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A imortalidade em tempos de pandemia. Apontamentos avulsos de um confinado por mor da vigente situação de calamidade pública sanitária
Cultura

A imortalidade em tempos de pandemia. Apontamentos avulsos de um confinado por mor da vigente situação de calamidade pública sanitária

SÉTIMAS E PRÉ-DERRADEIRAS ANOTAÇÕES SOBRE A DIFERENCIADA POSTURA LINGUÍSTICA E IDIOMÁTICA DE UM CERTO, DETERMINADO E POTENTE TRIUNVIRATO POLÍTICO PÓS-COLONIAL E DA COGITADA HIPÓTESE DE O PRÉMIO CAMÕES 2018, O CABOVERDIANO GERMANO ALMEIDA, SE TORNAR FINALMENTE UM ESCRITOR BILINGUE, EM LÍNGUA PORTUGUESA E EM IDIOMA CABOVERDIANO, ENTREMEADAS DE ALGUNS DECISIVOS MONÓLOGOS INTERIORES E ESPORÁDICOS E TALVEZ (IN)CONVENIENTES, MAS MUITO CONVINCENTES EXCURSOS À ESQUECIDA, IGNORADA E MAL-CONTADA HISTÓRIA DAS NOSSAS ILHAS SAHELIANAS, OUTRORA ABANDONADAS NO MÉDIO ATLÂNTICO                                                    

      

                                              

SECÇÃO TERCEIRA

GERMANO ALMEIDA, ESCRITOR CABOVERDIANO BILINGUE EM LÍNGUA PORTUGUESA E NO IDIOMA CRIOULO?

1. O TURISMO, A PANDEMIA E A SUBVERSÃO DA VARIANTE DA BOAVISTA DO IDIOMA CRIOULO DO POVO DAS ILHAS E DIÁSPORAS

Decorresse tudo na sua ilha fantástica, o crioulo predominante do Germano Almeida escritor bilingue seria certamente o crioulo da infância dele, o idioma crioulo da sua ilha da Boavista, ele que, segundo confidenciou a um jornal português, e tal como dantes Aristides Pereira, em casa só falava em português com o pai claro severíssimo, como competia ao legítimo lusodescendente que ele era na verdade (mesmo se de segunda geração ou uma outra sequente geração qualquer, por isso, por todos considerado um branco caboverdiano), mas não português metropolitano, como muitos ainda persistem em acreditar e propalar por aí, jurando convictamente que o pai dele era natural de Portugal (antigamente denominado Portugal continental, para o distinguir dos outros dois Portugais, o adjacente, integrado pelos Açores e pela Madeira, e a que as elites caboverdianas de antanho tanto ambicionaram pertencer, e o ultramarimo ou imperial, das colónias/províncias africanas, da Índia portuguesa, de Macau e de Timor, e que justificava o slogan imperial Portugal pluricontinental e multirracial, de Minho a Timor).

   Aproveita-se pois a oportunidade para de novo afirmar, e de forma definitiva e peremptória, que não corresponde à verdade que o pai dele era português, ou, melhor, metropolitano, pois que portugueses éramos todos os nascidos no império colonial português, sobretudo os considerados e tidos por civilizados ou evoluídos, como os caboverdianos, os santomenses, os goeses bem como os assinalados como assimilados de Angola, de Moçambique e da Guiné dita portuguesa. O objectivo desses rumores sobre a sua suposta ascendência directa lusa é claríssimo: desprestigiar e desvirtuar o Prémio Camões, alegando e argumentando que os únicos escritores africanos a quem, até agora, foi outorgado esse ambicionado Prémio quando finalmente chegasse a vez geo-estratégico-cultural dos respectivos países eram brancos ou, então, mestiços descendentes directos de portugueses ex-metropolitanos, isto é, verdadeiros e autênticos lusodescendentes.

     Ora bem, e como é sabido e notório, o Prémio Camões foi-lhe atribuído com toda a justiça, a ele, o romancista e cronista caboverdiano Germano da Cruz Almeida, filho legítimo de um branco caboverdiano e de uma preta caboverdiana, um dos raros escritores caboverdianos com chancela certa de uma prestigiada editora portuguesa, a Editorial Caminho, de Lisboa, integrante do poderoso império editorial do Grupo Leya, com base e fundamento unicamente no mérito da imensa obra que tem produzido, superando já em quantidade o prolífico e bem cotado romancista, contista, ensaísta e cronista Henrique Teixeira de Sousa, igualando o polígrafo bilingue e autor de romances, de livros de poesia, de contos, de entrevistas, ensaios e reportagens, Danny Spínola, faltando todavia chegar aos distantes e nada diletantes calcanhares do prolixo antropólogo e professor universitário João Lopes, Filho, que parece ter cada vez mais prazer e apetência em fazer-se editar em livro, se bem que laborando por vezes em seara alheia, assim logrando, até, ganhar prémios literários de grande valor pecuniário, como aconteceu com o desde há algum tempo pouco prestigiante prémio sonangol (por isso, escrito, aqui e agora, e em nítido sinal de protesto, assim mesmo, com letras minúsculas!).

   Mas, infelizmente, a ilha fantástica da sua infância foi totalmente subvertida e descaracterizada pelo turismo e pela avalanche não só de turistas (diga-se em abono da verdade que muito menos perniciosos do que os demais estrangeiros e forasteiros em tudo o que diz respeito ao ordenamento do território, à preservação do património arquitectónico e à salvaguarda das tradições culturais da sua ilha fantástica, pois que, independentemente e muito antes das coercivas exigências e das obrigações cívicas de quarentena hoteleira a que estão sujeitos os infectados, assintomáticos ou não, pelo novo coronavírus (sars-cov-2) e pela covid-19 por mor da actual e totalmente imprevista situação viral de pandemia e emergência sanitária, permanecem, durante quase todo o tempo do seu veraneio na ilha, estritamente confinados dentro dos hotéis a consumir, o máximo possível, as delícias todas do all included), mas também, no seu encalço e sobretudo, de trabalhadores da Costa de África vizinha, da ilha de Santiago, da ilha de Santo Antão, das ilhas todas do sotavento e do barlavento caboverdianos, todos sem excepção consumados peritos na disseminação de miseráveis e pouco salubres bairros de barracas…

     O turismo é que está a dar…

     Estava a dar. Acabou-se, foram-se todos embora com a chegada da pandemia.

     A pandemia levou tudo e todos, incluindo os turistas e o seu tão contestado pacote turístico tudo incluído.

     Todos não. Ficaram os trabalhadores negro-africanos continentais, invariavelmente chamados manjacos, os vadios pretos e castanho-escuros (por vezes de cabelos lisos finos), os maienses (também pretos e castanho-escuros, por isso, amiúde confundidos com os vadios) e os sampalhudos das outras ilhas todas (às vezes castanhos-escuros, as mais das vezes castanho-claros e mestiços brancaranas, por vezes de cabelos crespos), todos devidamente acantonados em quarentena colectiva no meio da rua dos seus inextirpáveis e inextrincáveis bairros de barracas.

