Na altura da mudança dos símbolos nacionais da República de Cabo Verde, a ambiência política em Cabo Verde caracterizava-se por um profundo e histérico revanchismo histórico, primordialmente induzido e atiçado pelos sectores mais descontentes e ressabiados com as condições histórico-sociológicas e político-ideológicas nas quais houve lugar à irrupção do povo caboverdiano no cenário político internacional. Esse mesmo histerismo e revanchismo histórico pode ser ilustrado, por exemplo, na desqualificação como “combatentes do mato” dos dirigentes e responsáveis do PAIGC, regressados das duas Guinés e, depois, tornados alguns deles, a par de outros oriundos da luta política clandestina conduzida em Cabo Verde e em Portugal, mentores e autores intelectuais da transformação do ramo nacional do PAIGC bi-nacional destroçado pelo golpe de Estado de Nino Vieira num partido estritamente caboverdiano, o PAICV, o qual se declarara, imediatamente depois da sua constituição, como sucessor para o povo das ilhas e das diásporas caboverdianas do antigo PAIGC bi-nacional, considerado doravante como morto e enterrado.
SÉTIMA PARTE
VII
A EVOLUCÃO DO PROCESSO POLÍTICO CABOVERDIANO NO PERÍODO POSTERIOR À FALÊNCIA PÓS-COLONIAL DO PRINCÍPIO PAIGCISTA DA UNIDADE GUINÉ-CABO VERDE E DO FALHADO E NÃO-CUMPRIDO SONHO CABRALIANO DE PÁTRIA AFRICANA BI-NACIONAL UNA, PROGRESSISTA E SOLIDÁRIA A CONSUBSTANCIAR-SE NO PROJECTO PÓS-COLONIAL DE UNIÃO ORGÂNICA ENTRE AS REPÚBLICAS DA GUINÉ-BISSAU E CABO VERDE
1. O contexto político da falência pós-colonial do princípio cabralista da unidade Guiné-Cabo Verde e do fracasso do correlativo e sonhado projecto cabraliano de união orgânica entre as Repúblicas irmãs da Guiné-Bissau e de Cabo Verde numa República Unida da Guiné e de Cabo Verde foi indubitavelmente marcado por uma nítida mudança de paradigma político-ideológico no sentido do alargamento do âmbito da reconciliação nacional entre os caboverdianos das ilhas e diásporas e de descompressão do regime de partido único socializante e pan-africanista vigente em Cabo Verde,
É nesse contexto de relativa mudança de paradigma político-ideológico e dos esforços no sentido do alargamento das suas bases identitárias e culturalistas de sustentação que ocorrem os seguintes eventos, assaz relevantes dos pontos de vista político-simbólico e cultural-identitário:
a) O abandono pelo PAICV do conceito de Movimento de Libertação Nacional no Poder, adoptado pelo III Congresso do PAIGC, de Novembro de 1977, certamente tendo em conta as seguintes circunstâncias históricas: i.não houve lugar em Cabo Verde a uma luta político-militar para a conquista violenta da independência nacional; ii. a natureza profundamente civilista da sociedade e das instituições caboverdianas, comprovadas na existência de, por exemplo, uma possante Igreja católica, apostólica, romana e das respectivas organizações da juventude, das crianças e de caridade e solidariedade sociais, coexistentes com outras igrejas e confissões religiosas cristãs (incluindo a comunidade dos Rebelados de Santiago) e, mais recentemente, de igrejas cristãs evangélicas e muçulmanas; de organizações associativas de empresários nas áreas do comércio, da indústria, dos serviços e da agricultura; de inúmeros clubes, agremiações, associações regionais e federações nacionais para as diferentes modalidades desportivas; de grupos literários e culturais, conjuntos musicais, etc, todos laborando à margem ou em coexistência com as chamadas organizações de massas para a juventude, para os trabalhadores e para as mulheres expressa e estatutariamente dirigidas, controladas e satelizadas pelo partido único socializante ou dele dependentes. e necessariamente compreendidas como organizações unitárias, por isso, muito avessas ao pluralismo organizacional, se bem que relativamente tolerantes em relação a um certo e limitado pluralismo de ideias e de ideários.
