OITAVAS E DERRADEIRAS ANOTAÇÕES PARA A HONRA E A GLÓRIA DE ALGUNS VERDADEIROS E AUTÊNTICOS MORTOS IMORTAIS NOSSOS, DO POVO DAS ILHAS E DIÁSPORAS, COM ENLEVADA, SE BEM QUE SINTETIZADA, REMEMORAÇÃO DE OUTROS MAIÚSCULOS (RE) CRIADORES E (RE) INVENTORES DO NOSSO MUNDO CABOVERDIANO, AINDA, E PARA TODO O SEMPRE, DO POVO DAS ILHAS E DIÁSPORAS
SECÇÃO TERCEIRA
KAKÁ BARBOZA, UM GRANDE E MAGISTRAL POETA CABOVERDIANO CRIOULÓGRAFO
1. AFRICANIDADE, CABOVERDIANIDADE E AFRO-CRIOULIDADE, COM ESPECIAL ENFOQUE NA EXALTAÇÃO DO HOMEM E DA MULHER DO INTERIOR RURAL DE SANTIAGO E NA LOUVAÇÃO DA REVOLUÇÃO, NO LIVRO VINTI XINTIDU LETRADU NA KRIOLU, DE KAKÁ BARBOZA
1.1. Nota Preliminar
A reivindicação do destino africano de Cabo Verde, tal como constante do Texto da Proclamação Solene da Independência Política da República de Cabo Verde, da (presumível co-) autoria de Manuel Duarte, posto que encontrado o seu rascunho no espólio do eminente intelectual pan-africanista, e lido pelo irmão mais novo Abílio Augusto Monteiro Duarte, no Estádio da Várzea, da Cidade da Praia, a 5 de Julho, nosso ourgulho, de 1975, e o resgate da matriz afro-negra, da vertente afro-crioula e da dimensão africana da cultura crioula caboverdiana foram uma constante na poesia de Kaká Barboza (nominho e, como já se viu na Seção Primeira destas Oitavas Anotações, pseudónimo literário para a escrita poética e a lavra da prosa literária e nome artístico para a composição musical de Carlos Alberto Lopes Barbosa), desde as suas primícias constantes do livro Vinti Xintidu Letradu na Kriolu (de 1984), passando por Son di ViraSon (de 1996), assumindo depois carácter distintamente épico-telúrico no livro Konfison na Finata (de 2003).
Com efeito, a reivindicação da africanidade enquanto espaço geo-estratégico, geo-económico e político-cultural propiciador da catarse identitária para a emancipação política caboverdiana evidencia-se desde o seu primeiro livro, Vinti Xintidu Letradu na Kriolu, estruturado em duas partes, “Son di nos Eransa” e “Son di Ravuluçôn”.
Sendo o desenho da capa da autoria de (Lu) Dipala, o livro é prefaciado por Manuel Veiga e Oswaldo Osório, com textos curtos, todavia de grande pertinência sobre a presença e a recuperação da tradição oral e a incorporação de essenciais aspectos da modernidade na poesia em crioulo de Kaká Barboza, bem como, em geral, na poesia em língua caboverdiana cada vez mais cultivada pelos integrantes das novas gerações literárias, com destaque para aqueles radicados na ilha de Santiago e/ou dela originários, por isso mesmo, quiçá mais motivados e inspirados nas suas ricas tradições orais.
Curiosamente, e tal como a breve nota biográfica do autor, também constante do livro na sua parte final, os textos introdutórios/prefaciais de Manuel Veiga e Oswaldo Osório foram integralmente redigidos em português num livro de poesia inteiramente escrita em crioulo, e integrando, ademais, uma Diklarasan do autor, também curiosamente, porque contra o usual neste livro, escrita segundo as regras estatuídas pelo chamado Alfabeto do Mindelo com os seus famosos “chapéus”, isto é, os diacríticos (mais precisamente, os acentos circunflexos) colocados sobre determinadas consoantes (c, j, l, n, s, z,) para assinalar a palatização das palavras, e não segundo a grafia criada pelo próprio autor e co-existente, em todos os poemas da sua lavra constantes do livro Vinti Xintidu Letradu na Kriolu, com a grafia da Direcção-Geral da Cultura do Ministério da Educação e Cultura de então, em óbvia conformidade com as regras emanadas para a configuração do chamado Alfabeto do Mindelo.
Nesta última versão (orto)gráfica dos poemas de Kaká Barboza, o nome do autor é então grafado Kaká Barbosa, isto é, em grafia ainda aportuguesada do apelido do autor, que no prefácio de Manuel Veiga é chamado e tratado por C. Barbosa, sendo o C. certamente derivado da primeira parte do seu nome composto de igreja ou de registo oficial (Carlos Alberto). A mesma versão (orto)gráfica introduz, por vezes, algumas variações/correcções ao texto original do autor, como, por exemplo, e com conversão nossa no actualmente vigente ALUPEC, enquanto alfabeto oficial da língua caboverdiana, nos seguintes casos, quase exaustivos: aria em vez de area e stória em vez de storia, no poema A! Kauberdi; ozénsa em vez de ozencia, margós em vez de malgoz e korason em lugar de korasan, no poema Sodadi; sakudi em vez de sukudi, no poema “Aian Fidju Fémia”; korason em vez de korasan, no poema “Dju”; manutenção do verso sima agu´l txororó, não constante (eliminado por lapso?) na versão do poema “Ximbia Pingu d´Óru” grafada pelo próprio autor; raskon em vez de roskon, no mesmo poema; txifri em lugar de krifi no poema “Diviza”; alteração da estrutura dos versos no poema “Pidisan di palabra”: N ta fla pabia N ten ki fla em lugar de N ta fla/pabia Nten ki fla; korason em lugar de korasan no mesmo poema “Pidisan di palabra”, com substituição da mesma palavra por duas vezes; Kristu (com maiúscula) em vez de kristu (com minúscula), também no poema “Pidisan di palabra”, tratando-se neste caso provavelmente da correcção de uma gralha; Rakumendason em lugar de Rakumendaçan e sima e´kre em lugar de cime kre, no poema “Rakumendaçan”; na (em na serenata) em lugar de nha (em nha serenata) no poema “Serenata”; pomo (gralha, certamente) em lugar de pamo, no poema “Serenata”; serenetia (gralha, certamente) em vez de serenatia ainda no poema “Serenata”; sima (gralha, certamente) em lugar de simé e nos em lugar de no, no poema “Lus di nha Strela”; negru em lugar de negu no poema “Lus di nha Strela”; Má-a-a! em lugar de Mááá!, no poema “Puema di o ki´n tchiga”; ti té boranku (talvez se trate de gralha, estando o ti a mais) em vez de té buranku e astia em vez de astea no poema “10 Cilindru na Mutor di Pedra”.
Anote-se ainda que o título do livro vem escrito unicamente no chamado Alfabeto do Mindelo, estando a sua ficha técnica, por seu lado, grafada em português, salvo na referência à editora, que vem assim escrita Instituto Kabuverdianu di Livru, isto é, de forma misturada, com uma palavra grafada em português (Instituto) e o resto escrito em crioulo, ou, então e mais provavelmente, com a denominação da editora escrita em caboverdiano, mas com uma arreliantíssima gralha na palavra Institutu, erradamente grafada Instituto.
A mesma forma misturada, mas desta feita das duas grafias do crioulo, a do chamado Alfabeto do Mindelo e a criada e utilizada pelo próprio autor, é visível no Índice (assim mesmo, escrito em português) colocada na parte final do livro, como, por exemplo, na titulação da Primeira Parte do livro à moda do autor (“Som di nos Erança”), mas com todo o resto grafado segundo as normas do Alfabeto do Mindelo com os seus célebres, por muitos, aliás, considerados famigerados, chapéus. Ou tratar-se-á de mais uma arreliante gralha no caso do subtítulo ao modo do autor, acima referido, tanto mais que, não havendo necessidade, nesse caso de sons palatais, e, assim, de chapéus, a diferença nas escritas desse mesmo subtítulo nas duas grafias disponíveis no livro seria somente entre a utilização de um n (em “Son di nos Eransa”), num caso, e de um m, no outro caso (também em “Som di nos Eransa”).