   E vêm-me de repente à mente os cáusticos versos, constantes do mais recente livro do escritor José Luís Hopffer Almada, intitulado Germinações e Outras Restituições de Março, versos esses atribuídos, como não podia deixar de ser, ao poeta Erasmo Cabral de Almada, certamente o mais politicamente desassombrado e contundente dos seus quatro nomes literários (ou pseudo-heterónimos, como o próprio poeta faz questão de sublinhar) para a escrita da poesia, invectivando o modelo de turismo que vem sendo desenvolvido ao longo destes últimos anos nas ilhas do Sal e da Boavista, e os seus inevitáveis bairros de barracas dos trabalhadores que edificaram os hotéis de luxo onde se alojam os turistas servidos por outros moradores desses mesmos bairros de barracas, e a especulação imobiliária com os terrenos onde foram e continuam a ser construídos esses mesmos hotéis: “E tragam também/os revisitados historiais/das ilhas turísticas/ora proclamadas urbi& orbe/como os verdadeiros motores/do desenvolvimento acelerado/do nosso país-arquipélago/e os remodelados curricula vitae/da sua jovem e impetuosa/da sua bonita prole feminina/os seus dedos ágeis/os seus doces enredos/indagando sempre curiosos/demandando por vezes furiosos/pelas aventuras reiteradamente/prometidas e não realizadas/pelas criaturas endinheiradas/que assolam as paisagens/e os seus panoramas mais rebuscados/ e os seus mais interessantes miradouros/e lotam/com novos e sobressaltados presságios/o ofegante coração e a alma atónita/das velhas e decrépitas povoações/atormentadas pelo aumento vertiginoso do custo de vida/atemorizadas pelo suposto e insuperável cerco/de problemáticos e miseráveis bairros degradados/de trabalhadores negros continentais clandestinos/e de migrantes das ilhas nossas escarpadas/outrora habitualmente chamadas agrícolas/quando não irremediavelmente desérticas/e de há muito requalificadas e dotadas/de reconhecidos e grandiloquentes pergaminhos/portuários aeroportuários e carnavalescos/e inundam de inéditos e perturbadores pressentimentos/a tradicional pacatez dos antigos habitantes alegadamente assediados e sitiados/ pelos recentemente arribados imigrantes negros continentais animistas e muçulmanos/os assiduamente vituperados vendedores ambulantes/de estatuetas africanas e outras figurações/de animais exóticos ferozes e outras bugigangas/ confeccionadas em madeira ou em baratas imitações/ou simulacros de marfim e de outros materiais preciosos/óbvia e recorrentemente desqualificados/e extensamente denegridos como Mandjacos/e muito requeridos e solicitados/pelos especuladores imobiliários/e por outros sagazes forasteiros/brancos ocidentais cosmopolitas/os recorrentemente louvados expatriados/óbvia e excelsamente Europeus e Ocidentais/pelos seus muitos e diversificados expedientes/ devidamente encobertos por zelosos advogados/notários directores-gerais antigos governantes/actuais e poderosos ministros e secretários de estado/e outros bem-remunerados e outros bem-aventurados/especialistas no (des)velamento dos prazos/e de outros enigmas processuais da usucapião/e de outros muitos mistérios da lei dos solos/ devidamente resguardados devidamente acautelados/ devidamente precavidos devidamente garantidos/na opacidade dos seus incontáveis e muito lucrativos afazeres/no sigilo dos seus sempre compensadores e obscuros negócios// fundeados entre os pilares dos viadutos e das novas pontes/sobre o alcatrão das novíssimas auto-estradas e vias rápidas/nas pistas asfaltadas dos novos aeródromos e heliportos/nas pistas iluminadas dos novos aeroportos internacionais/sob os molhes dos remodelados portos e cais acostáveis e de outros auspiciosos sinais e marcos do cluster do mar/nos túneis cavados nas rochosas entranhas das montanhas/nas modernas tecnologias off-shore de depósito/de transferência de trânsito de investimento de tráfico/e de lavagem de capitais e de dinheiro sujo/estranhando-se com a satisfação/dos assaltantes e dos bandos de thugs/em razão da escuridão das ruas/e da pacata rotina das populações/desde há muito obrigadas e habituadas/aos sistemáticos e prolongados apagões/da empresa nacional de electricidade (…)”.

   Formidável e assertiva causticação poética do que se vinha passando até há bem pouco tempo com os negócios à volta do turismo nas nossas ilhas!

Esse mesmo turismo que até bem pouco antes do actual surto pandémico atingia 25% do PIB nacional!

     Agora, nestes insanos e insólitos tempos de pandemia do novo coronavírus (sars-cov-2) e da covid-19, estamos todos cerceados nos mínimos movimentos e quotidianamente apoquentados nos nossos direitos, liberdades e garantias fundamentais pelo estado de sítio sanitário e reduzidos ao estado de isolamento social, e para muitos, ao estatuto de indigência profiláctica, em casa pelo confinamento domiciliário, na ilha-irmã, tão longe da minha sitiada ilha fantástica, pelo cordão sanitário chamado cerca sanitária a lembrar a velha e antiga Boavista e os seus currais de burros selvagens apanhados em contravenção de invasão de propriedade alheia e, por isso, capturados e aprisionados em cercas denominados exactamente currais e a que em Ponta-Belém, na cidade da Praia, costumam chamar quintais de burros.

2. A APOSTA NO SEGURO E A DESISTÊNCIA DA ESCRITA NO IDIOMA CRIOULO POR MOR DA TORRE DE BABEL QUE INVADIU E INUNDOU DE NEGRUME A ILHA DA BOAVISTA E DO RACISMO (OU DO ANTI-RACISMO) PRÓ-NEGRO AFRICANO DO NOVO CORONAVÍRUS (SARS-COV-2) E DA COVID-19

   O melhor mesmo é apostar no seguro.

     Nada, pois, de escrita em idioma crioulo. Com tantos crioulos, incluindo o vadio, e o da Guiné-Bissau, e o da Casamança, e algum crioulo forro da ilha de São Tomé, e algum crioulo caboverdiano da ilha do Príncipe, devidamente contaminado de lingué (antigamente chamado pelo detestado nome monké), a rondar a minha ilha fantástica, por vezes em imperceptível circulação através da mera fala, tal qual o traiçoeiro novo coronavírus (sars-cov-2), nem saberia escrever no doce e arenoso crioulo da minha antiga ilha, agora multimodamente infectado por essa Babel de crioulos e línguas negro-africanas, muçulmanas, animistas, feiticeiras, enfeitiçadas, enfeitiçando e encantando, tais bruxos, jambacosses e mestres curandeiros tradicionais, com novas misturas, mixórdias e contínuas interferências e injecções virais o antigo e precatado crioulo da minha ilha fantástica, agora, quiçá, em processo de rápido declínio e, quem sabe, de inevitável extinção num futuro que, infelizmente, se antevê não muito longínquo. Teria sido igualmente assim naqueles tempos escravocratas dos primórdios do povoamento de Cabo Verde e dos inícios da pastorícia na ilha da Boavista por parte de escravos negros e mulatos de gado caprino e de gado asinino (o gado caraculo foi sempre uma anestesiante miragem), ressalvadas as devidas diferenças entre o trabalho cativo coercivo, forçado e não pago, sempre sujeito a infinitas humilhações e atrozes castigos corporais no tronco, no pelourinho, em qualquer sítio que apetecesse ao senhor todo-poderoso, e o trabalho mal pago dos trabalhadores imigrantes negros continentais muçulmanos animistas manjacos e equiparados vadios bravos de fora (ou será que se deve pronunciar vadios vravos em sotaque aportuguesado, como é reconhecidamente do meu timbre lusófilo absorvedor e legitimador da oralidade crioula)?

     O certo é que, impolutos moradores e sedentários habitantes da sujidade, da precariedade e da promiscuidade das barracas do bairro agora baptizado com o auspicioso nome Bairro da Boa Esperança (ou talvez seja agoirento o nome? Haverá má esperança?), serão eles, e as respectivas famílias confinadas amiúde no olho da rua, certamente as vítimas predilectas da disseminação agora declarada comunitária do novo coronavírus (sars-cov-2) e da covid-19. Melhor teria sido terem ficado nas suas precárias casas, cabanas, cubatas, palhotas, funcos e quejandos, dos confins do seu tórrido continente e do inóspito e montanhoso interior da sua ilha, onde inexplicavelmente a covid-19 não tem feito tanto das suas e causado tantos estragos, como em outras áreas do mundo, sobretudo do mundo dito ocidental, como se tem visto com genuíno e terrífico horror nalguns países das Europas e das Américas todas.