Expressão da natureza predominantemente civilista da sociedade caboverdiana no período do partido único pós-colonial é igualmente o facto de o primeiro Chefe de Estado caboverdiano, Aristides Pereira, nunca se ter arrogado qualquer título militar, a não ser aquele de Chefe Supremo das Forças Armadas e que lhe era inerente enquanto Chefe de Estado, e apesar de ter sido, a partir do Congresso de Cassacá, um dos seis membros (com Amílcar Cabral, Luís Cabral, Francisco Mendes, Osvaldo Vieira e Nino Vieira, e, depois do assassinato de Amílcar Cabral, Pedro Pires) do Conselho de Guerra e seu chefe a partir da morte de Amílcar Cabral, o que significava que foi efectivamente e ainda em tempos de guerra o chefe máximo das FARP (Forças Armadas Revolucionárias do Povo) na Guiné-Bissau, estatuto que se torna assaz dúbio com a proclamação da República da Guiné-Bissau e a aprovação da sua primeira Constituição Política, segundo a qual o Presidente do Conselho de Estado indigitado pela Assembleia Nacional Popular exercia as funções de Chefe Supremo das FARP, ainda considerado “braço armado do partido/povo para a libertação da nossa terra africana, na Guiné e em Cabo Verde”. Facto igualmente relevante é que durante todo o período de vigência em Cabo Verde do regime de partido único, raras vezes os membros militares dos órgãos superiores do partido (primeiramente, bi-nacionais, depois uni-nacional) envergaram em público as suas fardas de Comandante de Brigada, de Primeiros Comandantes e de Comandantes das FARP, a não ser que exercessem as funções de Ministro das Forças Armadas e da Segurança, como foi o caso de Silvino da Luz no primeiro governo caboverdiano, de Ministro das Forças Armadas como no caso de Honório Chantre no segundo governo caboverdiano no pós-golpe de Estado de Bissau, e de Ministro do Interior e da Segurança, como no caso de Júlio de Carvalho, no pós-golpe de Estado de Bissau, sendo esse último caso assaz atípico, pois que Júlio de Carvalho andava quase invariavelmente fardado.
b) O regresso ao país em 1986 de José Leitão da Graça e da respectiva família, depois de mais de uma década de exílio político passado essencialmente em Portugal, onde pôde concluir a sua licenciatura em Direito e exercer a profissão como juiz de direito. O regresso de José Leitão da Graça foi precedida pela publicação de vários artigos da sua autoria no lisboeta Diário de Lisboa, nos quais dissecava e clarificava o seu percurso político-cultural visceralmente nacionalista e de esquerda, com destaque para o seu papel na criação e na dinamização do movimento político-cultural nacionalista da Nova Largada, sempre em estreita colaboração com conhecidas personalidades ligadas ao PAIGC, como Manuel Duarte, Ovídio Martins e José Araújo, e outras, sobejamente conhecidas como escritores social e politicamente comprometidos em tempos de chumbo colonial-fascista marcado pela censura prévia e politicamente arriscados e severos por mor da omnipresença da polícia política colonial-fascista, a PIDE, como, por exemplo, Gabriel Mariano, Francisco Lopes da Silva, Arménio Vieira e Mário Fonseca. Fracassado o projecto pós-colonial de unidade Guiné-Cabo Verde nada parecia opor mais o projecto societário socializante defendido pelo PAICV e o antigo líder da defunta UPICV, pois que ambos pareciam comungar de comuns crenças no pan-africanismo e na construção futura em Cabo Verde de uma sociedade fraternitária, igualitária e de justiça social e desejavelmente “sem exploração do homem pelo homem”.
Relembre-se neste contexto que, tradicionalmente e no contexto do conflito sino-soviético, José Leitão da Graça sempre se situou na extrema esquerda político-ideológica representada pelo maoísmo, designadamente daquela sua variante adepta do Grande Salto em Frente e, depois, da chamada Grande Revolução Cultural Proletária Chinesa e, mais recentemente e depois da aproximação entre a China Popular de Mao Tsé Tung e Chu en Lai e os Estados Unidos da América de Richard Nixon e Henry Kissinger, de uma corrente político-ideológica defensora de um maoísmo de feição estalinista e de extração albanesa e enver-hoxista.