1.2. Primeira Parte: “Son di nos Eransa”
É com a sina da emigração e a dor da saudade que se inicia esta Primeira Parte do livro Vinti Xintidu Letradu na Kriolu, designadamente com o poema “A! Kaoberdi”: “Ka ten kusa mas kasabi/Ki nhu sta longi´l tera nho/Ka xintadu/Ka sakedu/Ka na sonu/ka kordadu/Ka mo zdreta/Ka mo skerda/Ka ntende/Ka ntendedu/Ora norti/Ora sul/Ta nabega riba d´águ/Sen un napundi certu”.
Depois da partida para a Terra-Longe, traduz-se o célebre querer bipartido, cunhado por Jorge Barbosa (por alguns considerado o sumo pontífice do ultra-evasionismo), nos seguintes versos, finalizados com um fortíssimo desiderato anti-terralongista: “Bo ki ben bu larga tera/Bu dexa mai/Bu dexa kretcheu/Bu larga tudu/Pamo ancia´l ben mas ki fika/Má ken ki ben sta fadigadu/Ku xintidu na bai/Si ben e sabi/Fika e riba´l sabi”. Esse desiderato anti-evasionista, na sua dimensão anti-terra-longista, de todo alheia a desejos emigratórios e avessa a ilusórias pretensões de buscar uma vida melhor no estrangeiro, e muito presente na poesia em crioulo de Kaká Barboza, parece reflectir a própria e relativamente curta experiência emigratória do autor, aliás, brevemente referida na sua Nota Biográfica constante do livro Vinti Xintidu Letradu na Kriolu, onde se escreve o seguinte: “Em 1971 emigrou, tendo regressado à sua terra natal, para não mais se ausentar”.
É neste contexto anti-evasionista, primacialmente na sua vertente anti-terralogista, que o poeta (ou, melhor, o sujeito poético) se dirige ao seu interlocutor, um outro, seu “irmão caboverdiano” (“Nha armun”), dissecando as agruras e as armadilhas todas do caminho longe da emigração: “Dexa família e ka nada/Dexa tera e suportavi/Ma dor di sodadi/E cima dor di duença fraka/Ki ta rukuti bida/Ta legra alma/O ki xintidu kore na bai/Ka ten ramedi/Nen korenti ki ka ta sapa”. E são descodificados as alegadas, mas as mais das vezes ilusórias, maravilhas da emigração e as contraditórias reacções dos emigrantes em torno das notícias oriundas da terra-mãe e que os têm como destinatários privilegiados: “Rodiadu di galantaria/Baxu´l dinheru´l branku/Sta bu força´l trabadju/O ki nobidadi ben na karta/Bu koraçan tristi/Ta bira mas kontenti/Noticia sabi ta fase tchora/Kel kasabi ta dizanimabu”.
E, finalmente, é descrita a terra-mãe deixada para trás com toda a sua gritante pobreza e as suas calamitosas agruras climatéricas, mas também nas múltiplas, resignadas e rotineiras vivências do seu povo e na rica diversidade das suas expressões culturais: “Nha´armun/Aian! Sukuta bu obi//Nos tera e pobri/Di tchada limpu kutelu seku/Rubera baziu/ Rotcha kran ta djobe ceu/Sol forti raganhadu/Ceu azul mar d´anil/Ta suluça na area mortu//Nubris branku ta lora dibagar/Ta kuda ingratidan di tchuba/ Mocinhus na storia/Na sombra d´impena/Noti serenu luarentu/Violon detadu na petu´l kriolu/ Morna maguadu na boka´l kantista/Batisadu kuarta/Kasamentu sabru/Badju sabi na son di gaita/Batuku kenti grogu na kalman/Fogueti na len festa nos guentis/Preta bunita d´odju grós/Kabelu stendedu rostu lorondu/Korpu filadi na nó di sulada/Ta sukudi koxa na finaçan di cimboa”.
Descrita e rememorada a terra-mãe, terra da saudade, nas suas conhecidas características do que outrora foi, e, até agora ainda, é considerada terra madrasta, mas também na pureza e na beleza que moram nos seus seres humanos e nas suas manifestações culturais, na sua funda e convicta vontade de viver, regressa o poeta (o sujeito poético, melhor dito) ao dilema do querer bipartido barbosiano, para concluir pela chave também constante do poema “Holanda”, de Oswaldo Osório (na sua versão revista, publicada n´O Reino de Caliban - Antologia Panorâmica de Poesia Africana de Expressão Portuguesa, Primeiro Volume (Cabo Verde e Guiné-Bissau), organização, selecção, prefácio e notas de Manuel Ferreira, Seara Nova, Lisboa, 1975), isto é, que é na nossa terra que se joga e se vence o match final, num tom nítidamente anti-terralongista, na sua dimensão radicalmente antipasargadista. Com efeito, diz o poeta Kaká Barboza a concluir o poema “Ah! Kaoberdi”: “Nh´armun!/Aian! Sukuta bu obi//Ê keli ki ata barian xintidu/Ta pon ta boita ta raboita/Cima don-dagu na rubera/ Cima pitada kan-kan/Mi! Mi li!/Djan ba Kaoberdi/La ke kura´l nha duença/ Ramedi nha fronta/Pan bá diskança xintidu/AH! KAOBERDI!/ LARGAU DJA SO SI “. (Assim mesmo, com maiúsculas).
Nesta Primeira Parte (“Son di nos Eransa”) do mesmo livro (Vinti Xintidu Letradu na Krioulu), procede-se ainda à exumação de alguns costumes e tradições da ilha de Santiago, exaltando o orgulho na idiossincrasia do Badio, isto é, do habitante originário da grande ilha caboverdiana e/ou por ela adoptado e com ela totalmente identificado (como é o caso notório de Kaká Barboza, aliás, pública e orgulhosamente assumido e por ele vezes sem conta reiterado, ele que, natural da cidade do Mindelo e, consequentemente, da ilha rival de São Vicente, fez sempre questão de vincar que cresceu e amadureceu como criatura humana caboverdiana na Vila da Assomada e nas suas verdes e rústicas redondezas do interior de Santiago).
Orgulho do/no Badio, e do/no Caboverdiano em geral, mesmo vivendo e laborando nas condições mais agrestes e adversas, como se verifica, por exemplo, no poema “Nha Funku”:
“Nha funku kin fase/Pedra riba´l pedra/Tras dun kutelu/Kin t´odja fundu´l nha rubera/Nha funku di pedra soito/Kumera´l karapati/ku fodja´l kana/Nha funku dimeu/Ki mi ki fase ku mimu/Pa nha gazadju/Nha sombra/Nha mundu/Nha tudu/Berçu´l nha mininu/Palaciu´l nha mudjer/Nha funku dimeu/Ki ten sucegu/Pas di Diós/Nha funku ki mi ki fase/Pa nha gazadju/Nha sombra/Nha mundu/Nha tudu/Nha tudu”. (Versão do presente poema, como, aliás, de todos os versos anteriores e dos poemas seguintes, na grafia do próprio autor, publicada paralelamente, e na mesma edição, com a versão vazada no chamado Alfabeto do Mindelo, da responsabilidade da Direcção-Geral da Cultura, e, presumivelmente, da autoria material de Manuel Veiga, o principal (f)autor do mesmo Alfabeto do Mindelo)
Ou, ainda, de forma mais afirmativa e (rei)vindicativa, no poema “Ximbia Pingu d´Oru”:
“Ximbia pingu d´oru/sai na aitu´l kutelu/ê djata djatu/ê pupa púpu/kudi na fim di mundu//El si nobidadi/kore seti légua/seti rubera/seti mar/seti mundu/finda na Piki´Ntoni// Ximbia pingu d´oru/tem konbersu doxi/cima ago´l Tchororó/cima figu ponta´l rotcha/ki durba santchu/ku si sabidesa//El ê roskon cima prispi/kontenti cima kabalu/ ingratu cima lobu/ki tem tudu/ka tem nada//Ximbia pingu d´oru/tem ardilu fiticera/xintidu d´inkantada/seti bida cima gátu/seti dia cima sumana// Ximbia pingu d´oru/ka kurtu ka kumpridu/ka di po ka di pedra/ka bodi ka kabalu/ê cima Nhordés fase´l”.