   Será racista (ou anti-racista) pró-negro o novo coronavírus (sars-cov-2) ao eleger, quiçá pela primeira vez na História da Humanidade, como suas vítimas mortais predilectas e seus preferenciais alvos de contaminação os brancos ocidentais (das várias Europas e das suas descendências expandidas e expatriadas pelo mundo, nos Estados Unidos da América, no Canadá, na Austrália, mas, estranhamente, não na Nova Zelândia, nos países da América Central e da América do Sul com as suas maiorias e minorias brancas genuína e, por vezes, escassamente latinas, nos países das Caraíbas e na África do Sul, com as suas poderosas minorias caucasianas) e os seus vizinhos racialmente equiparado aos brancos da Europa do Sul nos países das suas parentelas semitas, persas e das raças indo-europeias do Norte de África, do Médio Oriente e de outras partes mais orientais do mundo, com excepção dos países e espaços territoriais ocupados e habitados por populações genuinamente asiáticas, tais, por exemplo, a China, o Japão, as duas Coreias, o Vietnam? Estará o novo coronavírus (sars-cov-2) a tentar imitar os estragos feitos pelo vírus do mosquito aedes aegypti que, nos primórdios da libertação do hemisfério ocidental americano da subjugação europeia, disseminou a febre-amarela entre as hostes dos soldados e dos oficiais gauleses invasoras da ilha de Santo Domingo, a antiga jóia da coroa escravocrata da França, nessa altura território livre das Caraíbas liderado por Toussaint Louverture e prestes a ser renomeada Haiti e tornar-se a segunda República de todas as Américas depois dos Estados Unidos, a primeira República de toda a América Latina e a primeira República negra do mundo todo, dizimando as tropas napoleónicas e obrigando o Imperador francês a vender por tuta e mea o território do Quebeque, tornado inútil do ponto de vista geoestratégico devido à perda da antiga metade gaulesa da ilha de Santo Domingo, e, desta forma insólita, fazendo duplicar o território dos nascentes Estados Unidos da América, a nova potência mundial emergente nos finais do século XIX?

     Mas, não! Não pode o novo coronavírus (sars-cov-2) ser racista (ou anti-racista) pró-negro, ou, de outro modo, pró-qualquer gente de cor, em geral, pois que nos Estados Unidos da América são os negros, os chicanos, os hispânicos e outros integrantes das minorias exploradas, excluídas, discriminadas e escuras (escuras na visão, é claro, dos descendentes brancos loiros, protestantes, católicos ou evangélicos e anglo-saxónicos, germânicos ou escandinavos do antigos colonos europeus) quem mais tem morrido de covid-19.

   No caso dos negros americanos, talvez venha ocorrendo um número também impressionante de mortes por covid-19 porque, na verdade, os mesmos não podem ser considerados como autênticos e verdadeiros negros, pretos retintos irrefutáveis, comme il faut, sendo, afinal e em grande medida, mestiços forçados, por vezes disfarçados, frutos do longo e trágico historial de violações praticadas pelos senhores brancos contra as mulheres negras escravizadas no contexto opressor de sociedades escravocratas, falocratas, patriarcais e racializadas. Mais um vil genocídio (desta feita direccionada de forma premeditada contra a cor retintamente afro-negra) a acrescer a tantos outros genocídios, morticínios e vilezas mais, localizados num passado não necessariamente tão remoto e esquecido assim.

     É exactamente por isso que os afrodescendentes norte-americanos deixaram de autodenominar-se negros americanos para passarem a identificar-se como afro-americanos, com isso, querendo referir-se a uma comunidade étnico-cultural de origem predominantemente afro-negra, mais precisamente da África negra subsahariana, comunidade essa fortemente condicionada no seu devir existencial, durante toda a sua dolorosa, trágica e heróica história, pela racialização determinada pela colour line segregacionista e pelo forte assimilacionismo cultural wasp (white, anglo-saxon and protestant) da sociedade norte-americana, paralelos e concomitantes com o nulo reconhecimento da mestiçagem racial por parte dessa mesma sociedade supremacista branca norte-americana, mesmo daquela miscigenação fenotípica ocorrida no período escravocrata sob coerção e forte e indizível humilhação das suas vítimas, e de que são visíveis portadores e que, por vezes, fazem questão de vincar nas suas relações entre eles, também amiúde contaminada pela hierarquizante diferenciação entre os mais claros e os mais escuros (tal como, aliás, em Cabo Verde e na generalidade das comunidades de génese crioula). Tenha-se outrossim em consideração que muitos desses afro-americanos até podem ser confundidos com brancos mediterrânicos, judeus sefarditas, árabes, indianos e outros orientais, desde que pendendo a sua epiderme e os seus outros traços para um tipo humano mais expressivamente moreno. Lembram-se das atribulações do professor universitário do romance A Mancha Humana, do escritor norte-americano Philip Roth, personagem essa que, renegando a sua comunidade afro-americana de origem e a própria mãe, passou a fazer-se passar por judeu (imaginem!) russo, vindo a ser acusado, por ironia da história, de racismo por duas estudantes negras, exactamente por ter usado em relação a elas um epíteto e uma expressão aparentemente inócuos, mas, pelos vistos, clara e ostensivamente politicamente incorrectos e considerados de teor racista, porque alegadamente utilizados com o subliminar intuito de as denegrir?

     Facto é que na ilha fantástica, e depois do macabro pioneirismo do caso turístico importado denominado do paciente inglês, infectaram-se mais manjacos e vadios (presumidos mais escuros) do que naturais da ilha e demais sampalhudos (presumidos mais claros).

   É sabido que, na ilha de Santiago, os mais pobres, precários e vulneráveis, por isso, tidos desde logo por mais propensos a serem atingidos pela doença da covid-19, são quase sempre mais escuros. É o que se vê a olho nu quando se visita os bairros de barracas, casebres e outras habitações precárias da cidade da Praia, também chamados bairros problemáticos ou de génese clandestina, como Safende, Ponta de Água, Achada Grande Trás, Tira-Chapéu, Ladeira (ou Embaixada) dos Sampalhudos, sem falar de Chechénia, Jamaica (parece que Jamaica é marca registada para topónimos dos bairros degradados de todas as cidades do mundo, menos do próprio país caribenho chamado Jamaica!)…

   Mas, voilá, mesmo sendo castanho-escuros, sofrem do mesmo síndroma de mestiçagem dos negros americanos, sendo que esse chamado síndroma da mulatitude, isto é, da interiorizada crença na simultânea, concomitante e indissolúvel mestiçagem cultural e miscigenação racial (mesmo que forçada), é assumido com notório e sonante orgulho tanto pelos mestiços das nossas ilhas sahelianas como também pelos pretos caboverdianos, tanto de Sotavento, como também, e sobretudo, de Barlavento, tendo sido até amplamente teorizado por João Lopes, reconhecido fundador do ensaísmo antropológico claridoso, em dois marcantes ensaios de teor colonial-marxizante e intitulados simples e modestamente "Apontamento".

       Certamente que andam a misturar, e a amalgamar, e a confundir questões étnico-culturais, como a evidente e inequívoca, a consensual e (quase) unanimemente aceite crioulidade da cultura e da língua caboverdianas, em todas as suas variações e variantes insulares, sem excepção de qualquer ilha ou ilhéu, mas todas consabidamente originadas primacialmente na Cidade Velha, a cidade-ribeiragrande berço da nação caboverdiana, com questões étnico-raciais, como pensar e querer sustentar que todos os mestiços culturais crioulos são necessariamente mulatos, como se pode inferir em certa medida dos supra-referenciados ensaios de João Lopes e da famosa expressão-título “O Mundo que o Mulato Criou”, da autoria de quem, em boa e acertadíssima hora, transfigurou o realmente existente loiro marceneiro santantonense Ambrósio Lopes, esse mesmo do protesto contra o desemprego, a carestia e a fome nas ruas da Morada da cidade do Mindelo, no atribulado ano de 1934, no mulato Ambrósio, capitão das massas revoltadas e insurrectas com a bandeira negra da fome erguida, marchando nas ruas de todas as cidades e vilas do arquipélago caboverdiano, do célebre poema homónimo de Gabriel Mariano.

