI de uma literatura de viagens por dois célebres autores naturais da cidade da Ribeira Grande da ilha de Santiago de Cabo Verde, designadamente André Álvares de Almada, autor da obra Os Rios da Guiné do Cabo Verde Tratado Breve sobre os Rios da Guiné do Cabo Verde (..), e André Dornelha, autor da obra Descrição da Serra Leoa e dos Rios da Guiné do Cabo Verde.

b) O surgimento no século XIX, e na senda da divulgação e da consolidação na Europa do romance como género literário nobre, para além de também considerado o mais complexo de todos os géneros literários, da narrativa ficcional de temática caboverdiana da autoria, designadamente do português radicado José Evaristo de Almeida e do seu romance O Escravo, e do bravense Guilherme da Cunha Dantas e das suas narrativas ficcionais, como Memórias de um Pobre Rapaz e contos vários, marcante do início do florescimento desse género literário em Cabo Verde, com vários outros nomes, como, por exemplo, o António Arteaga Souto Maior da novela Os Amores de uma Creoula.

c) O importante papel da autoria feminina no surgimento da poética caboverdiana com os nomes de Gertrudes Ferreira Lima, chamada A Humilde Camponesa ou A Paulense, Maria Luísa de Senna Barcelos, chamada A Africana, para além do controverso caso de Antónia Pusich que, apesar de ter nascido em Cabo Verde, passou toda a sua infância e o resto da sua vida no então chamado Reino/Metrópole/Portugal continental tendo escrito uma única obra de temática caboverdiana porque referente à biografia e ao resgate do bom nome do pai, o antigo governador colonial António Pusich.

Deste modo, fica comprovado que a literatura caboverdiana tem uma baptismal marca feminina, além de, nessa fase inicial, também contar com autores masculinos de grande envergadura, como Guilherme da Cunha Dantas, Joaquim Augusto Barreto, Luís Medina de Vasconcelos,João Augusto Martins, Luís Loff de Vasconcelos, Januário Leite, Eugénio Tavares e outros não negligenciáveis colaboradores do Boletim Oficial de Cabo Verde, (Novo) Almanaque Luso-Brasileiro de Lembranças e do Almanaque Luso-Africano.

d) O relevante papel dos mitos da Atlântida, das Hespérides e das ilhas arsinárias cultivados pelos nativistas Pedro Cardoso (de seu nome completo Pedro Monteiro Monteiro Cardoso) e José Lopes (de seu nome completo José Lopes da Silva) na criação de uma mitologia alternativa à saga marítima e aos descobrimentos portugueses para a explicação das origens mais remotas das nossas ilhas, inspirando-se para a concretização desse desiderato não só em escritores greco-latinos, lidos e assimilados no Seminário-Liceu de São Nicolau, mas também no Luís de Camões de Os Lusíadas, consabidamente o mestre dos mestres dos dois poetas clássicos caboverdianos acima referidos.

Deste modo, pôde a poesia caboverdiana ancorar-se em mitos greco-latinos para a própria auto-explicação do caso islenho meso-atlântico e, assim, se diferenciar  desde essas suas supostas origens remotas das demais literaturas africanas de língua portuguesa, que, no demais e tal como nos restantes poetas e, mesmo na restante poesia dos poetas arsinários e/ou hesperitanos desses tempos de outrora, eram muito marcados pelos modelos estéticos europeus, aliás, os únicos epocalmente relevantes e disponíveis e, por isso, os mais adequados para as suas mentalidades eruditas de letrados oitocentistas finisseculares.

e) E, finalmente, o precoce surgimento em Cabo Verde do modernismo literário, inspirado no realismo crítico nordestino brasileiro e no modernismo português e consubstanciado no movimento claridoso, de feição teluricista e, sob a consigna de fincar os pés no chão, totalmente voltado para a abordagem dos problemas e das problemáticas que atormentavam a terra e as gentes caboverdianas, quais sejam as secas cíclicas, as fomes, a emigração, a crise do Porto Grande de São Vicente, a incúria do poder colonial, etc, etc.