A mesma personagem, Ximbia Pingu d´Oru, reaparece no poema “Diviza” em vestes típicas desse género da poesia tradicional caboverdiana da ilha de Santiago, de inabalável bazófia e orgulhosa (diria até, ególatra) exaltação do eu do sujeito poético: “Mi ke Ximbia pingu d´oru/komparadu na Markes di Pombal/faka tchuntcha ponta´l margura/ ki bainha kuátu rapariga noba//Mi ke cima nhu Duki/ki deta baxu pe di sodadi/ manxe baxu pe di dinheru//Mi ke mi!//Bodi bedju rau paduku/obu rastera kifri na tchon/ka ta pintadu manta k´ol/nin ka ten konta ku manel mangradu/ki fari toru di piskos largu//un nhápu ta nhapati/un soku un keda/un konbersu/un kansera´l xintidu/´nta maki ta guengue//´nta vipu ta tchós//Rrrrr/Mi ke mi!/petu d´açu/ ´ndjarda´l prata/koraçon d´oru/ki ta da mundu ki kuda”.
É igualmente festejada a mulher do campo, do interior rural de Santiago, na sua grande maioria de tez negra/castanho-escura, e as expressões culturais afro-crioulas, com destaque para o batuco, em poemas fundados na paixão amorosa, como em “Dju” e “Aian, fidju fémia”, ou nas típicas tradições santiaguenses de conquista e cativação da mulher amada pela palavra dita e falada, como no poema “Pidiçan di palavra”:“´N foga dentu´l mi/´n ben dizabri ku nha/pan pazigua tormenta/ki ata pokentan nh´aima/nha diskuipan si na ta bai/´n tadja nha/ma otu guetu ´n ka ten/ê ti si ki ´n atcha môdi/si berdadi na lei/ta lebia kastigu/perdan pididu ta sirbi amizadi/kombersu papiadu/ta diskarga xintidu/dja kre diklaradu/ta mansa vontadi.//Nha sumara nha ten ku mi!//Na kantu nu kontraba/ki nos odju fase kuatu/´n ten ma xintidu kontan/cima ki Diós nance nha/distinadu pa nu kre/si ten kre/dja kre/forti kre/di meu ê forti kre// Nha sumara nha ten ku mi!//Pa nin ki kombersu/ê ladron di tempu/Kamin di kasa ê di ruspetu/´n ta fla/pabia ´n ten ki fla/odju ki odja nha/boka ta fla sen xinti/ koraçan ta kre sen kuda/força´l nobu ta ´ngasga dentu d´ómi//Nha sumara nha ten ku mi!// Nha kombersu ê ka flar di boka/nha krer ê di koraçan sen spinhu/na buskar di ken ki ´n kre/xintidu mostran nha/tumodi alanu li/na sabi o na kasabi/na midiçan di nos distinu/si nu djunta nos krença/nun kusa sô/´nparu nos distinu/ê la altar di Djizus/ palabra ´n ta pidi nha/cima pidi kristu na pó di kruz//Nha sabe sabedu/pa na boita di sumana/nha dan un rezan diklaradu/pa nha flan sin certu/o nau diklaradu/dicididu pa tudu tempu/ pan sabe mo ´n ta manti/si nafragadu na margura/o na furtuna mon di nha//Aian!//N ka ta tene nha má ki si/si ´n ata boita nha kaminhu/ku koraçan diskançadu/má inda xintidu/ta fikan ta matuta/nun kudar diskunfiadu/pabia tudu sta na mon di nha//Nha sabe sabedu/´nton nha ben flan e ma môdi”.
Tal como em Kaoberdiano Dambará, a noite e o negrume da escuridão detêm um importante valor simbólico, pois que, além de propiciarem resguardo e refúgio, permitem que as estrelas (neste caso, as mulheres amadas) contrastem com eles (isto é, com a noite e o negrume da escuridão) e brilhem em todo o seu pleno fulgor. É assim que no poema “Dju”, a mulher amada é caracterizada como “preta-preta sima sukuru/sorizu brilianti/odju´l strela sima nha sonhu”.
No poema “Aian fidju fémia”, diz-se da mulher amada: “Bu korpu é noti ki bafan nha mágua/Bus odju é luz ki limian nha petu/bu falar/bu sorizu/é son kenti di batuku/ki sukudi koxa´l rapariga noba”.
1.3. Segunda Parte: ”Son di Ravoluçôn”
Em “Son di Ravoluçôn”, a Segunda Parte do livro Vinti Xintidu Letradu na Kriolu, pontifica a louvação da revolução em poemas de visível tom panfletário e assumido teor mensageiro revolucionário, característicos desses efusivos e heróicos tempos de outrora (na bela expressão francófona de Mário Fonseca - Les temps heroíques de jadis-, aqui traduzida para o português), todavia nem sempre despojados de uma (re)buscada e expressiva literariedade e sempre imbuídos de uma grande riqueza metafórica, aliás, característica da poesia de Kaká Barboza, incluindo daquela de teor político-militante mais nítido e evidente, por vezes descomplexadamente patenteado e denunciado nos próprios títulos, como se pode constatar nos poemas “Konxenxa e arma”, “Puema pa um militanti” (portador, por três vezes, do belo refrão “áncia gana kudi na luta”, que, depois, também por três vezes, se altera, em rítmica variação, para “áncia gana di vence na luta”), e, sobretudo, “Son di Ravoluçan”: “Son di ravoluçan/ (…) e fidju di un dia di sonhu/ki afligi petu´l fidju nos tera/ki korda pensamentu/i spanta konxenxa/di nebua´l dominaçon/ di kastigu sofrimentu/ki kiria na floresta´l kudar kansadu/ regadu ku sangui ferbedu/na rubera vontadi pobu (…) Son di ravoluçan/ (…) e limiar di un xama/ki cendi sen dia di paga/e disparu di un bala/sen distinu pa tchiga (…) Son di ravoluçan/ e tempu nobu/ ki ta nance na kada dia ki manxe/ta omenta na kada noti ki kai”.
Na Segunda Parte (“Son di Ravoluçôn”) do livro Vinti Xintidu Letradu na Kriolu também se celebra a liberdade pátria conquistada mediante a tenaz e perseverante luta do partido da estrela negra, “da negra cor do meu irmão” (“strela nha luz/negu (negru) kor di nha armun”, do poema “Luz di nha Strela”), ao mesmo tempo que se reafirma a esperança num futuro de progresso, bem-estar e felicidade para o povo de Cabo Verde e de prosperidade, fraternidade e igualdade para e entre todos os povos do mundo, como expresso, por exemplo, no poema “Dia”:“Dia!//Flan ki dia ki bo e nha dia/´ntodjabu ta bai/ta bai ta pasa/ta kore mundu/kore tempu/ i ami nada bu ka ta flan//Dia!//Ka bu dan bu furtuna/nen bu morti sucegadu/nen bu sombra mas fresku/ki fari bu noti mas luminozu//Dia!//Pa mi so bo e nha dia/so bo e maior ki nunca/dia ki povo di mundu/ser tudu-tudu igual”.
A celebração da Revolução não significa todavia a ocultação e/ou o escamotemento das muitas questões que ainda afligem as pessoas comuns do povo no seu sofrido e atribulado quotidiano.É o que fica patente na abordagem crítica dessa realidade de agruras múltiplas e muitas carências no poema “Puema di o ki´n tchiga”, colocado no livro curiosamente logo a seguir aos poemas de militância, exaltação e louvação revolucionárias (os já citados, bem como "Mininus d´independéncia"):
”Nha puema sa ta ben di tchada dentu/undi ki padja ki nance dja ká more/di rubera/undi ki agu kore e dja ká seka/di pé di monti/undi ki ti sombra dja bira minguadu//Nha puema sa ta ben di ponta´l praia/undi ki soris/dja ngrosa mar/di suburbu/undi ki kabra ku galinha e pesoa´l família/di tetu rendadu/undi ki mês ten korenticinku dia//Nha puema sa ta ben di kalker manera/undi ki ka ten tempu ruma letra/di tereru/undi ki batuku e tempra konxenxa/di tamboru/undi ki kada son e un sinal d´avizu//Máá!/O ki´n tchiga mi ku nha puema/ken ki t´obil e kontadu na dedu/pabia si palabra e poku raduzidu/ma ku ordi rixu ki bale pena//O ki´n tchiga mi ku nha puema/konta justu ten ki fasedu/ku tudu sinal di tabuada/ + - × : tudu ken ki ben ku mi”.
Esse olhar crítico, aberto ao mundo das pessoas comuns e convictamente solidário com elas, nas suas muitas e diversas atribulações, na desesperada contabilidade dos seus persistentes sofrimentos e desgraças, muitas vezes catapultados no seu paroxismo catalítico por uma natureza avara e madrasta, mas onde também persiste a resistência (“Nha puema sa ta ben di kalker manera (…)/di tereru/undi batuku e tempra konxenxa/di tamboru/undi ki kada son e un sinal d´avizu”) e se exige justiça (“O ki´n tchiga mi ku nha puema/konta justu ten ki fasedu/ku tudu sinal di tabuada”).