c) O reposicionamento político-ideológico do médico e escritor foguense Henrique Teixeira de Sousa em relação ao PAIGC e ao seu regime político de partido único. Dando como irreversível e definitivamente consumada a aquisição da independência política e da soberania nacional e internacional do povo caboverdeano, sendo ademais notórios os esforços dos dirigentes do país recém-independente na angariação de ajuda internacional para acudir na resolução dos mais candentes problemas das populações, sobretudo das suas camadas mais vulneráveis, e certamente satisfeito com o por demais titubeante processo pós-colonial de implementação prática e, depois com o golpe de Estado de Nino Vieira a total inviabilização da unidade Guiné-Cabo Verde e quiçá seduzido pelo pragmatismo, pela serenidade e pela moderação da principal figura política do país, o Presidente da República Aristides Pereira, o escritor Teixeira de Sousa escreve e faz publicar em 1986 o romance Xaguate. Essa obra, inserida no ciclo foguense, tal como os romances Ilhéu de Contenda e Na Ribeira de Deus, e de feição neo-realista como todas as demais obras ficcionais de Teixeira de Sousa, situa a sua intriga nos tempos pós-coloniais da plena vigência do regime de partido único, tal como aliás, o romance Djunga, integrante, a par dos romances Capitão de Mar e Terra e Entre Duas Bandeiras, do ciclo mindelense da obra romanesca de Teixeira de Sousa. Não deixando de criticar alguns aspectos das políticas públicas levadas a cabo pelo regime socializante de partido único, então vigente em Cabo Verde, e pelos seus representantes públicos e/ou partidários, o tom geral do romance de Teixeira de Sousa, tal como do seu equivalente pós-colonial mindelense, é todavia de enaltecimento da chamada reconstrução nacional do país com a conclusão do que ele considera o empoderamento do negro e do mulato caboverdianos na ilha do Fogo e da correlativa queda da antiga oligarquia branca crioula, caracterizada pelo seu típico racismo anti-negro. Nas obras literárias que vai dando à estampa e na entrevista concedida a Michel Laban para o livro Cabo Verde - Encontro com Escritores, Teixeira de Sousa intenta mitigar o regionalismo político de “teor autonomista no seio de uma nação portuguesa doravante progressista” que defendera no opúsculo Cabo Verde e o seu Destino Político, de Junho de 1974, apresentando-se doravante como tendo sido sempre a favor da independência política de Cabo Verde, mas também como tendo sido ostensiva e assumidamente contrário à unidade Guiné-Cabo Verde, e asseverando outrossim que a História lhe teria dado razão com a falência pós-colonial do projecto da unidade Guiné-Cabo Verde, o não-alinhamento político estrito com a correspondente equidistância face aos blocos político-militares que na altura dividiam o mundo ocidental euro-americano e transatlântico liderado pelos Estados Unidos da América do campo socialista euro-asiático liderado pela União Soviética, não-alinhamento esse que segundo Teixeira de Sousa era retoricamente defendido e efectivamente praticado pelo governo e pelo Estado caboverdianos, bem assim (e tal como propugnara como condição para a viabilização da solução política ideal que seria a independência política de Cabo Verde) o recurso sistemático das entidades políticas e governamentais caboverdianas à ajuda pública internacional por forma a garantir a sobrevivência das populações e a sua manutenção com um mínimo de dignidade humana. É todavia no romance Na Ribeira de Deus (editado depois das mudanças políticas liberais ocorridas em Cabo Verde em 1990/1991 e no decurso das quais, aliás, Teixeira de Sousa foi uma das personalidades caboverdianas da diáspora a incentivar e a apoiar abertamente e sem quaisquer rebuços políticos a candidatura presidencial de Aristides Pereira) que Teixeira de Sousa parece querer ajustar as suas velhas contas com os pan-africanistas caboverdianos da época da eclosão e do desenrolar dos acontecimentos político-culturais imediatamente posteriores ao 25 de Abril de 1924. Nesse romance, incidente precisamente sobre esse período histórico e as convulsões político-partidárias que naquela altura tiveram lugar, incluindo a chamada reafricanização dos espíritos propugnada pelo PAIGC e pelo seu falecido líder Amílcar Cabral, Teixeira de Sousa acusa pela voz de algumas personagens esses mesmos pan-africanistas comprometidos com o ideário político-ideológico e culturalista do PAIGC de negritudinistas exacerbados e lusófobos extremados, ele que na sua juventude foi um acérrimo defensor do homem negro de todo o mundo (propósito aliás, visível no conjunto da sua obra ficcional incidente sobre Cabo Verde e o principal baluarte do racismo caboverdiano que foi a ilha do Fogo, se bem que também foi um acérrimo émulo e defensor da tese da diluição da África na cultura caboverdiana, sustentada por Baltasar Lopes da Silva).