Peculiar ao movimento claridoso foi a invenção do chamado português literário caboverdiano por forma a vencer o aparentemente inultrapassável dilema  sobre a utilização do português e/ou do crioulo para a criação e a consolidação de uma literatura autenticamente caboverdiana, expressão polémica muito em voga nesses conturbados tempos e naqueles que se lhes seguiram e ainda perduram.

2. No segundo capítulo, o autor debruça-se sobre a produção romanesca caboverdiana pós-colonial.

Começa por dissecar o conceito, agora tão em voga, de pós-colonialismo, empreendendo uma sumária revisitação da obra de vários teóricos dos estudos pós-coloniais por demais celebrizados, tais como Orientalism, de Edward Said, The Empire Writes Back: Theory and Practice in Post-Colonial Literatures, de Bill Aschcroft, In My Father`s House, de Kwame A. Apiah, The Location of Culture, de Homi Bhaba, bem como as obras de alguns estudiosos das literaturas africanas de língua portuguesa, como, por exemplo, Literaturas Africanas e Formulações Pós-Coloniais, de Ana Mafalda Leite, e ”A Literatura Africana e a Teoria Pós-Colonial”, de Russel Hamilton.  

Para o caso da literatura romanesca caboverdiana pós-colonial, o autor, devidamente municiado com a bibliografia científica e literária disponível, faz-nos constatar o surgimento no período subsequente à independência nacional de Cabo Verde de novas abordagens estéticas por parte de alguns romancistas e ficcionistas, ilustrados, a título exemplificativo, no romance O Estado Impenitente da Fragilidade, de G. T. Didial, O Testamento do Senhor Napumuceno da Silva Araújo, de Germano Almeida, e A Louca de Serrano, de Dina Salústio.

Essa circunstância, de efeitos estético-formais e estético-ideológicos inovadores a todos os títulos da tradicional ficção caboverdiana de marca claridosa (e, acrescentamos nós, contra a asserção de Baltasar Lopes da Silva segundo a qual toda a literatura de temática caboverdiana seria necessariamente claridosa, ou, por outras palavras, carregaria inevitavelmente consigo uma herança claridosa), enquadra-se, segundo o autor, num fenómeno mais geral, também por mim assinalado em vários ensaios, qual seja o nítido alargamento da área de jurisdição, tanto do ponto de vista geográfico insular como também no que se refere às temáticas abordadas.

É o que se pode constatar e comprovar tanto nas obras dos três autores (G. T. Didial, Germano Almeida e Dina Salústio) trazidas à liça e sumariamente analisadas pelo autor do livro ora em apresentação pública, mas também, permita-se-me assinalar, nos romances e contos dos ficcionistas neo-claridosos e nova-largadistas Virgílio Pires, Henrique Teixeira de Sousa, Luís Romano, Virgínio de Melo, Pedro Duarte, Onésimo Silveira, entre muitos outros ficcionistas, grande parte deles proeminentes integrantes das gerações literárias pós-coloniais e dos quais ocorre-me citar os nomes de Viriato Gonçalves, Viriato de Barros, Germano Almeida, Tomé Varela da Silva, Manuel Veiga, Fernando Monteiro, Danny Spínola, Dina Salústio, Ondina Ferreira, Carlos Araújo, Gualberto do Rosário, Eutrópio Lima da Cruz, Joaquim Arena, Eugénio Inocêncio, Carlota de Barros, Vera Duarte, Eurídice Monteiro, Mana Guta (nominho e pseudónimo literário de Augusta Évora Tavares Teixeira) e o próprio Mário Lúcio Sousa.

3. É no terceiro e no quarto capítulos que o autor do livro ora em apresentação pública se debruça mais detalhada e demoradamente sobre a matéria ostentada no título do livro e que reza A Utopia no Romance Biografia do Língua, de Mário Lúcio Sousa.

3.1. Assim, no capítulo terceiro o autor debruça-se sobre o tema utopia, procedendo à inventariação de alguns autores que, desde a sua introdução na literatura por Thomas More, em 1516, fizeram a sua fundamentação teórica, como Paul Ricoeur, Chris Ferns, Fátima Vieira, Peter Fitting, Darko Suvin, incidindo o olhar do estudioso João Paulo Tavares de Oliveira mais demoradamente sobre a literatura utópica e o seu enquadramento na literatura caboverdiana.