São os ingredientes socioeconómicos, cultural-identitários e políticos inventariados no “Puema di o ki´n tchiga” que, no esplendor todo das misérias quotidianas, mas também da existência e da persistência humanas que perfizeram a estóica singularidade do povo das ilhas, sintetizada no poema “10 Mustura na Bespa 11”, a seguir transcrito e que, a nosso ver, representa um conseguido louvor poético da síntese dialéctica e, nessa sequência e correlativamente com ela, da mestiçagem biológica e cultural, tão querida dos caboverdianos porque assaz marcante e estruturante da sua dolorosa e heróica História e da antemanhã do vindouro futuro radioso das ilhas, então, nesses anos oitenta do século XX, ainda a tracejar e a esboçar para o desenho, quiçá, do esfusiante “Poema de Amanhã”, de António Nunes, consabidamente inundado de optimismo ontológico e de esperança para o povo da ilhas, não obstante os muitos escolhos e agruras que persistem em tolher o seu quotidiano e o seu destino:
“10 MUSTURA NA BESPA 11//Tchoru mustura ku kanta/da/Puezia/Duzusperu mustura ku sperança/da/Rizistencia/Bai mustura ku fika/da/Konxenxa/Froxa mustura ku tene/da/Firmeza/Mintira mustura ku verdadi/da/Dicizon/Gana mustura ku fase/da/Luta/Branku mustura ku pretu/da/Kaoberdianu/Oxi mustura ku manhan/da/Bespa/Tera mustura ku mar/da mundu/Pasadu mustura ku prisenti/da/Nobu/Un mustura fika pa fase/Sploradu + Splorador/Pa da Djustiça/Si ka mustura kontu vai atras/STÓRIA DESDI PRINCIPI”. (Assim mesmo, em maiúsculas).
São as agruras e os escolhos acima referidos que consubstanciam o último poema (“10 Cilindru na Mutor di Pedra”) do livro Vinti Xintidu Letradu na Kiolu, o qual funciona como um balanço da História multissecular do povo das ilhas que, obrigado e obrigando-se a enveredar pelos caminhos íngremes de uma História pejada de atrocidades, mas também de heroísmos anónimos, não se deixou atalhar e vergar na sua marcha até atingir finalmente o destino da sua longa viagem com o hastear da bandeira nacional da independência (“Bandera n´astea da sinal di riba´l tchada”). Franqueada a grande e almejada porta da liberdade pátria (”riba´l tchada”, defronte do “portão das nossas ilhas”), havia que continuar a caminhar para perfazer a essência e a substância da infinita caminhada pela História por vir e a fazer e moldar, assim, os múltiplos e (ir)reconhecíves perfis dos caminhos do futuro, pois que o motor que vem fazendo rodar a engrenagem do destino do povo das ilhas continuava funcional, intacto e incólume, ademais ciente de si mesmo no espírito e na cabeça que o animava e o conduzia, porque miraculosamente dotados de uma identidade com nome próprio, de uma marca distintiva, integralmente assumida (“10 cilindru na mutor di pedra/inda ka kança/inda ka baria/pabia si marka ê K.DIANU/RCV 4033 -30000 H”).
Nesta óptica, somente a necessidade da reflexão para a melhor e mais racional escolha das melhores opções possíveis num dado momento histórico, numa determinada ambiência sociopolítica e num determinado contexto geo-estratégico pode justificar uma qualquer instantânea suspensão, todavia sempre aparente (“Pára so pa toma sumaru/Pa dipos..”), aliás, em estrita observância das consignas cabralistas “pensar pelas nossas própria cabeças”, “andar pelos nossos próprios pés”, “pensar para agir melhor, agir para pensar melhor”, na contínua (re)construção e na ininterrupta modelação do destino do povo das ilhas (as nossas dez ilhas afro-atlânticas e as outras tantas “ilhas” constitutivas das nossas diásporas espalhadas pelo mundo), sempre posto nos seus tempos pós-coloniais ante o dilema de escolher entre duas possíveis grandes vias, todas elas por demais dificultosas e/ou, ilusoriamente ou não, auspiciosas: a via esquerda feita de sucessivos obstáculos e configurando-se como implicando um percurso de longa duração (“pa skerda kutelu tcheu kaminhu longi”); a via direita, aparentemente mais fácil, mas pejada de armadilhas, de perigos e de ameaças (“pa zdreta dixida faxi ladera di prigu”). Felizmente que possibilidade da livre escolha entre vários e diversos, amiúde contraditórios e bifurcados, caminhos engendrados pelas múltiplas e inesgotáveis encruzilhadas da História, vem cativando e legitimando cada vez mais o povo livre e soberano do nosso Sahel insular no seu permanente desiderato e na sua inalienável vontade de almejar um futuro sustentável para todos os seus filhos, nas ilhas e diásporas, tal como, aliás, interpretado e compreendido nesse derradeiro poema do livro Vinti Xintidu Letradu na Kriolu, de teor e perfil a um tempo assaz resilientes e construtivistas:
“10 CILINDRU NA MUTOR DI PEDRA//500 anu ta gueme na subida/ku karga piçadu dia ku noti/Na kurba kontrakurba/Kaminhu marguradu/Ó ki té buranku kai/bira si pedra lolo/ta dismerdia na mei di tchuba/ta tepu-tepu na sekura´l sol forti//10 cilindru na mutor di pedra/ronka tchoru/pita sperança/ladu ta bai ladu ta ben/kaminhu runhu/subida ingri//Bandera n´astea da sinal di riba´l tchada/ma riba´l tchada ten dos kaminhu/pa skerda kutelu tcheukaminhu longi/pa zdreta dixida faxi ladera di prigu// 10 cilindru na mutor di pedra/inda ka kança/inda ka baria/pabia si marka ê K.DIANU/RCV 4033-300.000 H/Pára so pa toma sumaru/Pa dipos…”
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De grande interesse, neste ano de 2020, subsequente ao mês de Novembro do ano da atribuição à Morna do Estatuto de Património Cultural Imaterial da Humanidade pela UNESCO, é o poema “Serenata” de um cantautor/poeta/compositor que, além de criador de um estilo musical próprio a que atribuiu o sonante nome funambá (junção dos termos e das expressões musicais funaná e rumba (africana) e na poesia criou o termo finata (fusão entre os termos finason e serenata), é também um conseguido e festejado compositor de mornas, coladeiras e outras criações em outros estilos e géneros musicais caboverdianos.
Tais eclectismo e hibridismo culturais demonstram, mais uma vez, que, à semelhança de outros cultores da poesia e da música caboverdianas, e mesmo no caso extremo da radical negritude político-cultural de Kaoberdiano Dambará, a afro-crioulitude poética e cultural praticada pelos criadores literários e musicais caboverdianos significa mais, e sobretudo, a ênfase no resgate da matriz afro-negra e da dimensão afro-crioula da cultura nacional caboverdiana, de natureza mestiça afro-latina, do que a renegação ou postergação excludente de outras matrizes e dimensões da mesma cultura, incluindo daquelas de mais acentuados teor, cunho e predominância matriciais europeus.
No caso do poema “Serenata” é a morna que é louvada e exaltada enquanto expressão cultural islenha afro-latina e manifestação típica e total (música, dança, canto, poesia) da crioulidade caboverdiana, como, aliás, também ocorre com outros géneros musicais caboverdianos, como o batuco, o funaná, a coladeira ou o talaia-baxo.
É o que se pode comprovar da leitura atenta e completa desse poema da Segunda Parte, que, aliás, inaugura, do livro Vinti Xintidu Letradu na Kriolu, de Kaká Barboza, lapidarmente intitulado “Serenata” e que a seguir é integralmente transcrito: “Dexan toka nha serenata/dexan toka nha violon/pan kunpanha morna/pamo el e nha bida/e bater di nha koraçan/cima morna e nha sangui//Serenata//E luz di nha kaminhu/na noti sen lua/ rasguardu di nha korpu/na friu ratchadu/di giada´l mardugada//Serenata//E erança ki Bilaki/B. Léza, Ogeni Tavaris dexan/ka bu stroban serenatia/ka bu stroban kanta morna/sinau e tran Kaoberdi//Dexan ku violon trabeçadu na petu/ku Sol Menor na poziçon/pan kanta ligria/kanta tristeza/pan tchora margura/ i grita ravoluçan na son di korda//Dexan na rua sukuru di nha morada/ta serenatia riba/serenatia baxu/na obidu´l nos kriola/na ginela trabankadu dun fidjo femia//dexan serenatia/pan dispidi di noti/pan recebe madrugada/ta kanta morna/pan tirmina serenata”.