d) A realização, em Novembro de 1986, na cidade do Mindelo, do Simpósio Internacional sobre a Literatura e a Cultura Cabo-Verdiana, de celebração do cinquentenário da primeira revista modernista caboverdiana, por isso tornado mais conhecido por Simpósio Claridade. Organizado pela Fundação Amílcar Cabral e presidido por Abílio Duarte, então exercendo as funções de Presidente da Assembleia Nacional Popular (ANP) e de Presidente da Fundação Amílcar Cabral, ao Simpósio Claridade compareceram altas individualidades políticas e culturais, com destaque para o próprio Presidente da República, Aristides Pereira, e para os claridosos-fundadores ainda vivos Baltasar Lopes da Silva e Manuel Lopes, bem assim de claridosos das várias vagas, isto é, colaboradores da segunda série (de 1947 e 1948) e da terceira série (de 1958, 1959 e 1960) da revista Claridade e que se seguiram aos três números inaugurais da primeira série da mesma revista publicada em 1936 e em 1937. São os casos de Félix Monteiro e dos certezistas Henrique Teixeira de Sousa, Manuel Ferreira, Arnaldo França, Nuno de Miranda e Orlanda Amarilis, bem como escritores das várias gerações literárias dos tempos coloniais, incluindo os integrantes das várias sensibilidades e expressões das gerações da Nova Largada, como Gabriel Mariano, Ovídio Martins, Iolanda Morazzo, Francisco Lopes da Silva (colaboradores do Suplemento Cultural do Boletim Cabo Verde), Onésimo Silveira, Corsino Fortes, Pedro Gregório Lopes (colaboradores do Boletim dos Alunos do Liceu Gil Eanes), Rolando Vera Cruz Martins, Osvaldo Osório, Maria Margarida Mascarenhas, Arménio Vieira, Jorge Miranda Alfama (colaboradores da folha Seló - suplemento literário do jornal Notícias de Cabo Verde), para além de Armando Lima Júnior (Manduca Didite) e Francisco Tomar (Sukrato ou Sukre d´Sal), e pós-coloniais, com destaque para alguns colaboradores da revista Raízes e da antologia Jogos Florais 12 de Setembro de 1976, como João Henrique de Oliveira Barros, Jorge Carlos Fonseca, Vera Duarte, Vasco Martins e Pedro Delgado, os coordenadores da revista Ponto & Vírgula, designadamente Germano Almeida, Leão Lopes e Rui Figueiredo, e os integrantes do recém-fundado Movimento Pró-Cultura, colaboradores do Voz di Letra (suplemento cultural do semanário Voz di Povo) e da revista Sopinha de Alfabeto, nomeadamente Alípio Clarence Lopes dos Santos, Pedro Delgado Freire, Fernando Monteiro, Manuel Delgado, Eurico Barros, Eurico Correia Monteiro, Kaká Barboza, Filinto Elísio Correia e Silva, Fernando Hamilton Elias, Alberto Lopes, Orlando Rodrigues, Danny Spínola, Valdemar Velhinho Rodrigues, José Luís Hopffer Almada, para além de investigadores e estudiosos nacionais, como Augusto Mesquitela Lima, Dulce Almada Duarte, Manuel Veiga, Manuel Brito Semedo, e das várias diversas proveniências estrangeiras e universitárias, com destaque para o já referido Manuel Ferreira, Russel Hamilton, Michel Laban, Michel Massa, Alberto Carvalho, José Luís Pires Laranjeira...