     Quando acima afirmamos a pan-arquipelágica extensão da crioulidade da cultura e da língua caboverdianas, sem excepção de qualquer ilha ou ilhéu, relembrando-nos nesse ponto da mais uma vez certeira expressão de Gabriel Mariano em como Cabo Verde seria, a um tempo, um arquipélago e um continente culturais, quisemos referir-nos mesmo à habitualmente despovoada Santa Luzia, todavia durante algum tempo habitada por um casal de pescadores e durante o ano temporariamente ocupada por pescadores idos das ilhas vizinhas, e aos despovoados ilhéus Branco, Rombo, de Cima, Raso, Rabo de Junco, Grande, Laje Branca, de Sal Rei, do Baluarte, e também ao Ilhéu dos Pássaros, com o seu farol sempre em estado de alerta na bela e memorável Baía defronte da cidade do Mindelo, do seu Porto Grande e do icónico Monte Cara, e igualmente ao ilhéu de Santa Maria, localizado a poucos metros da praia grande da Gamboa nos baixios da cidade da Praia, agora transfigurando-se de antigo sítio de encarceramento de escravos fujões, de antigo lugar de quarentena dos doentes de lepra, de intermitente refúgio e porto de abrigo de pescadores e de sazonal acampamento de jovens aventureiros e veraneantes em periódicas provas de natação, em luminoso espaço turístico de ócio e de jogo, comprado a peso de ouro, e porta de entrada com trajes orientais e internacionais na cosmopolita cidade da Praia de Santa Maria da Esperança e da Vitória, muito mais popularmente conhecida por Praia-Maria, desde que Codé di Dona utilizou, numa sua célebre canção, a expressão Praia-Maria é sábi, más é prigu.

3. DA MELHOR FORMA DE SE PRONUNCIAR PALAVRAS DE ORIGEM CRIOULA (OU, SE SE QUISER, CRIOULISMOS CABOVERDIANOS), QUANDO SE FALA, SE CONVERSA E SE ESCREVE EM LÍNGUA PORTUGUESA  

   A propósito, confesso que me é sempre difícil pronunciar os termos Tchetchénia, tchacina, mandjaco, badio, badio brabo, sampadjudo, djambacôs, assim escritas com tch, dj e b, em lugar de ch, j e v…Soam-me demasiado básicos e crioulo fundo, quiçá demasiado alupecados e, sobretudo, demasiado e perigosamente alupecadores, e, já agora, por demais adulteradores do nosso genuíno português, e, assim e por isso, pouco respeitosos da autenticidade dos sons da nossa estimada e nunca por demais admirada e louvada língua oficial e língua comum não só da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa) mas também dos PALOP (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa), língua essa que deve evoluir sim, mas com as letras do seu alfabeto e as suas palavras sempre etimologicamente ancoradas…

   Por isso, quando estou a falar português (notaste o propositado crioulismo caboverdiano?) e tiver que usar essas palavras e expressões idiomáticas, esses tais crioulismos caboverdianos, tornados agora quase indispensáveis na minha escrita de contador de estórias versado nas técnicas cultivadas pelos antigos contadores de estórias da minha ilha fantástica da Boavista, prefiro dizer Chechénia, chacina, manjaco, vadio, vadio bravo (ou será antes vadio vravo?), sampalhudo, jambacosse, e assim por diante. Já assim fazia o pobre e malogrado Xema, lá dos fundos de Fonte Lima de Santa Catarina de Santiago, que, querendo mostrar-se educado e nada vadio vravo, se dirigia ao seu amigo, o já falecido Benny Hopffer, chamando-lhe sempre Senhor Veny.

   Por isso é que penso que em português correcto se deve dizer, por exemplo, cachupa, jagacida, filhôs, batuque, e nunca catchupa, djagacida, fidjôs, batuco, quanto a mais katxupa com tx ou batuku, com kapa e u final, como querem agora o Manuel Veiga e a Dulce Almada Duarte com o novo alfabeto que re-inventaram e a que deram o nome de alupec para significarem alfabeto unificado para a escrita do caboverdiano. Mas, de todo o modo, parece que, desta vez, o Manuel Veiga está completamente inocente e isento de quaisquer responsabilidades e culpas relevantes no que respeita a estas novíssimas letras introduzidas com o alupec na escrita do idioma crioulo. Segundo me contou alguém dos bastidores do Grupo para a Padronização do Alfabeto Unificado do Cabo-verdiano, foi ela, a Dulce Almada Duarte, a inventora (e a consequente colectora dos respectivos louros) do dígrafo tx e a preconizadora do uso generalizado do x e do tx para substituir, e para sempre extirpar do alfabeto caboverdiano, os tradicionais e bem enraizados, os nossos muito queridos e doravante saudosos ch e tch, e com eles irremediavelmente o (e, na sua inelutável companhia, o cedilha), muito conhecidos e usados pelos nossos escrevedores de letras e compositores de mornas, coladeiras, funanás, etc. e também, curiosamente, da preferência do Kaká Barboza do segundo caderno do seu primeiro livro Vinti Xintido Letrado na Kriolo intitulado “Son di Ravuluçan” (atente-se bem no uso da cedilha para escrever, imaginem, a palavra crioula para Revolução!). E assim passámos, e transitámos, quase directamente da eslavização do alfabeto, com os famigerados e mal-aceites chapéus, e, agora com o x e o tx, para a premeditada busca da influência basca no nosso idioma crioulo. Que Deus nos acuda e não queiram os bascos ter as nossas ilhas como santuário e porto de abrigo, mesmo que somente linguísticos...

   Por isso, também discorda-se do que vem dito por Pedro Cardoso no seu famoso e marcante livro Folclore Caboverdeano (aliás, atentamente seguido pelo também foguense Henrique Teixeira de Sousa na transcrição de letras em crioulo de vários géneros musicais caboverdianos), quando, por exemplo, prescreve que, na escrita de palavras em idioma crioulo, deve-se grafar j e pronunciar-se como o j em inglês da palavra James ou da palavra John, isto é, deve-se escrever j e pronunciar-se dj. Discordo em absoluto. Se se escreve com j (jota), é também para se pronunciar o j (jota), em toda a sua plena sonoridade, disso não se tenha dúvidas.

   Coibimo-nos outrossim de nos pronunciarmos sobre a escrita utilizada no livro Mornas-Canções Crioulas, de Eugénio Tavares, editado postumamente por José Osório de Oliveira, por nos parecer excessivo o aportuguesamento etimologizante da escrita das mornas transcritas no mesmo livro. Como se poderia adivinhar que, estando escrito gentes, dever-se-ia pronunciar djentis, tal como fazem as gentes da ilha Brava? Ou que estando escrito ´lha Brava, dever-se-ia pronunciar Dja Braba, que é como chama à sua amada e amorável ilha o bravo povo bravense (na inusitada e inesquecível expressão de Aristides Pereira em visita de trabalho à ilha de Eugénio Tavares)?

   Pelo menos, e felizmente, agora com o alupec, os famigerados e monstruosos chapéus foram definitivamente expulsos da escrita do crioulo e recambiados para os alfabetos das línguas africanas, aos quais na verdade pertencem inteiramente e com toda a legitimidade e para cuja transcrição serão certamente de grande utilidade, como línguas ágrafas que muitas delas eram e ainda permanecem (ou com escassa tradição de escrita no alfabeto latino, porque muitas delas eram já, e desde há muito, escritas com base no alfabeto árabe, como por exemplo o swahili, ou, no alfabeto copta, como, por exemplo, o amárico).