2. SON DI VIRASON, EM TEMPOS DE RESSENTIMENTO, DE RUPTURA E DE MUDANÇA DE PARADIGMAS POLÍTICO-IDEOLÓGICOS E SIMBÓLICOS
2.1. Exaltação da Tenacidade do Povo Caboverdiano, Espírito Crítico e os Muitos e (In)Decifráveis Indícios e Sinais de Mudança
No seu segundo livro, Son di ViraSon (editado em 1996, pela praiense Spleen-Edições), também de poesia em crioulo, agora escrita seguindo estritamente as normas estabelecidas no ALUPEC (Alfabeto Unificado para a Escrita do Caboverdiano), Kaká Barboza embrenha-se a fundo nos muitos afazeres, nas múltiplas turbulências e nas incontáveis atribulações do povo caboverdiano durante o longo período colonial, como se pode verificar, por exemplo, no poema “Pa sabedu na kontisimentu”, que discorre sobre a constituição geomorfológica das ilhas de Cabo Verde, a génese histórica do seu povo (“ka tinha podu/podu fika/fika transa/transa ratransa/nanse Kauberdianu”), as suas tragédias históricas e as suas calamidades naturais até à sua constituição em nação caboverdiana soberana (“Nton!/Rananse na pontu final/di sinku éra sinku gerasan/kauberdi nasan/nasan pa tudu ténpu/ta bôia na dizaforu´l mundu”).
Continua, ademais, a exaltar e a enaltecer o homem caboverdiano, a indagá-lo na busca e na tentativa de decifração dos enigmas do seu destino e a incentivá-lo na prossecução do seu longo percurso histórico, como nos poemas “Na Ton di Pé Firmi na Txon”, “D´Un y d´Otu Banda”, “Nu Ten Ki”, “Pa Nin Ki” (“Djoka di Mai!/Ómi ka debe dizâria/nen kordadu/nen na sonu/nen ki dilubri kóre/lânsia na txada//ÓMI MA DJA XINTI ÓMI/si konsénsia klaru di mundu/é lémi si kabésa/véla si vontadi/proa´l si koraji/pa ratxa agu/ku txon ku tudu/ta bai ta kanba na ténpu (…)”.
É nessa senda pedagógica de educação cívica para a perene verticalidade e para o pleno desabrochamento das melhores virtudes das criaturas humanas e do inteiro respeito pela dignidade de todos os seres humanos que se integram os exemplares conselhos e ensinamentos constantes do poema “Konsedju Nha Mon”, não por acaso dedicado aos seus irmãos, ele que efectivamente foi o primogénito e o mais velho em sabedoria de todos eles, irmãos e meio-irmãos, irmãs e meio-irmãs:
“Dianti di ruspetu/tratamentu é dretu//dianti di bon tratu/ka ta sedu ingratu// dianti di razon/ta pididu perdon//kada kuza ten ki bá na si ton/pamó kada kenha ten si kondon//Má s´é pa bu tradu ku mon/bo pa bu kruza mon/anti kume leti ku mamon/ô tonba na fundu-l kobon/s´é pa sankon/sédu rafilon//es k´é KONSEDJU NHA MON/PA TUDU NHAS IRMON.” (Assim mesmo, em maiúsculas).
O homem rural de Santiago, o seu orgulho pessoal, a sua ´vigorosa ética de trabalho e as suas tradições culturais ocupam um lugar destacado no livro Son di ViraSon. É o que se pode verificar, por exemplo, nos poemas, “Briu di Badiu”, “Rafiason”, “Sétenbru”, “Na Pasu d´Azágua” e, sobretudo, no poema “Mi é sima mi própi”.
Sejam transcritos três desses emblemáticos poemas:
I. “Sétenbru”:
“Xindu di Luka Manaia/arma si faka na préga/é ba finka mandióka//Téki-taki-txas/pega kebra finka/mês di seténbru/lua di txuba/planta sakédu/na régu ta bai//Ku sol dobradu mei-dia/planta finkadu na régu/el pustadu ta dorna si órta//Djaki pupa pidi padja/ben n´el xintidu di ténpu/é da rinkada róstu pa kaza//Xintadu na pó di si moxu/ta kuda kebra-djudjun//pa korta sóris é pinga si grógu//Téki-taki-txas/pega kebra finka/mês di seténbru/lua di txuba/rabentu nobu/na régu modjadu//Xindu di Luka Manaia/si nada ka mufina-l si kalku/na volta d´anu ta ten mandióka?”.
II. “Na Pasu d´Azágua”:
“Na pasu d´azágua/oki bu odja pulígunu nha korpu/na ladera ta rosa padja/ nkurvadu riba d´inxada/suadu/modjadu/ta pinga suor/ta modja txon ki ta suste-m//Bu pode fla/m´é Kauberdi/ki sa ta berdi na nha mô/sima bandera´l nha speransa/spetadu n´alma nha dizeju bibu/na simitériu nha petu”.
III. “Mi é sima mi própi”:
“Mi é transadu/má sen burgonha/ta buska ten/más sen oronha/konbersu klaru/ka trapadjadu/skóla poku/má ku postura/ka letradu/ka ta nganadu/sen dinheru/ka trapaseru/ka bá kórtel/ka tomadu nómi/ka débe ónra/na banku grandi/ki fari na pó/di djustisa//ka di prasa/ka ten inveja/ka donu txon/nen proprietári/ka sobérbu/nen intereseru/ka mufinu/nen diskudadu/ka faronperu/ nen mal tadjadu/ka mintrozu/nen lixonxeru/ ka rabeladu/nen malkriadu/ma ndis kontu/bixêru mansu/ten leti sértu/na tudu mai//diskunfiadu konbérsu txeu/ka ta kunpradu ku amizadi falsu/ruspetu finu disprézu sértu/ pa ma`lobadu/ka ten xintidu/na kuza genti/ka ten galon/ka txora poi/na piskós só/kolarinhu branku”//ka purtuges/ka ninhun d´es/ka nbarkadistu/ka ten sodadi/ka klandistinu/nen pé na boti/mantega´l leti/midju´l téra/spritu batuku/alma sinboa/faze-m kel ki/Ami N é/ KAUBERDIANU/ka konparadu/ómi firmi/riba´l mundu/pa purba mundu/legradu/ô rukutidu/faze bu kalku/djobe bu djurga/MI É SIMA MI PRÓPI” (assim mesmo, com maiúsculas).
Embora mais próximo de uma letra musicada do que de um poema propriamente dito, sobretudo tendo em conta a totalidade da poética em crioulo de Kaká Barboza (quiçá, por isso mesmo, não integrando nenhum dos seus livros de poesia publicados), interpretado na poderosa voz de Zeca di Nha Reinalda com coros do irmão Zezé di Nha Reinalda e arranjos musicais e orquestração do multi-instrumentista Paulino Vieira, o texto versificado “N ka pur si” é construído, do ponto de vista do conteúdo substancial da sua mensagem, como se pode, aliás, constatar pela transcrição feita a seguir, na linha da poemática de um eu badio (ou, mais genericamente, de um eu caboverdiano) orgulhoso e afirmativo de si próprio, constante, por exemplo, do poema “Ami é sima mi própi”, mas no caso de “N ka pur-si”, na conhecida linha anti-terralongista característica da poesia em crioulo de Kaká Barboza, para se impor e/ou dar conta de si em face da mulher amada/desejada e de eventuais rivais emigrantes, menos receados, se “lisboetas” (isto é, emigrados em Portugal), mais temidos se “holandeses” (isto é, emigrados nos Países Baixos, mais ricos e desenvolvidos e detentores de um maior nível e qualidade de vida que a antiga potência colonial e ex-metrópole de Cabo Verde):
“Dja N kre-bu/Dja N kre-bu//Dja N kre-bu fidju-fémia/Dexa-m dizabri ku bó/Pa N da-bu konta di nha nobu//Kel poku ki tera da-m/N trabadja N djunta di-meu//Lisbueta ta inveja-m/Olandês ka fika-m pa riba//N ta faze-bu sinhorinha/Na midida´l bu dizeju/Faka txuntxa ponta´l margura/Na baínha mon di si donu/Aiai fidju-fémia/Mi ka bá Lisboa/Mi ka bá Olanda/Má N ka pur-si/ Kel poku ki tera da-m/N trabadja N djunta di-meu//Lisbueta ta inveja-m/Olandês ka fika-m pa riba//N ta faze-bu sinhorinha/Na midida´l bu dizeju/Faka txuntxa ponta´l margura/Na baínha mon di si donu”.