Verdadeira jornada de reconciliação pública entre, por um lado, os claridosos-fundadores, cuja obra literária vinha sendo de todo o modo sistematicamente estudada nos Liceus, na Escola de Formação de Professores do Ensino Secundário e em outras Escolas do país, e, por outro lado, os fundadores do Estado independente e soberano de Cabo Verde, os organizadores e participantes do Simpósio Claridade lograram estabelecer pontes entre as várias gerações cívico-políticas e literário-culturais caboverdianas que doravante pareciam indestrutíveis na pugna pela consciencialização identitário-cultural e pela emancipação social e cívico-política do povo caboverdiano, qualificando-se essa pugna como uma autêntica corrida de estafetas e, neste contexto, chegando-se ao ponto de qualificar a claridosidade como “a proclamação da independência literária de Cabo Verde”, assim fazendo a sua gesta literário-cultural preceder como uma sua condição a proclamação da independência política do arquipélago caboverdiano a 5 de Julho de 1975. A reconciliação pública com as gerações anteriores é outrossim tornada extensiva aos escritores e letrados nativistas, por vezes impropriamente denominados pré-claridosos. Nesse sentido, o Simpósio Claridade, de Novembro de 1986, foi uma verdadeira celebração da gesta cultural caboverdiana, especialmente na sua vertente escrita e literária. As condições para a sua celebração como acto de reconciliação dos proclamadores da independência política de Cabo Verde com as gerações anteriores de letrados e de literatos foram sendo paulatinamente sedimentadas em especial nas “Páginas Esquecidas” da revista Raízes organizada por Félix Monteiro e preenchidas com poemas e contos inéditos de Guilherme da Cunha Dantas, Eugénio da Paula Tavares e Jorge Vera-Cruz Barbosa; com a reedição pela editora ALAC (África, Literatura e Cultura), de Manuel Ferreira, do romance O Escravo, de José Evaristo de Almeida; pelos artigos de Francisco Lopes da Silva publicados no jornal mindelense Notícias e versando as figuras de letrados caboverdianos do passado, com destaque para José Lopes da Silva, Guilherme Ernesto e Januário Leite. A valorização e o conhecimento das obras dos letrados caboverdianos do passado conheceria vários pontos altos com a organização por Félix Monteiro e a publicação pelo Instituto Cabo -Verdiano do Livro (ICL), já na década de noventa do século transacto, de três volumes (designadamente de poesia em português, de prosa jornalística em português e de poesia em crioulo, prosa de ficção e teatro) da obra de Eugénio Tavares; a organização por Elsa Rodrigues dos Santos e a publicação pela ALAC de um livro de poemas inéditos e dispersos de Jorge Barbosa; a organização por Arnaldo França e a edição pelo ICL da obra inédita de Guilherme da Cunha Dantas; a organização por Arnaldo França para reedição pelo ICL da obra poética de Januário Leite; a organização por Arnaldo França e a edição pelo ICL da obra ficcional de António Aurélio Gonçalves e, já na primeira década do presente século, a edição da obra poética completa de Jorge Barbosa (incluindo três livros inéditos organizados pelo autor) pela Imprensa Nacional/Casa da Moeda, de Portugal, que também edita a obra poética completa de Iolanda Morrazzo.
e) A realização em 1988, pelo recém-criado Ministério da Cultura, da Informação e dos Desportos através da sua Direcção-Geral de Animação Cultural, no Centro Social Primeiro de Maio do Bairro da Fazenda, na cidade da Praia, do Primeiro Encontro de Música Nacional. Aberto por Abílio Duarte, enquanto Presidente da Assembleia Nacional Popular (ANP), mas também na sua condição de músico conceituado, e presidido pelo Ministro da Cultura, da Informação e dos Desportos, David Hopffer Almada, o Primeiro Encontro de Música Nacional conta com a participação de músicos e intérpretes musicais caboverdianos de todas as ilhas do país e de todas as gerações vivas, com destaque para Jorge Monteiro, Ano Nobo, Manuel de Novas, Kaká Barboza, Henrique Oliveira, Daniel Rendall, Antero Simas, Vasco Martins, Daniel Spencer, Betú (Adalberto Silva), os membros dos conjuntos musicais Tubarões, Bulimundo, Finason, Kings, alguns compositores e intérpretes musicais radicados nas diásporas, como Celina Pereira, Titina Rodrigues, Vuca Pinheiro, Ramiro Mendes, bem como de estudiosos da música caboverdiana de várias proveniências. Nesse Primeiro Encontro de Música Nacional são abordados todos os géneros musicais caboverdianos, da morna, da coladera, do funaná, do talaia-baixo ao batuco à mazurka, ao colá-sanjon, à tabanca, ao lundum e à música erudita caboverdiana, deste modo ultrapassando-se tabús, superando-se preconceitos de vário teor e aprimorando-se o conhecimento sobre a diversidade musical caboverdiana como expressão sumamente importante da nossa crioulidade. Nesta óptica, as sessões de debate do Encontro de Música Nacional, tal como o Simpósio Claridade no plano literário-musical, foram verdadeiras e genuínas jornadas de reencontro com o nosso arquipélago musical e de exaltação da saga musical caboverdiana.