4. DA CONTROVERSA E SEMPRE ASCENDENTE OBRA LINGUÍSTICA DO PROFESSOR DOUTOR MANUEL MONTEIRO VEIGA, DESDE O ALFABETO DO MINDELO ATÉ AO ALUPEC (ALFABETO UNIFICADO PARA A ESCRITA DO CABO-VERDIANO) E À DEFESA DE UM BILINGUISMO CABOVERDIANO EM CONSTRUÇÃO, TAMBÉM DO PONTO DE VISTA CONSTITUCIONAL E JURÍDICO-LEGAL, E DA CORRELATIVA PUGNA PELA NECESSÁRIA, PAULATINA E SEMPRE IRREVERSÍVEL, SE BEM QUE TAMBÉM ASSAZ PRUDENTE DESCONSTRUÇÃO DA PÚBLICA, ESCANDALOSA E CALATIMOSA SITUAÇÃO SOCIOLINGUÍSTICA DA DIGLOSSIA NAS ILHAS DE CABO VERDE

4.1. ALGUMAS CURIOSIDADES MAIS SOBRE UMAS TANTAS E INSÓLITAS LETRAS DO ALFABETO DO MINDELO, E OS SEUS INEVITÁVEIS CHAPÉUS, E UMAS POUCAS LETRAS NOVAS DO ALUPEC

   Já agora, e voltando à remota hipótese de um Germano Almeida romancista bilingue em português e em crioulo, nem sequer se pense em pô-lo a escrever um romance ou outro livro qualquer em alupec como fez o patrício islenho Eutrópio Lima da Cruz em Perkurse de Sul de Ilha bem como em Ta Rondâ Degradasons ma Speransas, o segundo e terceiro romances caboverdianos até agora escritos em idioma crioulo, depois do por alguns considerado famigerado Odju d´Águ (anote-se que aqui com o título escrito segundo as regras do alupec, da segunda edição, e não do alfabeto do mindelo, da primeira edição, de impossível ou muto difícil transcrição) do também para muitos inqualificável Manuel Veiga. Se bem que, segundo se diz, o homem seja dono de um feitio intrinsecamente bondoso (uma boa alma, no fundo) em razão da educação cristã de incondicional amor ao próximo que recebeu no Seminário Maior de São José, sito, desde a sua fundação, como é sabido, na Ponta Temerosa da Cidade da Praia, que, aliás, concluiu com sucesso, tendo depois prosseguido os estudos no Curso Superior de Teologia no Seminário Menor de Coimbra com o expresso intuito de se fazer ordenar padre e espalhar as boas novas dos sempre redentores Evangelhos de Jesus Cristo no seu arquipélago natal, tal como, aliás, ocorreu com Eutrópio Lima da Cruz (curiosamente, um desses Evangelhos viria a ser traduzido anos mais tarde para o idioma crioulo por uma equipa religiosa de tradutores com o auspicioso título Nobidadi Sábi di Jizus). A Revolução dos Cravos do 25 de Abril de 1974 e a emergência à luz do dia das ilhas em efervescência e muito alarido revolucionários da absoluta candência da questão da independência total e imediata de Cabo Verde vieram dar uma volta completa ao destino do jovem aprendiz de padre oriundo da Achada Gomes de Santa Catarina da ilha de Santiago de Cabo Verde e redireccionar em outros sentidos o espírito missionário que já lhe habitava a alma, o coração e o cérebro…

       Na verdade, o que alguns detractores do crioulo consideram inqualificável nessa história toda não é obviamente a afável, estimável, dialogante e indubitavelmente estudiosa pessoa do Manuel Veiga, aliás, um defensor assaz consequente e convincente da duradoura e cada vez mais definitiva coexistência pacífica em terras de Cabo Verde entre o português e o crioulo, mas, claramente, a sua indefectível e incondicional defesa, primeiro, do alfabeto do mindelo e, depois, do alupec, alfabetos que, segundo os mesmos enfurecidos e raivosos detractores do idioma crioulo e do seu defensor-mor, vieram destruir toda a identidade etimológica do dialecto das ilhas (dialecto crioulo, fazem questão de sublinhar!), destroçando, e, parece, que com a intenção de ser para todo o sempre, todos os laços histórico-culturais e filológico-linguísticos desse idioma derivado com a sua língua-mãe, o português (incluindo o arcaico, desembarcado nas ilhas, nos idos do século XV, com os navegadores portugueses e os primeiros povoadores reinóis. Asseveram os mesmos desalentados detractores do idioma crioulo que pior que o alupec só mesmo o famigerado e muito execrável alfabeto do mindelo, também inventado por Manuel Veiga, sempre com a activa cumplicidade da douta, mas por demais controversa africanista Dulce Almada Duarte, do polémico e notoriamente fanático basilectista Tomé Varela da Silva e, nos tempos mais recentes, de Marciano Moreira, um anglófilo “contador de pártis” e propugnador de versões mais acrolectais/mesolectais, urbanas e eruditas, sempre despida de acentos, na escrita da variante de Santiago do idioma crioulo.

     Segundo obstinada opinião, vezes sem conta reiterada, dos furibundos detractores do idioma crioulo, mas também de muitos dos defensores da dignificação e da promoção da escrita da agora comummente denominada língua caboverdiana, da sua co-oficialização plena conjuntamente com o português e da sua correlativa introdução nos vários níveis do sistema do ensino caboverdiano, na sanha de querer outorgar uma identidade única e exclusiva ao alfabeto do idioma crioulo das nossas ilhas e diferenciar completamente a escrita desse mesmo idioma da escrita da língua portuguesa e daquela escrita do idioma crioulo do povo das ilhas e diásporas mais próxima do português e que, sem ser necessariamente etimológica, vem utilizando o alfabeto do português para a escrita da linguagem das ilhas e, por isso, era e continua a ser ainda chamada de escrita tradicional, optou-se por uma base fonético-fonológica em vez da tradicional base etimológica, para a construção do novo alfabeto do mindelo, recheando-o ademais de estranhos diacríticos colocados sobre determinadas consoantes, isto é, uma espécie de acentos circunflexos usados sobre as letras l, n, j, c e z, para assinalar a palatização de certas consoantes e substituir, sem agravo nem apelo, o que os nossos compositores musicais consideram ser os nossos tradicionais e belos dígrafos lh, nh e dj, para além do também belíssimo trígrafo tch. Como é sabido, esses novos diacríticos foram imediatamente desqualificados e sociolinguisticamente degradados pela infamante designação de chapéus pelos seus sempre atentos e impiedosos detractores. Segundo os mesmos detractores, tais opções, claramente inspirados no Alfabeto Africano Internacional, tornaram quase ilegíveis a nova escrita do idioma caboverdiano bem como qualquer livro baseado nessa mesma escrita, como foi o caso de Odju d´Águ. Diz-se por aí que raras foram as pessoas que passaram das dez primeiras páginas de leitura desse primeiro romance escrito em idioma crioulo quando só estava disponível no mercado a primeira edição lavrada e impressa segundo a famigerada e intragável escrita do chamado alfabeto do mindelo.

     Curiosamente, numa primeira versão do chamado alfabeto do mindelo, constante de um artigo assinado por Manuel Veiga e publicado na prestigiada revista África, Literatura, Arte e Cultura, de Manuel Ferreira, escolheu-se a letra c para representar o típico som tch de todas as variantes insulares do crioulo caboverdiano. Infelizmente, logo a seguir e já fora do contexto dos debates e discussões do chamado Colóquio do Mindelo, fez-se a opção definitiva pelo c devidamente encimado e protegido por um acento circunflexo, o que contribui sobremaneira para uma muito maior fúria dos adversários desse alfabeto que assim viam esfumada qualquer hipótese de salvação da letra c mediante a sua manutenção no alfabeto do mindelo, mesmo que para representação de outro som (fonema) diferente do idioma crioulo.