Alguns poemas de teor predominantemente telúrico, depois de musicados, foram também interpretados por Nhonhô Hopffer (nominho e nome artístico do arquitecto Frederico Hopffer Almada) no seu festejado disco de estreia Nhara Santiago.
São os casos dos poemas “Téra Madrasta”, de funda e magoada lamentação do destino aziago dos filhos das ilhas, fustigados pelas estiagens e condenados a amar a sua terra madrasta pela permanente destilação da dor (“Ó téra madrasta/kal k´é forma di midi amor/kal k´é óra di santas grasa/ki sina é es di krê-bu ku dor/signu distinu di tudu un rasa”) em nítido contraste com “Kor di Fodjada” (o outro poema-canção de Kaká Barboza interpretado por Nhonhô Hopffer, mas não integrante de nenhum livro publicado do malogrado poeta), de esfusiante esperança num amanhã repleto do verde das setembrinas folhagens dos milheirais e da água a correr nas levadas, num tom aparentemente aparentado ao constante da segunda e eufórica parte do “Poema de amanhã”, de António Nunes, sendo que “Téra Madrasta” representaria o equivalente da primeira e disfórica parte desse mesmo festejado e profético poema.
Leia-se, para mais e melhor elucidação dos interessados, o teor completo do poema “Kor di Fodjada”, de Kaká Barboza, também musicado por ele e cantado por Nhonhô Hopffer:
“Labrador di nha terra/N ten fé/Ma águ ta volta pa labada/Pa bu pode trabadja bu txon/Sen ideia ma bu ten patron/Ómis ku mudjer mó na inxada/Ta labra téra pa simentera/Na kada fundu rubera/Mosinhus ta pastoria limária//Nha fé é fundu sima mar/Nha speransa ten kor di fodjada/Ma kusas ta volta pa lugar/Óki águ disponta na labada//Labrador di nha tera/ N ten fé/Ma águ ta volta pa labada/Pa plantas mata si sekura/Pa bus odju engorda na verdura//Boi na trapitxi ta pila/Sukri na kobri grogu na fornadja/Batuku finkadu na tereru/Ma sábi bali más ki dinheru//Nha fé é fundu sima mar/Nha speransa ten kor di fodjada/Ma kusas ta volta pa lugar /Óki águ disponta na labada”.
Anote-se todavia que a esperança aludida e mantida acesa no poema “Kor di Fodjada”, de Kaká Barboza, é a esperança no regresso do paraíso das águas, muito conhecido e almejado pelas gentes humildes, remediadas e abastadas dos campos de Santiago e de outras ilhas agrícolas de Cabo Verde, sobretudo naqueles sítios localizados em regadios e vales verdejantes ou nas suas redondezas. Essa esperança é, pois, a esperança no regresso da fertilidade de uma terra de novo bafejada pelas chuvas e, assim, encharcada e inundada das suas águas, depois, conduzidas pelo labor dos lavradores aos tanques de rega, às levadas e a outros engenhos humanos capazes de, mediante os lavores agrícolas dos lavradores, tornarem a terra fértil, produtiva e não mais anametizada como madrasta, porque propiciadora de colheitas e de abundância de frutos. As alfaias e o demais instrumentário agrícola de que se serve o lavrador do poema “Kor di Fodjada” e a ambiência que o rodeia são os tradicionais e típicos dos meses das azáguas (a enxada, a levada, a fornalha com o trapiche e os bois rodando nas almanjarras, o cobre, o grogo, o mel, o açúcar mascavado, a alegria esfusiante das mulheres no batuco repicado, as crianças cuidando das alimárias nos campos de pastoreio, as ribeiras verdejantes de águas e plantas, etc.).
A esperança a que se alude no poema/canção “Kor di Fodjada” é, pois, a esperança no regresso a um tempo, que é um tempo sobretudo climatérico e meteorológico, o tempo próprio da estação das chuvas (o mais que almejado tempo das as-águas - ou das azáguas, em registo grafado de forma mais crioulizada), em que o lavrador podia e contava colher em conformada, resignada e beatífica felicidade os frutos do seu labor, porque a terra ainda não sofria tão atrozmente as agora muito regulares agruras das estiagens e das secas mais recentes, se bem que sem as grandes mortandades de um passado que persistiu e se alongou até à década de quarenta do século XX.
Na verdade, tudo parece ter definitivamente mudado a partir da chamada catástrofe ecológica de 1968, abrangente, aliás, não só das ilhas de Cabo Verde (o nosso Sahel insular), mas de todo o Sahel oeste-africano e das suas zonas limítrofes semidesérticas do Corno de África e do Leste de África, na Etiópia, no Sudão, na Somália, e marcada por imensas e catastróficas carências e penúrias alimentares provocadas por estiagens e grandes e fulminantes secas, alongadas no tempo, e que, a partir de então, tornaram-se regulares e quase permanentes, em vez de intermitentes, como eram num passado mais longínquo.
Dito de outro modo: ao longo da nossa História, foram-se encurtando cada vez mais os lapsos de tempo entre a ocorrência das as-secas (na feliz expressão inventada pelo romancista neo-claridoso de tendência estético-ideológica nova-largadista Onésimo Silveira), tornando-se assim a ocorrência de chuvas e de boas as-águas (ou azáguas) a excepção climatérica, em vez de serem a regra ecológica com excepcional e, eventualmente, intermitente ocorrência das as-secas.
Por outro lado, e num contexto ecológico em que as boas as-águas eram a regra predominante da vida agrícola, no “Poema de Amanhã”, de António Nunes, a esperança é de mudança total de paradigmas para o advento de amanhãs outros, realmente cantantes, para quem lavra o solo com o suor do seu rosto, sem todavia poder colher na sua inteireza os frutos do seu labor.
Primeiramente, de paradigmas político-culturais, económico-sociais e societais (“essas terras que se estendem (….) serão nossas”). Neste item, é interessante a alusão do poema de Kaká Barboza a um lavrador “sem patrão”, certamente convicto da oportunidade política e social de uma reforma agrária conduzida segundo o princípio revolucionário “a terra a quem a trabalha”, tal como constante dos escritos de Amílcar Cabral sobre futuras mudanças sociais a haver no progressista e socializante Cabo Verde-pós-colonial e veementemente ilustrado no poema “Labrador di Kanpu Largu”, de Emanuel Braga Tavares, talvez o mais paradigmático dos poemas caboverdianos, ademais escrito em crioulo, sobre a premente necessidade da reforma agrária para a emancipação social do camponês.
E depois, e além da mudança de paradigmas político-sociais, propugna-se no profético poema de António Nunes uma mudança radical e visível de paradigmas técnicos e de gestão (“águas correndo por levadas enormes”), susceptíveis de conduzir a uma verdadeira revolução tecnológica para uma melhoria substancial da produtividade agrícola e um aumento da produção nos campos agrícolas de Cabo Verde, como, aliás, num recente passado pós-colonial pretenderam os arautos da reforma agrária e, em tempos ainda mais recentes, quiseram os defensores das muitas virtudes das barragens e de outros símbolos de assinaláveis mudanças técnicas no relacionamento dos caboverdianos com a confrangedora e impenitente escassez da água com vista a garantir a segurança alimentar e o abastecimento dos mercados, incluindo os mais virados para o turismo, enfim, para a dinamização e a optimização do agro-negócio caboverdiano.
