O planeta Santa Maria, um universo distante dentro de Dja d’ Sal
Colunista

O planeta Santa Maria, um universo distante dentro de Dja d’ Sal

E enquanto os folhetos turísticos continuam a vender experiências exóticas e pores-do-sol com sabor tropical, o verdadeiro milagre seria olhar para quem vive na ilha como mais do que figurante. Incluir os filhos da terra no futuro da terra. Investir não só em paredes de vidro, mas em dignidade. Fazer de Santa Maria um lugar onde o progresso não seja um privilégio importado, mas uma conquista repartida. Que se fale sim, em progresso, mas com a decência ou então, que se diga de uma vez por todas que o futuro é para os turistas e os autóctones que fiquem na recepção, na cozinha ou do lado de fora do portão.

Santa Maria brilha aos olhos do mundo como um paraíso turístico. Mas por detrás do verniz, mora a desigualdade, o abandono e a resistência silenciosa de quem é verdadeiramente do Sal.

Santa Maria não é Cabo Verde. É um planeta à parte, com rotação própria, fronteiras invisíveis e um idioma que já não é bem o nosso. Aqui, onde o mar toca a terra como quem beija num cenário digno de um catálogo de agências de viagens, tudo reluz, tudo sorri, tudo serve. Mas o que se serve também, não é só comida: serve-se silêncio, serve-se mão de obra barata, serve-se o país em fatias bem decoradas, prontas a serem digeridas por quem vem de fora.

Basta sair da zona hoteleira para perceber que o paraíso é um palco, e o que está atrás do pano cheira a esquecimento. A poucos quilómetros das suites com vista para o mar, há bairros sem esgotos tratados, casas improvisadas e trabalhadores que caminham longas distâncias debaixo do sol para manter a engrenagem a girar. A cidade dos Espargos, por exemplo, é onde a pobreza se despe sem vergonha e sem cortinas. Nesta ilha de apenas 216 km², existem dezassete bairros degradados, que escapam ao olhar do turista e do investidor. Um submundo inteiro escondido à vista de todos. O Bairro da Terra Boa, zona agrícola por excelência, segundo informações que obtive, é hoje o maior bairro clandestino da ilha. Um exemplo gritante da degradação ambiental e humana. Não há piscina que disfarce isto. Não há parede branca que oculte a desigualdade a céu aberto.

“Pedra de Lume”, por exemplo , memória viva da história do sal e da alma da ilha, está abandonada. Um monumento natural que devia ser o centro da identidade nacional, jaz ao relento, com edifícios em ruínas e promessas esquecidas no fundo da cratera. O Sítio da Pedra de Lume, que ostenta o título de Património Nacional e consta da Lista Indicativa da UNESCO para Património Mundial, degrada-se a olhos vistos. Fala-se em recuperar, em criar um museu, em valorizar… mas há quantos anos se fala disto?!

Mais adiante, a ferida do lixo rasga o postal perfeito. Não se trata apenas de um problema de resíduos. É sintoma de um abandono mais profundo, um modelo de desenvolvimento que acumula riqueza no rótulo e descarte no conteúdo. Um sistema onde o que não brilha é atirado para baixo do tapete e quem sustenta a beleza é mantido na sombra. O lixo aqui não é apenas físico, é político, é ético, e é estrutural.

Uma ilha que se vende como “o novo Dubai de África”, mas trata os seus como mão de obra descartável. Os naturais da ilha representam hoje apenas cerca de 30% da população local. São eles que deram nome a cada canto, que conhecem a rocha e o vento, mas que assistem à transformação da sua terra num produto turístico embalado em inglês, servido com luvas, e sem espaço para sotaques de casa.

Mas há qualquer coisa que não conseguem apagar. Algo que resiste e que não se constrói com betão, e nem se vende em pacotes turísticos. No meio do luxo montado, bastou-me trocar algumas palavras em crioulo com quem serve à mesa, arruma os quartos ou varre os corredores e os olhos brilhavam.

Não foi simpatia de manual…foi reconhecimento. Foi como se, por breves segundos, o idioma de casa se infiltrasse na maquinaria do negócio, lembrando a todos que esta ilha tem voz, tem nome, tem gente. NÔS GENT!

Os sorrisos abriram-se como janelas que tinham sido seladas. Porque quem é cabo-verdiano reconhece-se no timbre, na Morabeza e na ternura da língua.

Há um orgulho enorme em ser Salgadim. Um orgulho que vive sufocado entre salários baixos e rendas impraticáveis, mas que não morre. Porque ser do Sal não é só viver na ilha, é resistir-lhe.

E enquanto os folhetos turísticos continuam a vender experiências exóticas e pores-do-sol com sabor tropical, o verdadeiro milagre seria olhar para quem vive na ilha como mais do que figurante. Incluir os filhos da terra no futuro da terra. Investir não só em paredes de vidro, mas em dignidade. Fazer de Santa Maria um lugar onde o progresso não seja um privilégio importado, mas uma conquista repartida.

Que se fale sim, em progresso, mas com a decência ou então, que se diga de uma vez por todas que o futuro é para os turistas e os autóctones que fiquem na recepção, na cozinha ou do lado de fora do portão.

Dja Dubai sim, mas “Salgadim”.

FORTE APLAUSO

Partilhe esta notícia

Comentários

  • Este artigo ainda não tem comentário. Seja o primeiro a comentar!

Comentar

Caracteres restantes: 500

O privilégio de realizar comentários neste espaço está limitado a leitores registados e a assinantes do Santiago Magazine.
Santiago Magazine reserva-se ao direito de apagar os comentários que não cumpram as regras de moderação.