4.2. DA ESCOLHA DO DIALECTO DA ILHA DE SANTIAGO COMO VARIANTE-PADRÃO PARA A ESCRITA DO IDIOMA CABOVERDIANO (AGORA RECORRENTEMENTE DENOMINADA LÍNGUA CABOVERDIANA) E DE COMO AS COISAS EVOLUÍRAM DEPOIS DE ABERTA A CAIXA DE PANDORA DO BAIRRISMO LINGUÍSTICO, COM UM IMPORTANTE COMENTÁRIO SOBRE A DELIBERADA OCULTAÇÃO DO TRABALHO PIONEIRO DE ANTÓNIO DA PAULA BRITO

   Uma das decisões mais importantes e controversas do chamado Colóquio do Mindelo foi a opção pela variante da ilha de Santiago como base para a escrita do idioma caboverdiano. Considerada como a variante-matriz e a variante mais antiga, a partir da qual se desenvolveram todas as outras variantes caboverdianas do idioma crioulo, para além de outros crioulos, incluindo os crioulos da Guiné-Bissau, de Casamança e, muito provavelmente, das ilhas ABC nas Antilhas Holandesas, a variante de Santiago mereceu igualmente a preferência de Baltasar Lopes da Silva que, em múltiplas ocasiões, se pronunciou a esse respeito, justificando a sua preferência pela variante da grande ilha para a construção de um padrão literário no idioma crioulo em razão da completude vocálica do dialecto de Santiago. A preferência de Baltasar Lopes da Silva pela variante de Santiago terá pesado também na opção dos participantes do chamado Colóquio do Mindelo (entre os quais se contava o Professor Augusto Mesquitela Lima, um conceituado professor universitário e antropólogo luso-caboverdiano com vasta obra científica publicada sobre algumas etnias de Angola, designadamente os Kiokos e os Kiakas). Uma outra possível razão pela opção pela variante de Santiago como variante-base para a escrita do idioma crioulo bem como pelo próprio alfabeto do mindelo terá sido o projecto de união orgânica então em curso (assaz retórico e titubeante, é certo!) entre as Repúblicas-irmãs independentes e soberanas da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, governadas pelo mesmo movimento de libertação (bi)nacional no poder e a grande proximidade entre o crioulo de Santiago e o crioulo da Guiné-Bissau, considerando-se até, na senda, aliás, do António Carreira do livro O Crioulo de Cabo Verde-Surto e Expansão, que o primeiro estaria na origem do segundo. A urgência de grafar os crioulos dos dois países-irmãos segundo as mesmas regras seguras de um alfabeto económico, prático e funcional inspirado no Alfabeto Africano Internacional terá ditado sobremaneira a opção pelo alfabeto do mindelo e pelas suas estranhíssimas vestes resguardadas sob omnipresentes chapéus (certamente de chuva e de sol e contra a poeira, dadas as reconhecidas e singulares características climatéricas de ambos os países-irmãos e de cada um deles em particular).

     Embora continuando a adoptar uma base fonético-fonológica para a sua escrita em crioulo, muitos autores, como, por exemplo, Kaká Barboza (por exemplo, do seu primeiro livro Vinti Xintido Letrado na Kriolo, de 1984), José Luís Hopffer C. Almada (por exemplo, do caderno "Ta Madura na Spiga" do segundo volume da sua primeira obra À Sombra do Sol-Seis Cadernos de Poesia, editada em 1990 mas pronta para publicação desde 1987), Euricles Rodrigues (primeiro pseudónimo de Danny Spínola para a escrita literária, por exemplo, da sua primeira obra poética Na Kantar di Sol) e Kaliostro Fidalgo (pseudónimo de Pedro Freire), viriam a rejeitar o alfabeto do mindelo e os seus mal-afamados e pouco estéticos acentos consonânticos, depois de uma inicial e entusiasmada adesão a esse alfabeto, sobretudo por parte destes três últimos, então jovens poetas, continuando, contudo, esse mesmo alfabeto a funcionar como uma espécie de alfabeto oficioso do idioma caboverdiano e com base no qual foram publicados todos os livros em idioma caboverdiano editados pela antiga Direcção-Geral da Cultura, incluindo uma segunda versão oficiosa dos poemas integrantes do livro Vinti Xintido Letrado na Kriolo, de Kaká Barboza, a transcrição das Cantigas de Trabalho, de Oswaldo Osório, a primeira edição do romance Odju d´Águ, a colectânea de contos Natal y Kontus, de T. V. da Silva, e os livros de recolha de tradições orais do Departamento homónimo da mesma Direcção-Geral da Cultura, maioritariamente, se não exclusivamente, organizados e assinados por Tomé Varela da Silva. Atente-se ainda que muitos poemas em crioulo, publicados na revista mindelense Ponto & Vírgula, dirigida por Germano Almeida, Leão Lopes e Rui Figueiredo, seguiram as normas estipuladas para o alfabeto do Mindelo.

     É com base na opção já firmada na prática de escrita e na obra já publicada (quer em livro, quer em revistas literárias) de alguns escritores em idioma caboverdiano que o Fórum para o Ensino Bilingue resolve optar, sob o impulso e por proposta da linguista portuguesa Dulce Pereira (então conhecida por Dulce Fanha), por um alfabeto de base fonético-fonológica e no qual ressalta a opção pelo k(c)apa, a eliminação do cê e do cedilha, a definitiva expurgação dos famigerados chapéus e a escolha dos dígrafos dj, lh, nh, ch e do trígrafo tch para a representação das palatais em lugar das muito inestéticas, pouco operacionais e sociolinguisticamente rejeitadas j com chapéu, l com chapéu, n com chapéu, s com chapéu, z com chapéu e c com chapéu (significando chapéu nestes casos, como já referido e devidamente explicado, a acentuação dessas consoantes com um acento circunflexo, que, num primeiro momento, quiçá de flagrante distracção, foi um acento circunflexo invertido, ainda de mais difícil operacionalização prática e muito menor possibilidade de aceitação sociolinguística por parte das elites letradas do povo das ilhas e diásporas).

     O curioso em toda essa história da temerária e obstinada opção pelo alfabeto do mindelo e dos seus pouco tolerados e, até, detestados e/ou odiados chapéus parece ter sido o desconhecimento ou a ocultação do facto de, nos finais do século XIX, ter sido publicado na prestigiada revista da Sociedade de Geografia de Lisboa um ensaio bilingue (em português e em crioulo), de António da Paula Brito, que, pela primeira vez na história do idioma caboverdiano, disserta com profundo conhecimento de causa sobre a gramática da ilha de Santiago, desvendando as suas regras essenciais, e estabelece um alfabeto para a escrita do mesmo crioulo, recorrendo para tanto, e de forma pioneira, a uma base fonético-fonológica. Pressupondo-se que ao tempo da definitiva fixação do alfabeto do mindelo, o alfabeto proposto por António da Paula Brito não tivesse chegado ainda ao conhecimento de Manuel Veiga, por este ter estudado em Aix-en-Provence, em França, e, logo após a conclusão dos seus estudos de linguística, ter regressado ao país natal e imediatamente iniciado os seus trabalhos de fixação de um alfabeto em moldes radicalmente diferentes dos moldes tradicionais em uso e em curso entre os escritores para a escrita do idioma caboverdiano, o mesmo não se poderá dizer em relação a Eugénio da Paula Tavares, Pedro Monteiro Cardoso, Armando Napoleão Fernandes, Baltasar Lopes da Silva e Maria Dulce de Oliveira Almada (mais tarde, celebrizada como Dulce Almada Duarte). Sendo todos eles autores de importantes escritos literários em idioma crioulo e/ou obras de investigação de vulto sobre o idioma crioulo de Cabo Verde, devendo-se ressaltar o âmbito estritamente académico das obras elaboradas por Baltasar Lopes da Silva e Maria Dulce de Oliveira Almada, dificilmente não teriam tomado contacto com a obra de António da Paula Brito, de inquestionável e pioneira relevância para o estudo do crioulo caboverdiano. Parece que tanto Pedro Monteiro Cardoso e Armando Napoleão Fernandes, como também Baltasar Lopes da Silva, preferiram ignorar e omitir/ocultar pura e simplesmente o decisivo contributo de António da Paula Brito para o conhecimento da gramática do idioma crioulo das nossas ilhas e para a fixação do seu alfabeto com o nítido intuito de vincar a sua preferência por uma escrita do crioulo de base essencialmente etimológica, preferindo, por seu lado, a afro-crioulista e pan-africanista Dulce Almada Duarte optar por um alfabeto de base fonético-fonológica de feições ainda mais radicais e distintas do alfabeto português, como viria a revelar-se, (in)felizmente, o alfabeto do mindelo.