É no enquadramento do mito como proposta utópica que são analisados algumas obras de Pedro Cardoso (de seu nome completo Pedro Monteiro Cardoso), designadamente Jardim das Hespérides, de 1926, e Hespéridas - Fragmentos de um Poema Perdido em Triste e Miserando Naufrágio, e de José Lopes (de seu nome completo José Lopes da Silva), designadamente os livros Jardim das Hespérides, de 1928, e Hesperitanas, de 1933

(Abra-se nesta circunstância um pequeno parêntese para se referir que mais recentemente G. T. Didial (pseudo-heterónimo de João Manuel Varela) dedicou ao mito das Hespérides uma das narrativas do primeiro volume dos seus Contos da Macaronésia, designadamente o inicial e intitulado “Inscrições”).

Ademais, são analisadas duas obras de autores pós-coloniais caboverdianos, nomeadamente o romance A Louca de Serrano, de Dina Salústio, e três contos de Mana Guta intitulados Outras Pasárgadas de Mim, na óptica de serem consideradas obras distópicas, isto é, anti-utópicas, na medida em que criticam de forma virulenta o patriarcalismo e o sexismo vigentes na sociedade caboverdiana e pugnam com muita veemência pela emancipação feminina num ponto de vista assumidamente feminista (residindo talvez nessa particularidade da escrita das duas autoras a pertinência para a sua inclusão na análise do autor do livro ora em apresentação).

3.2. Chegado ao capítulo quarto, o autor inicia finalmente e em concreto a análise do romance A Biografia do Língua, de Mário Lúcio Sousa, no sentido e com o assumido fito de nele detectar indícios de utopia tal como, aliás, inequivocamente desenhado no título do livro ora em apresentação pública.

E neste ponto, permita-se-me a seguinte observação seguida de uma reflexão:

O autor de uma tese de mestrado e candidato ao correspondente título de mestre depara-se certamente ao longo do seu extenuante labor intelectual com vários constrangimentos, o mais sério dos quais poderá ser a obrigação de se cingir estritamente à matéria delimitada como objecto de estudo e pesquisa.

Tal constrangimento vem-se tornando cada vez mais intransponível, pois que depois de Bolonha foram drasticamente reduzidas as páginas a que deve ater-se uma qualquer tese de mestrado.

Estamos em crer que terá sido essa a razão primacial que explica o motivo porque o autor não foi mais generoso na selecção da poesia caboverdiana passada e contemporânea de algum modo portadora de um teor nitidamente utópico.

Com efeito, para além da poesia hesperitana de José Lopes e Pedro Cardoso, detectam-se na poesia caboverdiana várias tentativas de demanda de lugares utópicos contrastivos com o arquipélago da escravatura, das secas e das fomes que foi sendo sucessivamente o Cabo Verde colonial.

Um primeiro indício verifica-se, conforme assinalado pela saudosa Professora Elsa Rodrigues dos Santos, numa das falas mais importantes do escravo João do romance O Escravo, de José Evaristo de Almeida, ao se referir a um lugar futuro de igualdade entre todos os seres humanos independentemente da sua raça.

Um segundo indício é certamente o pasargadismo cultivado pelo poeta Osvaldo Alcântara (pseudónimo para a escrita de poesia de Baltasar Lopes da Silva) no seu ciclo poemático “Itinerário de Pasárgada”, inspirado no poema “Pasárgada”, de Manuel Bandeira, e onde se vislumbras e se almeja chegar a um lugar utópico denominado “A ilha de todos os poemas”.

Um terceiro indício é seguramente o “Poema de Quem Ficou”, de Manuel Lopes, expressivo do evasionismo psicológico que partilha com Jorge Barbosa, mas somente em certa medida, pois que em Manuel Lopes esse evasionismo assume bastas vezes um teor nitidamente anti-terralongista.