Outrossim, o Encontro de Música Nacional ficará para sempre marcado pelo falecimento em acidente de viação e depois de realizada no Palácio da Assembleia Nacional a Grande Gala de Encerramento do mesmo magno evento de Carlos Alberto Martins, principal organizador com o musicólogo Eutrópio Lima da Cruz, então exercendo as funções de Director-Geral da Animação Cultural, do grande evento de que se vem falando e que marcou a recente História musical caboverdiana, ademais celebrizado como Katxás dos Bulimundo, por terem sido, ele e o conjunto musical que fundou, pioneiros na modernização instrumental do funaná e da sua disseminação pela cidade-capital do país e pelos demais centros urbanos da ilha de Santiago, pelas restantes ilhas de Cabo Verde e pelas diásporas caboverdianas espalhadas pelo mundo.
f) As tentativas, ainda que sempre frustradas, da UCID (União Cabo-Verdiana Independente e Democrática ou, também e por um curto espaço de tempo, União Cabo-Verdiana para a Independência e a Democracia) de estabelecimento de contactos políticos com o PAICV no sentido de uma maior abertura do regime de partido único vigente em Cabo Verde. Tal ocorre numa conjuntura política caracterizada por três eventos essenciais: a) a falência pós-colonial do princípio da unidade Guiné-Cabo Verde, um dos principais pomos de discórdia da UCID em relação ao regime do PAIGC/PAICV, sendo os outros o carácter socializante do regime, considerado comunista, e o seu autoritarismo revolucionário consubstanciado na ditadura do partido único; b). O relativo apaziguamento das funestas consequências políticas, e não só, da repressão militaro-policial da sublevação popular anti-reforma agrária de 31 de Agosto de 1981 na ilha de Santo Antão. Como é sabido, parece ter sido essencial o papel da UCID no desencadeamento dos vários eventos que consubstanciaram essa mesma sublevação popular, papel esse desempenhado através de Albino Ferreira, antigo desertor do PAIGC combatente na Guiné-Bissau e mais conhecido por Bibino. Esses mesmos eventos sediciosos levaram a uma feroz e implacável repressão por parte das forças militares das FARP e das forças de segurança e ordem pública (FSOP) de alguma forma subordinadas aos desígnios autoritários e socializantes do regime de partido único então vigente, com extensa e grave violação dos direitos humanos dos implicados, como atesta o livro A Tortura em Nome do Partido Único - O PAICV e a sua Polícia Política, de Onésimo Silveira, publicado nas vésperas das eleições legislativas de 13 de Janeiro de 1991. Tendo tido forte impacto na ilha de Santo Antão, então colocada em estado de sítio e onde foram realizadas as audiências do Tribunal Militar de Instância e foram sentenciados os principais implicados na sublevação popular e levados a cabo alguns julgamentos dos réus menos considerados como tendo responsabilidades menos gravosas por tribunais de zona (depois, já nos anos noventa do século XX, celebrizados e bastas vezes execrados como tribunais populares e finalmente extintos), e tendo, ademais, causado danos de monta e irreversíveis na imagem de marca do regime político de partido único vigente que sempre se apresentara perante a opinião pública interna e perante a opinião pública estrangeira e as organizações internacionais como sendo tolerante com os críticos e os opositores do regime e respeitador das convenções internacionais relativas aos direitos humanos, os efeitos políticos duradouros provocados pelos acontecimentos de 31 de Agosto de 1981 foram certamente uma das principais causas da estrondosa derrota do PAICV nas primeiras eleições pluralistas realizadas em Cabo Verde durante todo o ano de 1991. Tanto mais que a desproporcionada reacção das forças policiais e militares em face dos acontecimentos, considerados subversivos