     Na sequência da ampla, mesmo se assaz silenciosa, rejeição sociolinguística do alfabeto do mindelo e de uma activa resistência contra a imposição do denominado crioulo badio (assim dito de forma acintosa e raivosa e com uma muito grande dose de menosprezo!), no quadro da já mais que secular rivalidade entre as cidades da Praia e do Mindelo, desde há muito em renhida disputa pelos melhores atributos da capitalidade e com elas a ilha de Santiago versus o conjunto do Barlavento caboverdiano e, mais raras vezes, o conjunto do Sotavento caboverdiano versus o conjunto do Barlavento caboverdiano, foi-se caminhando para uma compreensão mais descentralizada e interdialectal da questão da escrita do idioma crioulo. É assim que é o próprio Manuel Veiga, o protagonista-mor das questões relacionadas com o crioulo nos tempos mais recentes, a propor que para a introdução do crioulo no sistema do ensino caboverdiano se adoptassem as duas variantes mais importantes do ponto de vista sociolinguístico, designadamente a variante-matriz de Santiago, pelas razões mais do que obvias acima aduzidas, e a variante de São Vicente, mais aceite nas ilhas do Barlavento caboverdiano, funcionando muitas vezes como variante franca entre os originários dessa parte nortenha do arquipélago caboverdiano.

     Ademais e na óptica de Manuel Veiga, deveriam ser priorizadas metodologias e utilizados materiais didáctico-pedagógicos que permitissem aos alunos do Sotavento e do Barlavento caboverdianos aprender tanto a variante de Santiago como a variante de São Vicente, concomitante com um maior quinhão didáctico-pedagógico concedido a cada uma dessas variantes consoante se tratasse do ensino do idioma crioulo no Sotavento do nosso país ou no Barlavento do arquipélago caboverdiano.

   Assinale-se neste contexto que, no seu livro de investigação O Dialecto Crioulo da Ilha de São Nicolau, o estudioso e linguista Eduardo Cardoso tinha já proposto que fosse escolhida a variante do idioma crioulo da ilha de São Nicolau como a variante-base para a escrita da língua caboverdiana, fundamentando essa opção com as características próprias dessa variante na sua matriz mais castiça (isto é, menos contaminada pelo crioulo de São Vicente, ocorrida nos tempos mais recentes da preponderância desta ilha-cidade no ensino liceal. Segundo o estudioso sanicolauense, essa variante mais castiça do idioma crioulo da sua ilha natal combinaria supostamente características das variantes tanto do Sotavento como do Barlavento caboverdianos, ficando assim a meio-caminho entre as duas super-variantes fundamentais do idioma crioulo de Cabo Verde, tal como, aliás, ocorreria com a sua localização geográfica, exactamente no centro do arquipélago caboverdiano.

   Mais tarde, no quadro do Fórum da Praia para a Avaliação da Utilização do ALUPEC durante um Período Experimental de Cinco Anos, evoluir-se-ia para a recomendação da adopção de todas as variantes insulares da língua caboverdiana como sendo susceptíveis e dignas de oficialização no âmbito do processo gradualista de co-oficialização da língua caboverdiana em programática paridade com o português.

     Essa última opção parece-nos assaz realista, na medida em que, sem esquecer o lugar efectivo e cativo da variante-matriz da língua caboverdiana e o importante lugar da variante de São Vicente no panorama linguístico caboverdiano, reserva os devidos papéis às demais variantes num processo de construção inter-dialectal da escrita do idioma crioulo e do seu padrão literário.

     Tanto mais que todas as variantes da língua caboverdiana têm dado o seu devido e necessário contributo para a emergência e a consolidação de uma escrita em língua caboverdiana e, em especial, de uma literatura e de uma ensaística caboverdianas em crioulo, como se pode comprovar com as obras do santantonense Luís Romano, dos sanvicentinos Sérgio Frusoni, B. Lèza, Corsino Fortes, Zizim Figueira e Mário Matos, dos sanicolauenses Gabriel Mariano e Eduardo Cardoso, do salense Canabrava, do foguense Pedro Cardoso, do boavistense Eutrópio Lima da Cruz, do maiense Betú (Adalberto Silva), dos bravenses Eugénio Tavares, João José Nunes, Artur Vieira, Rodrigo Peres, Vuca Pinheiro, entre muitos outros cultores da morna, dos santiaguenses Kaoberdiano Dambará, Emanuel Braga Tavares, Kaká Barboza, Manuel Veiga, Tomé Varela da Silva, Arnaldo França, José Luís Hopffer Almada, Danny Spínola, José Luiz Tavares, Tinudu, Princezito, Eneida Nelly, entre muitos outros autores bilingues literários em crioulo e em português ou monolingues literários em crioulo, anteriormente nomeados de forma expressa no presente texto.

5. DE COMO TUDO SE CONJUGOU EFECTIVAMENTE PARA CONCEDER À ILHA DA BOAVISTA UM LUGAR DESTACADO NA HISTÓRIA DE CABO VERDE, DESDE A HORA INICIAL DO ACHAMENTO ATÉ À ACTUALIDADE DOS NOSSOS DIAS, COM ALGUMA ESPECULAÇÃO DE PERMEIO SOBRE AS PASSADAS ATRIBULAÇÕES E AS MUITAS VARIAÇÕES FUTURAS DOS POSSÍVEIS BENEFICIÁRIOS DO APETECÍVEL E MUITO AMBICIONADO PRÉMIO CAMÕES NOSSO, CABOVERDIANO

     Conhecida essa história toda, e todos os seus por vezes enviesados e acabrunhados trilhos, meandros e sarilhos, e todas as suas, bastas vezes, insondáveis e inexplicáveis sendas, mal se podia imaginar agora um filho da boa, educada e altiva gente da Boavista, toda ela compenetrada discípula do célebre padre, professor, músico e latinista Porfírio Tavares Pereira, experiente nos seus múltiplos e variegados expedientes e afazeres próprios de um sacerdote católico caboverdiano nativo, isto é, devidamente nado, criado e amadurecido nas nossas ilhas, que o patrício de quem agora se fala também foi, e que, não obstante tão valorosas aquisições humanistas e civilizacionais, e tantos e tão merecidos pergaminhos islenhos, resolve seguir as resolutas e temerárias (outros mais cáusticos e maldosos diriam as bizarras e tresloucadas) pisadas de Manuel Veiga e dos seus acólitos nacionalistas africanos e afro-crioulistas, por vezes, como se murmura por aí, também intrépidos arautos de mundivisões estreitas, extremistas, grã-badias e um tanto lusófobas (como, aliás, em tempos coloniais pós-25 de Abril de 1974 que já lá vão, intentara denunciar Teixeira de Sousa, e tendo recidivado em jornais da praça, designadamente no jornal Terra Nova, e em 1989, em Lisboa, no Primeiro Congresso de Escritores de Língua Portuguesa, obteve pronta, esclarecedora e contundente resposta de Manuel Veiga, também presente nesse magno conclave cultural, resposta essa todavia proferida também de forma respeitosa, (re)conhecendo-se, como efectivamente se reconhece, o ensaísta Manuel Veiga como um assumido e público admirador da obra ficcional de Teixeira de Sousa), e publicar dois romances completos, escritos, todos e inteiros, em idioma crioulo e, ainda por cima, ortografados com base no mais puro alupec com k(c)apa e tudo (com k(c)apa e batina, como diria o Mito Elias pensando no Lalaxo Horácio Santos), mas, graças a Deus, sem os execrados e mofinos chapéus.