Um outro indício é o poema “Onde”, de Jorge Barbosa, no qual o poeta sonha, à maneira dos socialistas utópicos, dos anarquistas, dos socialistas de esquerda, dos democratas revolucionários e, maxime, dos comunistas, com um lugar, onde reinem a justiça social e a dignidade humana e em que as necessidades correntes de todos os cidadãos (com especial relevância para o pão, o lar, a educação, a saúde, a paz, a dignidade, a liberdade) estariam satisfeitas, numa verdadeira transfiguração do lugar presente de sofrimento e injustiça desmedidos no lugar outro sonhado por António Nunes no seu emblemático “Poema de Amanhâ” e n`uma outra terra dentro da nossa terra, tal como propugnada por Aguinaldo Fonseca no seu poema “Sonho” e politicamente assumida para ser cumprida pela praxis concreta dos caboverdianos progressistas mediante a emancipação política e a radical transformação social do nosso arrquipélago por Amílcar Cabral, esse verdadeiro fazedor de utopias como faz constar António Tomás do título do livro que dedicou à biografia desse Morto Imortal dado à luz pelo povo das ilhas e diásporas caboverdianas e pelo povo do estado-nação imaginado e forjado na luta político-militar de libertação bi-nacional.

E, nesse contexto, é também mister lembrar-nos do poema “Ilha a Ilha”, de Ovídio Martins, publicado na revista Raízes e certamente complementar da sua visão anti-pasargadista (no sentido de anti-escapista e anti-evasionista) do mundo.

4. No capítulo quarto, o autor intenta caracterizar a actividade literária do autor Mário Lúcio Sousa, dividindo-o em vários ciclos, quais sejam: i. O ciclo poético, com várias obras publicadas, quais sejam O Nascimento de um Mundo (1990), Sob os Signos da Luz (1992) e Para Nunca Mais Falarmos de Amor (1999). ii. O ciclo dramatúrgico também com várias obras publicadas, nomeadamente Salon, Adão e as Sete Pretas de Fuligem, Sozinho no Palco, Vinte e Quatro Horas na Vida de um Morto, Um Homem, Uma Mulher e Um Frigorífico, Adão e Eva. iii. O atual ciclo de novelista e romancista que parece concentrar o essencial da actual actividade literária do autor e perfaz-se nas seguintes obras: Os Trinta Dias do Homem mais Pobre do Mundo, Vidas Paralelas, O Novíssimo Testamento, Biografia do Língua, a que vieram juntar-se nos tempos mais recentes O Diabo Foi Meu Padeiro e A Última Lua de Homem Grande. 

Anote-se que todos os acima referidos ciclos literários se conjugam permanentemente com a faceta de músico/compositor de grande relevo que, para além de artista plástico e gráfico, também é Mário Lúcio Sousa, quer como líder do grupo musical Simentera, quer a solo.

Nessa sequência, tenta o autor detectar o lugar utópico engendrado no romance Biografia do Língua, de Mário Lúcio Sousa.

E estamos em crer que logra concretizar plenamente o seu desiderato.

Com efeito, o autor analisa e consegue (com)provar que o romance Biografia do Língua, de Mário Lúcio Sousa se estrutura em duas narrativas paralelas e largamente intercaladas, quais sejam:

a)   Uma primeira narrativa, chamada primária ou englobante, de teor analéptico, inspirada na obra Escravo em Cuba (Biografia de um Chimarón), do autor cubano Miguel Barnier e que consiste na simples fixação não literária e na primeira pessoa da história de vida do biografado Esteban Montejo, um antigo escravizado negro cubano, e que na démarche literária de Mário Lúcio Sousa mescla eventos ocorridos nas sociedades colonial-escravocratas e nas sociedades delas emergentes em Cabo Verde e em Cuba, e que poderiam ter acontecido em qualquer outra sociedade crioula do Atlântico, das Caraíbas ou do Índico, como, aliás, explica o narrador de Biografia do Língua, dizendo que essa primeira narrativa poderia ter ocorrido em qualquer arquipélago-mundo crioulo, como Falésia, Aruba, Curaçao, Cabo Verde, São Tomé ( acrescentamos nós: e Príncipe), Bonaire, Guiana, Reunião, Santo Domingo, Louisiana, São Bartolomeu, São Martin...