e atentatórios da segurança interna do Estado (um exagero certamente!), e as torturas que se lhes seguiram (incluindo choques eléctricos) viriam a ser apresentadas pelos antigos e pelos novos detractores do regime caboverdiano de partido único e de autoritarismo revolucionário como a prova mais cabal do sua natureza totalitária (e não somente autoritária), regime esse que, segundo eles, nem sequer se dava a maçada de respeitar a sua própria Constituição (a de Setembro de 1980/Fevereiro de 1981), a qual, como é sabido, proibia de forma expressa e peremptória a inflicção de tortura e de qualquer tratamento desumano, degradante ou cruel a qualquer pessoa, mormente a pessoa presa ou detida pelo Estado. Condenados a final a pesadas penas de prisão pelo Tribunal Militar de Instância, pois que os seus actos foram equiparados a crimes essencialmente militares, tendo as mesmas penas sido agravadas pela instância de recurso, o Supremo Tribunal de Justiça, todos os réus, com excepção do acima referido Albino Ferreira (Bibino) viriam a ser amnistiados pelo Presidente da República, Aristides Pereira, depois de terem cumprido um ano de prisão. c ) a substituição do engenheiro Sérgio Duarte Fonseca, considerado demasiado afecto ao colonial-saudosismo de que a UCID era amiúde acusada, pelo economista Lídio Silva, um defensor de uma mudança pacífica e mediante o encetamento de diálogo político com o partido único para um regime político de democracia liberal e multipartidária. Segundo conta Aristides Pereira nas suas Memórias consubstanciadas no livro de entrevistas concedidas ao jornalista José Vicente Lopes e intitulado Aristides Pereira - A Minha Vida, A Nossa Luta e publicado postumamente pela Spleen-Edições, sempre que apresentava uma missiva oriunda da UCID aos órgãos políticos do PAICV, de composição assaz restrita (altos dirigentes da luta político-armada e diplomática nas duas Guinés), designadamente à sua Comissão Política e ao seu Secretariado Permanente, surgia um qualquer incidente, no país ou no estrangeiro, protagonizado pela UCID ou pelo PAICV, que levava inevitavelmente à interrupção e/ou ao corte do eventual diálogo encetado.
2. Vimos já que, na sequência do colapso pós-colonial do princípio da unidade Guiné-Cabo Verde e do projecto de união orgânica entre as Repúblicas irmãs da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, o patriotismo africano bi-nacionalista retirou a máscara, há muito descolorida, da unidade no quadro de uma pátria africana una, progressista e solidária, todavia sem contornos idiossincráticos e jurídico-constitucionais precisos, e também aliviado, exibiu, em lugar certo e identificado nas brumas dos antigos Rios da Guiné do Cabo Verde localizado na costa de África da margem ocidental do Atlântico, o rosto continental-insular uni-nacionalista da nação africana forjada na luta e, para os lados de cá, do nosso saheliano e morno Atlântico Médio, ostentou o rosto arquipelágico uni-nacionalista da pátria do meio do mar (na poética expressão de Ovídio Martins). e da nação crioula afro-atlântica soberana (na expressão de Tuna Furtado e Nzé de Sant´y Ago).
Da pátria e da nação crioulas do meio do mar, mas também da pátria e da nação africanas do meio do mar (ou, pelo menos, peri-africanas), porque pertença de um povo cuja sagacidade política o levou a enveredar, em tempo historicamente oportuno, pelos caminhos da libertação nacional, propiciados pela apreensão da sua maturidade de povo detentor de uma identidade nacional inconfundível e resgatador do seu “destino africano, livremente escolhido”, segundo os termos cunhados e lavrados por Manuel Duarte e adoptados e lidos por Abílio Duarte no Texto da Proclamação da Independência Política e da Soberania Nacional e Internacional da República de Cabo Verde.