       Ademais, um portado do apelido da Cruz (de que também tenho a subida e inalienável honra de ser titular, mesmo que não existam entre nós quaisquer laços de parentesco, mesmo que remotos, pelo que nenhum trato entre nós será jamais fulminado por uma qualquer suspeição de nepotismo) e um patrício islenho de Germano Almeida, o escritor caboverdiano (lusófono e não lusófono, lusógrafo e não lusógrafo) mais traduzido e mais amplamente reconhecido no plano internacional, galardoado com o Prémio Camões 2018, enfim, uma espécie de Cesária Évora no masculino da literatura caboverdiana … Como, aliás, dizem, finalmente notoriamente aliviadas e satisfeitas, infladas de regozijo e inchadas de orgulho, as gentes do Barlavento caboverdiano, e, obviamente convencidas que cheias e repletas de razão defronte de um imperturbável, por vezes cáustico, às vezes sorridente e sempre condescendente e irónico Arménio Vieira: a Cesária com o seu Grammy, o Germano com o seu Prémio Camões, que, na verdade, poderia ter tido diversas variações anteriores, para imenso gáudio da generalidade dos caboverdianos das ilhas e diásporas e dos muitos e multifacetados académicos e estudiosos da literatura caboverdiana, e não só, não fossem alguns acasos e vicissitudes da vida, nitidamente desfavoráveis no seu tempo próprio e durante tempo demasiado, a certos grandes autores caboverdianos, tais: o Bana com o seu Grammy, o Manuel Lopes com o seu Prémio Camões; o Katxás (CARLOS Alberto Martins) com o seu Grammy, o Henrique Teixeira de Sousa com o seu Prémio Camões; o Zeca di Nha Reinalda com o seu Grammy, o Gabriel Mariano com o seu Prémio Camões; o Ildo Lobo com o seu Grammy, o João Vário com o seu Prémio Camões; a Cesária Évora com o seu Grammy, o Corsino Fortes com o seu Prémio Camões... e, quem sabe, num futuro muito próximo, possa ter ainda outras variações mais, por vezes, quem sabe ainda, exclusivamente no feminino: a Cesária Évora com o seu Grammy, o Oswaldo Osório com o seu Prémio Camões; a Cesária Évora com o seu Grammy, a Dina Salústio com o seu Prémio Camões; a Cesária Évora com o seu Grammy, o Jorge Carlos Fonseca com o seu Prémio Camões; a Cesária Évora com o seu Grammy, o José Luiz Tavares com o seu Prémio Camões; a Cesária Évora com o seu Grammy, a Fátima Bettencourt com o seu Prémio Camões (como uma vez me confidenciou Corsino Fortes ser sua friamente cogitada opção enquanto membro do júri do Prémio Camões, antes de o poeta e escritor moçambicano Luís Carlos Patraquim, também membro do júri, ter proposto com grande sucesso o nome de Arménio Vieira para primeiro Prémio Camões caboverdiano) e assim por diante, até chegar de novo a vez de Cabo Verde, e as suas inevitáveis surpresas... ou não...certamente, com outr@s intérpretes originári@s das ilhas e diásporas a suceder à Cesária Évora no celebrado e muito remunerador lugar do Grammy. Imagine-se, por exemplo, e podendo conjugar-se, nalguns casos, com os escritores acima referenciados, a seguinte sequência por ordem quase geracional (com muita pena minha, excluindo tanto o Bana e o Ildo Lobo, já falecidos, como também a Titina Rodrigues e a Celina Pereira, ou, se quiserem, a Celina Pereira e a Titina Rodrigues, hoje ainda divas majestosas, todavia praticamente inactivas por conhecidas razões de saúde): o Danny Silva com o seu Grammy, o Zeca di Nha Reinalda com o seu Grammy, a Mayra Andrade com o seu Grammy, a Maria Alice com o seu Grammy, o Tito Paris com o seu Grammy, a Lura com o seu Grammy, o Dino Santiago com o seu Grammy, a Nancy Vieira com o seu Grammy, o Mário Lúcio Sousa com o seu Grammy e o seu Prémio Camões...

     Ainda assim, confesse-se sempre entre parênteses e à mistura com algum orgulho de um escritor caboverdiano amplamente consagrado com o mais distinto Prémio Literário em Língua Portuguesa: escrito embora em alupec, alfabeto que, continuando a padecer do seu insuperável e insuportável pecado original que é a sua essencial e persistente base fonético-fonológica e a sua incompreensível preferência pelo controverso k(c)apa e pelo sibilante s, com correspondente extinção do q, do c e do cedilha no novo alfabeto (a não ser ironicamente no próprio acrónimo alupec), tem o condão positivo de fazer algumas poucas, mas decisivas concessões à escrita etimológica, como a aceitação dos dígrafos dj, nh, lh e tx, assim lançando, e de forma irreversível e definitiva, o alfabeto do mindelo, com os seus amaldiçoados, detestados e horripilantes chapéus, para o caixote de lixo da História, ou, pelo menos, para a Memória da Escrita do Idioma Crioulo de Cabo Verde, com os seus inevitáveis (e, por vezes, graves) erros e mal-entendidos ortográficos, o romance do meu patrício islenho e ex-padre reconvertido às saudáveis bem-aventuranças de bom pai de família e melhor pai-de-filho, tal como, aliás, os bons e antigos, por vezes, polígamos padres de batina preta, é claramente pioneiro por ser o primeiro a ser escrito na variante da Boavista do nosso comum idioma crioulo, do povo das ilhas e diásporas, contribuindo, assim, e de forma decisiva e determinante, para tornar a minha ilha fantástica da Boavista a primeira ilha do Barlavento caboverdiano a acolher a escrita de um romance em idioma crioulo, prenunciando assim a reconquista do importante lugar cultural que a ilha da Boavista teve no passado, no século XIX caboverdiano, como o primeiro lugar da impressão, em 1842, do Boletim Oficial da Província de Cabo Verde e Rios da Guiné, enquanto uma das capitais itinerantes da nossa martirizada terra crioula, então possessão ultramarina portuguesa, e, conforme palavras irrefutáveis e indesmentíveis do próprio Eugénio Tavares, berço da Morna, agora declarado pela UNESCO Património Cultural Imaterial da Humanidade, depois de a Cidade Velha, nome como é agora conhecida a antiga cidade da Ribeira Grande, a primeira capital de Cabo Verde e a primeira sede da Diocese de Santiago de Cabo Verde ter conquistado para o nosso país esse mesmo título.

   Falta agora outorgar veracidade ficcional, a igualmente chamada verosimilhança, ao muito criativo (quase ficcional) relato redigido por Alvise (também em Portugal chamado Luís) Cadamosto sobre a sua segunda viagem africana para alcandorar a ilha fantástica da Boavista a primeira ilha descoberta do arquipélago de Cabo Verde, todavia aconselhando-se a (e devendo-se, por prudência) apontar provavelmente para o dia 1 de Maio de 1556, quatro anos antes da data oficial forjada pelos próceres do Estado Novo para as celebrações do Meio-Milénio do Achamento de Cabo Verde, atribuindo todo o mérito da chegada à primeira ilha ao navegador português Diogo Gomes, comprovado pioneiro no tráfico negreiro português e europeu, numa visão imperial falseada, reducionista, branqueadora e ultranacionalista que logrou erigir-lhe uma enorme e impressionante estátua no miradouro principal do planalto da Praia de Santa Maria da Vitória e da Esperança, com vista para a praia grande da Gamboa e para a baía lata e ampla abrindo-se para o mar infindo e na imediata vizinhança do Palácio do Governador e de outros muito nobres edifícios da cidade alta da bissecular capitalidade. Ademais, e numa inusitada correcção dos livros de História e dos documentos coevos, autênticos e apócrifos, excluiu para todo o sempre dessa saga pioneira fundadora o veneziano Alvise Cadamosto e subalternizou, quase o condenando à ocultação do limbo e, quiçá, ao eterno olvido, o genovês António da Noli, considerado pela quase unanimidade dos historiadores como o principal (senão o único e verdadeiro) descobridor das primeiras ilhas de Cabo Verde, e, numa milagrosa correcção da declivosa toponímia da grande ilha, transmutou-o e trasvestiu-o num ser feminino – Antónia – que, não nomeando ninguém historicamente relevante, passou a carregar, em português de lei, o nome do pico mais alto do monte mais majestoso da ilha maior, dessa hora em diante chamado Pico de Antónia, que, todavia, no idioma crioulo da ilha de Santiago- exactamente dessa ilha que, em tempos mais antigos, remotos e recuados, era conhecida precisamente como a ilha de António-, conseguiu permanecer totalmente fiel à verdade da História do descobrimento da grande ilha e das ilhas irmãs mais próximas, suas periféricas, continuou a chamar-se Piku Ntoni, Piku´l Ntoni, Piki´l Ntoni, isto é, Pico de António, assim perpetuando, no meio do mundo, como se ouve na letra da

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