A propósito da extensa influência exercida pelo livro do antropólogo, escritor e biógrafo cubano sobre o romancista caboverdiano, escreve o estudioso João Paulo Tavares de Oliveira:

“Confrontando as duas obras, constatamos que de facto houve uma forte influência da obra de M. Barnet no romance sousiano. Em ambos os livros a história do escravo Esteban Montejo é narrada linearmente segundo o seguinte roteiro: o seu nascimento num engenho, a sua infância e adolescência a trabalhar nas plantações e a viver nos barracões com os outros escravos, a sua fuga aos dezassete anos e a sua vida solitária no monte durante aproximadamente uma década, o seu regresso à cidade após a abolição da escravatura, a sua vida como cidadão livre, os fortuitos casos amorosos que teve até encontrar o seu verdadeiro amor e finalmente o seu desaparecimento físico”. (pág. 103)

Acrescenta ainda imediatamente a seguir o mestre João Paulo Tavares de Oliveira a propósito dessa sensível questão:

“As semelhanças entre as duas narrativas não ficam por aqui nesta simples imitação do processo narrativo. M. L. Sousa também se apropriou de vários elementos e dados da obra de M. Barnier. Desses destacamos os seguintes: (1) elementos antroponímicos, tais como Esteban Montejo (nome do protagonista), Gin Gongo e Suzana (nomes dos seus padrinhos); (2) elementos toponímicos e referências espaciais: enfermaria de Santa Teresa, engenho de Santa Teresa, plantações, barracões; (3) referências étnicas de alguns grupos  de escravos: gongos, lucumis; (4) referências temporais: 26 de Dezembro (dia do nascimento do protagonista); (5) sequências descritivas de lugares (...)” (vide a propósito comparação das duas narrativas na página 105 do livro em apresentação com remissão para a página 16 da obra cubana e para a página 116 da obra caboverdiana); “(6) elementos relativos aos hábitos e costumes dos escravos.” (vide a propósito, comparação das duas narrativas na página 106 do livro de João Paulo Tavares de Oliveira).

É, aliás, o próprio romancista Mário Lúcio Sousa que, numa atitude de muito louváveis sinceridade e honestidade intelectuais, desvela as circunstâncias da sua influenciação pelo autor cubano na sua nota introdutória ao romance Biografia do Língua, denominada “Pré-História”, ao escrever que foi em 2010 que lhe surgiu a ideia de “escrever sobre a vida de uma das profissões mais ingratas que homem algum pôde exercer, a de Língua. Este era um negro que ia como intérprete nos navios dos brancos para a compra de escravos”.

Acontece que, iniciada a escrita da história do Língua, chega-lhe às mãos, em formato de ficheiro informático oferecido por um amigo francês, o livro acima referido da autoria do antropólogo e escritor cubano Miguel Barnier, circunstancialismo que o coloca imediatamente em estado de maravilhamento e muda radicalmente todo o seu projecto de escrita. É, aliás, o próprio Mário Lúcio Sousa que diz sobre o seu romance Biografia do Língua na acima citada “Pré-História”:

“Parte deste livro é verídica (...). Inspirou-me a vida de um homem de rara estirpe, talvez o único neste mundo que viveu o colonialismo, a escravatura, a Abolição, a guerra da independência, a independência, a ocupação, o capitalismo, o imperialismo e o comunismo, sucessivamente e no mesmo lugar. Quando Barnet o entrevistou em 1963, esse homem tinha 103 anos e dizia chamar-se Esteban Montejo. Eu escolhi a ficção para recontar a vida desse homem porque os factos da vida de um escravo ultrapassam qualquer realidade e qualquer imaginação actuais. É algo assim comparável à vida de um perpétuo condenado à morte”.

Por ser uma narrativa ficcional, o romance de Mário Lúcio Sousa comporta na parte referente ao antigo escravo cubano Esteban Montejo uma série de especificidades que superam o mero testemunho pessoal sobre a sua história individual de vida e as suas memórias a propósito de uma sequência de épocas da história de Cuba para abalançar-se à construção do protagonista como um menino-prodígio que, com apenas sete meses de idade, aprende a falar como se fosse um gramático e, por isso, é contactado, ainda criança, pelo Rei de Portugal, também um infante, o qual fora previamente informado desse autêntico milagre pelo governador de Cabo Verde. Nessa sequência, o rei de Portugal emite as devidas instruções no sentido de se escrever a biografia oficial desse menino-prodígio de sete meses de idade, instruções que são cumpridas e levadas a bom termo pelo governador da colónia que nomeia um soldado como biógrafo oficial do menino-prodígio doravante chamado Língua. Tudo se complica quando este recusa a sua nomeação para servir como língua (intérprete) no comércio de escravos negros da costa africana vizinha, pois que esta recusa e desobediência do Língua faz-lhe merecer a pena de condenação a trabalho escravo nas plantações.