Ao mesmo tempo que exalta o homem caboverdiano de Santiago inserido na sua multissecular História, o poeta faz incursões específicas a determinadas ilhas com as quais o autor mantém fortes afinidades, designadamente à ilha de S. Vicente (onde nasceu e, na idade adulta, fez a tropa, tornou-se sindicalista revolucionário e viveu por algum tempo, e em cuja variante escreve os poemas “Un puéma pa Lorense”, “Na funde d´nos tude” e “Vistu pa Mágda y Mark”), e à ilha do Fogo (de onde são naturais os seus pais e em cuja variante do crioulo, aliás, muito próxima da variante-matriz de Santiago, escreve o poema “Ki nporta-m la”, de apego telúrico à terra-mãe em face de desafios vários, quais sejam a inelutável passagem do tempo e os seus efeitos corrosivos sobre a robustez e pujança físicas do sujeito poético, a atracção por outros mundos alheios, repletos de beleza e riqueza, mas onde o sujeito poético se sente estranho, a constante reiteração desse mesmo apego telúrico ao amado chão das ilhas (“Mi gó!/ ku bu fra/ku frádu fra/ô nton mundu fra (...) Ki nporta-m la/dixa ténpu koré/ta galopiâ suma kabalu/dixa mundu andâ dizandâ/ku volta sima e krê/Má mi N ta fika li/na nha txon di sekura/di natureza sobérbu/ta djangrabí ku ténpu/na murmuransu-l mar (…) Li sin!/baxu´l mi!/baxu´l nha sónbra/baxu´l nha dôs pé finkadu/sta un txon di stória/ki kunsa inda ka kabâ/un txon ki strumâ konxénxa firmi/na fidjus diklaradu/ka só du N fika pa ka kai/é fika ma pa ka kai mé/nen ku disgrasia-l teramoti/nin ki géra satadjâ mundu//Dja fra!/Dja fika fradu/Ki nporta-m la”).
Concomitantemente, o poeta procede à dissecação exaustiva dos males, dos malefícios e dos flagelos sociais, contemporâneos dele e desses entusiasmantes e esperançosos tempos pós-coloniais, alertando o poder constituído para a necessidade da sua tempestiva superação, como no poema “Konjuntura”, similar no seu tom crítico dos males e dilemas dos derradeiros tempos do regime de partido único em Cabo Verde a muitas canções políticas interpretadas pelos célebres conjuntos/bandas musicais praienses “Bulimundo” e “Finason” e substância irreverente e contestatária de muita da poesia produzida por membros da nova geração literária eclodida na segunda metade dos anos oitenta de novecentos:“(…) N krê dexa mensaji grandi/santadu na paredi di ténpu/skrebedu sô ku letra grandi/pa diskonfundi kauberdianu/pa raferénsia di kauberdianu//trabadju txeu pagamentu minguadu/malandru kel sta midjor konpensadu/sen diploma tudu é mal ruspetadu/ami atxadu ma sta ku odju fitxadu//bon ku mariadu ka sta diferensiadu/bon ku dretu ta rezulta kaladu/órdi riju y tratu sta mufinu/si bu ser bo própi bu txomadu trakinu//distinu é largu kaminhu é konplikadu/ mundu dja bira ka oru ka prata/na pozison entri mata o matadu/manbá ki tiru sai-u pa kulatra//É prisizu ntende konjuntura/pa panhadu tudu si pontu fraku/tenpu sta pidi pa ka dexa dura/si ka ligadu kuza ta braku”.
2.2. Mudança Política, Revisionismo Político-Simbólico e Enfrentamento Político-Ideológico, Poético-Musical e Identitário-Cultural
Ocorridas as mudanças políticas de 1990/1991/1992, o autor enfrenta e confronta os novos detentores do poder democraticamente constituído, apontando-lhes as insuficiências e fraquezas, com destaque para as suas derivas revisionistas nos planos político, simbólico-cultural, e não só, como se pode constatar nos poemas “Joana”, “Dimokransa”, “Konjunturadu” e “Pa Konxedu na Dipoimentu”, os últimos do livro Son di ViraSon.
Anote-se que alguns desses poemas, designadamente “Joana” e “Dimokransa”, musicados pelo autor, tornaram-se muito conhecidos além-fronteiras sobretudo pelas vozes respectivamente do astro caboverdiano Zeca di Nha Reinalda e da estrela caboverdiana Mayra Andrade, e, agora circunstancialmente, no que se refere a "Dimokransa", pela voz da cantora brasileira Valéria de Carvalho que, intérprete recente de “Dimokransa”, também vem interpretando com grande brilho e fulgor a canção “Lua”, do também renomado poeta crioulógrafo, compositor e cantautor Princezito.
No poema “Joana” são descritas as mudanças políticas que ocorreram por (quase) todo o mundo inteiro, a partir da queda do Muro de Berlim e que permitem também a Joana exprimir-se, pela primeira vez, pela sua própria e singular voz, e tendo o poeta como interlocutor e observador privilegiado: “Joana bu pode papiâ tanbe/dizabri un bokadu ku mi/fitxa koraji bu finka pé/sima sóka binbirin//Odja Alemanha paredi dja kai/anu 2000 sta li ta ben/ ténpu bedju dja bai dja bai/nos tudu sta ti pa manhan//Lesti ku Oesti dja pazigua/dimokrasia di noba vaga (…)”.
Todavia, alerta-se logo, e na mesma estrofe, e nas estrofes seguintes, que os problemas globais da Humanidade e aqueles mais específicos de Cabo Verde permanecem persistentes, não obstante a mundialmente festejada irrupção democrática: “ (…) fómi ku duénsa ta kontinua/anos nu ta fika ta spera azágua//Nhu Pulanpa ka sta mininu/má inda é a ta da si ason di grasa/abo Joana ku sais mininu/un dia´l trabadju ta faze-u falta”.
Sendo global, radical e abrangente, a mudança política no sentido da implantação e da consolidação da democracia política plena é também vista pelo poeta como sinónima de incertezas: “Mundu interu sta na mudansa/ ningen ka sabe di si futuru/nos tudu nu tene bida na balansa/pabia nen nhu rei ka sta suguru”.
O poema conclui com uma estrofe que se reporta a uma efeméride maior ocorrida no período imediatamente antecedente no ano do anúncio da Abertura Política de 19 de Fevereiro de 1990, quiçá prenunciando-a, pois que nos bastidores do partido único (e, de certo modo, nos círculos críticos e oposicionistas internos) era grande e muita a azáfama no sentido dessa mesma abertura política, fracassadas, ou adiadas, que foram as tentativas da chamada abertura à sociedade civil no Congresso de 1988 do partido único, ainda antes da queda do Muro de Berlim: a primeira visita de um Papa (João Paulo II) a Cabo Verde, era Aristides Pereira o Chefe de Estado, Pedro Pires o Chefe do Governo e Dom Paulino Évora o Bispo da Diocese de (Santiago de) Cabo Verde. “Nos tudu es anu nu toma benson/na Jon Palu Sugundu/na misa grandi pa salvason/di tudu pekador di mundu”.
No poema “Dimokransa” intenta-se dissecar e desmistificar, num tom crítico, bastas vezes cáustico e assaz satírico, o novo poder constituído em resultado das mudanças políticas democráticas entretanto ocorridas com as eleições livres e multipartidárias de 13 de Janeiro de 1991 (afinal, bipartidárias entre o PAICV (Partido Africano da Independência de Cabo Verde) e o MpD (Movimento para a Democracia), excluída que fora dessa inédita disputa eleitoral a UCID (União Cabo-Verdiana Independente e Democrática, muito esporadicamente também denominada União Cabo-Verdiana para a Independência e a Democracia), na altura um partido implantado sobretudo na diáspora caboverdiana da Holanda, de Portugal e dos Estados Unidos da América, e que não logrou ser reconhecida pelo Parlamento Caboverdiano como partido histórico, à semelhança do que ocorrera com o antigo partido único, e, ademais, nem sequer conseguiu recolher nas ilhas o número de assinaturas necessárias para a sua legalização). Vencidas com maioria qualificada pela oposição emergente, essa vitória estrondosa e surpreendente permitiu a essa mesma maioria qualificada adoptar uma nova Constituição da República, substituir a bandeira nacional, e um pouco depois, instituir um novo hino nacional.