Todo o resto desta história primária desenvolvida no romance Biografia do Língua, de Mário Lúcio Sousa, que, como se já viu, é largamente baseada na vida verdadeira de Esteban Montejo, isto é, na biografia desse invulgar e insólito ser humano (uma verdadeira personalidade histórica) contada pelo próprio ao antropólogo e escritor Miguel Barnet, é envolvido por uma atmosfera na qual o realismo mágico (também chamado realismo maravilhoso característico da escrita de Mário Lúcio Sousa (diga-se que largamente inspirado em autores latino-americanos que o autor caboverdiano parece conhecer sobremaneira) dá as cartas por força desse atributo prodigioso que, desde a mais tenra idade, caracteriza a personagem principal da narrativa primária integrante do romance do autor caboverdiano.

b)   Uma segunda narrativa que, enriquecida e intercalada de vários episódios  trabalhados pelo autor segundo a técnica de mise en abîme, decorre no sítio denominado Falésia e que tem como génese o inusitado pedido do biógrafo oficial do Língua de, antes de ser fuzilado, poder narrar a história do seu biografado.

 

* Nota do autor: constitui o presente texto uma versão desenvolvida do texto de apresentação pública do livro de João Paulo Tavares de Oliveira intitulado A Utopia no Romance Biografia do Língua, de Mário Lúcio Sousa (Editorial Novembro, 1ª edição de Outubro de 2021), ocorrida no Centro Cultural Cabo Verde (Rua de São Bento, nº 640, Lisboa) a 6 de Outubro de 2022.

No acto de apresentação pública do livro acima referido, tive a oportunidade de reiterar  os nomes de escritores caboverdianos referidos na sessão de lançamento em Lisboa do livro A Última Lua de Homem Grande, de Mário Lúcio Sousa, que, segundo penso, são legítimos postulantes/candidatos  ao Prémio Camões, o maior galardão literário de língua portuguesa, em razão da qualidade e da dimensão da obra até agora produzida, designadamente e por ordem de idade: Oswaldo Osório, Dina Salústio, Jorge Carlos Fonseca, Valdemar Velhinho Rodrigues, Mário Lúcio Sousa e  José Luiz Tavares, para além e sem farsa modéstia do autor do presente ensaio, na altura referido como poeta épico-telúrico, existencialista e lírico sem concreta nomeação do seu nome literário, do seu pseudónimo e dos seus muitos pseudoheterónimos. Na versão publicada do texto de apresentação pública do mais recente romance de Mário Lúcio Sousa foram ainda acrescentados os nomes dos escritores Joaquim Arena, Filinto Elísio Correia e Silva como futuros candidatos/postulantes a considerar em razão da sua importante obra literária em consolidação bem como dos investigadores e escritores de ideias Gabriel Fernandes, António Leão Correia e Silva e José Vicente Lopes. A esses nomes ousei aditar por ocasião da apresentação pública do livro de João Paulo Tavares de Oliveira intitulado A Utopia no Romance Biografia do Língua de Mário Lúcio Sousa e agora, na elaboração da versão final do presente ensaio, os nomes das seguintes personalidades do nosso panorama literário e cultural:

i. O professor universitário jubilado Manuel Veiga, em razão não só da sua condição de escritor bilingue com importante obra ficcional vazada nas línguas portuguesa e caboverdiana, mas também como o linguista considerado a maior autoridade actual na crioulística caboverdiana e ensaísta com uma vasta obra publicada no domínio dos estudos da literatura, da cultura e do bilinguismo caboverdianos e escrita nas línguas portuguesa, caboverdiana e francesa.

 ii.  A poetisa, contista, romancista e cronista Carlota de Barros, autora de uma relevante e vasta obra e cuja escrita se distingue daquelas cultivadas pelas demais autoras caboverdianas por uma exuberante e cativante leveza lírica, a qual, aliás,  perpassa toda a sua obra ainda em consolidação, com destaque para a sua poesia, mesmo aquela de teor mais trágico. 

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