É esse tom avassaladoramente cáustico que perpassa todo o poema “Dimokransa”, como se pode constatar nos seguintes versos: “Kantadu ma dimokrasia/ma staba sukundidu/ma tudu dja sai na klaru/y nos tudu bira sabidu/kada un ku si mania/fla rodondu bira kuadradu/kada un ku si tioria/poi razon pende di si ladu/Ti Manel bira Man-Bia/Ti Lobu bira Xibinhu/ti flanu ta faze majia/ta poi grogu ta bira vinhu//Mintira é pon di kada dia/verdadi ka sta kontadu/nos tudu nu bira finjidu/ku konbérsu di dimagojia//Vida bira sinplismenti/ konsedju bira ka ta obidu/tudu é águ na balai fradu/rialidadi di oji-en-dia// Maioria sta tudu kontenti/ku avontadi na dimokrasia/fladu fla ka ten simenti/dipos di sabi móre é ka nada/Ingles ben toma si txon/San Fransisku bira más sabi/N kre odja rostu Nhu Djon/ta ri ku si kunpradi//Dja skesedu Pépé Lopi/ba rabuskadu Nhu Diogu Gómi/rasusitadu Nhu Kraveru Lópi/ka ta konxedu Inásia Gomi//Ali ben ténpu ditadu Nhu Naxu/ta bira sima juis di mininu/genti djunta grita abaxu/kabésa ki dja perde tinu”.
Nesse contexto de nítido e desassombrado enfrentamento político-simbólico e tendo como actantes no cenário político-ideológico diferentes, adversas, adversárias e controversas narrativas sobre a História pós-colonial de Cabo Verde, o revisionismo político e simbólico-cultural acima referido é fortemente causticado, como se pode especialmente constatar nos versos “Dja skesedu Pépé Lopi/ba rabuskadu Nhu Diogu Gómi/rasusitadu Nhu Kraveru Lópi/ka ta konxedu Inásia Gomi”, do poema “Dimokransa”.
Por outro lado, são também fortemente alvejadas determinadas práticas políticas, consideradas por muitos protagonistas e observadores, sobretudo os colocados então em nichos identificados da oposição política, como o parlamento, alguns jornais e revistas, círculos intelectuais progressistas e de esquerda, como típicas das derivas autoritárias, ainda que democraticamente legitimadas, dos anos noventa, doravante celebrizados, consoante o lugar da barricada de obsevação política, como década miraculosa, ou, pelo contrário, como década famigerada, de todo o modo, perfazendo o decénio completo durante o qual o MpD (Movimento para a Democracia) se manteve no poder com duas maiorias qualificadas (ademais, reforçada no segundo mandato) e se verificaram dissidências internas que levaram à constituição, sucessivamente, de dois novos partidos políticos, entretanto extintos: na segunda metade do primeiro mandato do MpD, o PCD (Partido da Convergência Democrática), de Eurico Monteiro, Jorge Carlos Fonseca, Daniel Lobo, Arnaldo Silva, Alfredo Teixeira, Jorge Figueiredo, etc., e, na segunda metade do segundo mandato do MpD, o PRD (Partido da Renovação Democrática), de Jacinto Santos, José Luís Livramento, António Espírito Santo, José António dos Reis, Simão Monteiro, Victor Fidalgo, Hélio Sanches, etc..
Tal alvejamento poético ocorre sobretudo, e especialmente, no poema “Konjunturadu”, e de forma inusitadamente virulento e contundente: “Mundu balansa ku palavra mudansa/speransa fika na pó di promésa/kaba ku mama sustenta stravagânsia/pa da-m un pon na ponta nha mésa// (…) Fladu ma povu é maior soberanu/E kre si xefi ku mon maradu/Ómi di lei pensa dja ngana-nu/ Sima ki podu ki ta torna tradu/La na komandu stadu fadigadu/ konbérsu nobu ka ten pa fla/língua ku denti sta mitigadu/ka ten pa nho ki fari pa nha//País verdianu téra kastanhu/Fidjus ninhun ka parse ku pai/Ndjutu di sel bazôfia ku stranhu/Sima djustisa na mon di Xupai/Movimentu sta ku pasu trokadu/Barudju finka na porta´l palásiu/ Bandera é fodja-l pagamentu atrazadu/Dimokrasia só na tabérna d´Orásiu (…) Nu ba pedrera rola penedu/Pa nu ka sirbi di kabalu branku/Kaba konfiansa kaba dinheru/Sa ta falidu ku dinheru na banku (...) Donu panfletu kanba na anonimatu/Bira ta parse ma kau sta mansu/Ku diputadus sima lion na matu/toma sumaru sima patu-gansu//Kada interesi dja forma si ala/Fladu m´é présu di dimokrasia/Odja sabidu sa ta ká ruma mala/Sima ki kau ka tene más sirbintia//Ki sta na moda é nomi d´imigranti/Pa tra proveitu di si boa vontadi/Ken ki odja bai Deus ba si dianti/Si atxa sabi pa ka txora sodadi (..)”. .
Neste poema, e apesar das proclamadas opções políticas pan-africanistas fraternitárias do poeta e não obstante determinadas manifestações culturais, como, por exemplo, o batuco, muito ostracizadas no período colonial, conhecerem uma certa e surpreendente revitalização em razão do seu exaltante renascimento e do seu exultante revigoramento no período pós-independência e da sua assídua utilização nas mais recentes e disputadas campanhas políticas eleitorais, não escapam ao olhar crítico causticante de Kaká Barboza,
Torna-se, pois, muito marcante na poesia constante do livro Son di ViraSon o desassombrado enfrentamento poético-musical e a confrontação político-ideológica contra os recém-chegados detentores do novo poder politico e o seu arsenal de recursos político-simbólicos para aniquilar, ou, pelo menos, para tentar neutralizar o seu tradicional adversário político, o antigo partido único, ou seja, a antiga “força política dirigente da sociedade e do Estado”, nos exactos termos do doravante famigerado artº 4º da Constituição Política da República de Cabo Verde, anteriores à revisão constitucional de Setembro de 1990 que, no mesmo artº 4º reformulado, consagrou de jure o multipartidarismo político, aliás, existente de facto desde a Abertura Política de 19 de Fevereiro de 1990, o direito à existência de uma oposição democrática e a possibilidade de alternância democrática dos titulares do poder político.
Como é sabido, durante todos os anos noventa do século XX, o antigo partido único viu-se enredado numa longa e desgastante, se bem que também produtiva, porque renovadora, travessia do deserto, assistindo quase impotente aos vários episódios da mudança então em curso acelerado, quase frenético, e, para muitos, de natureza despótica (mesmo se antecedida e legitimada por uma larga maioria nas urnas) e consumada, como já foi dito, em modos assaz autoritários.
Paradigmática desse radical processo de alteração das bases essenciais da vida política, económica e social, isto é, da revolução pacífica então em curso de concretização no arquipélago caboverdiano, nas palavras de Carlos Veiga, o então líder carismático do MpD e primeiro Primeiro-Ministro da Segunda República caboverdiana, então em processo de implantação nesses, por todos os motivos possíveis e (in)imagináveis, preciosos e inesquecíveis anos noventa do século XX, foi a substituição dos símbolos nacionais trazidos da luta pela independência e pela soberania políticas de Cabo Verde e ilustrativos do pan-africanismo emancipatório que sustentou essa mesma luta, com destaque para a bandeira nacional ouro-verde-rubra da estrela negra (mas também do milho e do búzio, que singularizavam e diferenciavam a bandeira nacional do nosso Sahel insular da bandeira nacional do país africano irmão como era considerada a também denominada República-irmã da Guiné-Bissau), tendo sido o outro símbolo essencial da emancipação político-cultural nacional, o hino nacional “Esta é a nossa Pátria Amada”, mantido em vigência durante todo o tempo (mais de quinze anos) de duração do regime de partido único e durante quase todo o primeiro mandato da governação do MpD, por mor de insanáveis divergências entre as duas alas entretanto formadas no seu seio e que viriam a culminar na constituição do PCD (Partido da Convergência Democrática).
Anote-se neste contexto que, depois de, num quadro unitário inspirado e moldado no ideário pan-africanista de libertação total da opressão colonial e de progressiva unificação do nosso continente, a África-Mãe, ter sido hino do movimento de libertação (bi)nacional, o PAIGC, o mesmo hino nacional, cuja letra é geral e consensualmente atribuída à autoria do próprio Amílcar Cabral, foi partilhado com a acima referida República-irmã da Guiné-Bissau, mesmo depois da falência pós-colonial do projecto de união orgânica entre os Estados soberanos da Guiné-Bissau e de Cabo Verde e, como já referido, até alguns anos depois da aprovação da Constituição Política de 1992.
Constituição Política de 1992, note-se bem, material e formalmente nova, porque aprovada mediante a utilização dos processos de revisão total (em termos práticos e reais, equivalente à revogação e à substituição) da Constituição Política de 1980 (já antes revista, extraordinariamente, em 1988, para acolher a liberalização da política económica do regime de partido único e consubstanciada na chamada extroversão da economia caboverdiana, e, em
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