Com o espírito perscrutando “o sol, o suor e o verde mar” incrustados no nosso chão e no povo que ciosamente o lavra e acarinha, rememorando “os séculos de dor e esperança” iniciados com a chegada dos descobridores europeus da primeira e das demais ilhas e a arribada da primeira nau negreira à primeira ilha do nosso arquipélago trazendo acorrentados e cativos no seu bojo e em levas sucessivas os descobridores e povoadores negro-africanos das primeiras ilhas, e, depois, “florido na bandeira da luta” e imortalizado no hino do movimento africano de libertação bi-nacional, pôde o povo de Cabo Verde cumprir a utopia, apenas remotamente sonhada pelos nativistas e pelos claridosos, de obtenção de uma “pátria amada na terra dos nossos avôs”. Hino que, outrora partilhado com a República irmã da Guiné-Bissau, constituiu o primeiro hino nacional da República de Cabo Verde e, por isso, foi, com “o milho onírico da bandeira” (em verso de Zé di Sant’ y Águ - agora transmutado em Nzé de Sant´y Ago), “esse irmão uterino” (nas poéticas palavras de Corsino Fortes), a justo título um signo maior da independência política e da soberania nacional e internacional do povo caboverdiano. Mesmo se geminada a um outro Estado-nação para a projectada e frustrada construção de uma pátria africana una, progressista e solidária, a um tempo pensada como um lugar de predilecção e paixão político-ideológicas e um lugar de complementaridade geográfico-ecológica, socio-económica e cultural-identitária, sempre imaginada como sonho pan-africanista a cumprir-se, amiúde vituperada como ressaca da utopia e/ou esconjurada como cemitério da pátria uni-nacional tão exaustamente procurada e tão exaustivamente reencontrada no nosso próprio chão no seu dissecado formato a um tempo continental-islenho e arquipelágico na sua unidade e na sua diversidade irreversível e castiçamente crioulas.
3. Como é sabido, na sequência das primeiras eleições legislativas multipartidárias do Cabo Verde pós-colonial, realizadas a 13 de Janeiro de 1991, eleições essas na prática disputadas por apenas dois partidos políticos, o PAICV e o recém-nascido e emergente MpD (Movimento para a Democracia), em parte por a UCID, em razão de vicissitudes várias, não ter conseguido legalizar-se a tempo, o MpD obteve uma maioria qualificada de votos e de mandatos, tendo o antigo partido único sido remetido para o acossado e insignificante papel de oposição parlamentar detentora de menos de um terço dos votos e dos mandatos atribuídos.
A fragilização política do PAICV agravar-se-ia com a esmagadora vitória do candidato apoiado pelo MpD (o jurista e antigo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, António Mascarenhas Monteiro) nas eleições presidenciais, de Fevereiro de 1991 sobre o candidato apoiado pelo PAICV (o histórico antigo Secretário-Geral desse partido e do antigo PAIGC e sucessor de Amílcar Cabral) e a vitória igualmente por esmagadora maioria das candidaturas do MpD (ou apoiadas por esse partido) nas eleições autárquicas de Dezembro desse mesmo ano de 1991.
É esse cenário político, claramente avassalador para o MpD e assaz desastroso, desolador e quase devastador para o PAICV, que determinaria que o antigo partido único e fautor da Abertura Política de 19 de Fevereiro de 1990 não tivesse podido impedir ou sequer condicionar a revisão total e integral da Constituição de Setembro de 1980/Fevereiro de 1981 (atente-se que na redacção que lhe foi dada pela revisão constitucional de 1988, de liberalização do sistema económico-financeiro, e na revisão constitucional de Setembro de 1990, de radical mudança do regime político de monopartidário para pluripartidário) e correlativamente dos símbolos nacionais pan-africanistas vindos da luta de libertação bi-nacional e da proclamação da independência e da soberania políticas de Cabo Verde, com grande destaque para a Bandeira Nacional ouro-verde-rubra da estrela negra (tal como, aliás, a Bandeira do PAIGC, a Bandeira Nacional da Guiné-Bissau e a Bandeira do PAICV monopartidário, mas devidamente munida da concha marítima e da espiga do milho que a singularizavam na sua ostensiva caboverdianidade e a distinguiam de todas as demais três bandeiras anteriormente referidas), bem como para o Hino Nacional intitulado “Sol, Suor e o Verde Mar”, que continuava a ser aquele cuja letra foi escrita por Amílcar Cabral e que fora Hino do PAIGC bi-nacional e continuava a ser Hino Nacional da Guiné-Bissau, do PAIGC bissau-guineense do PAICV e continuou, ate à sua substituição pelo novo Hino Nacional caboverdiano intitulado “Canta Irmão Canta”, a ser o Hino Nacional da República de Cabo Verde, mesmo depois do fim do PAIGC como partido bi-nacional e da correlativa falência pós-colonial do princípio da unidade Guiné-Cabo Verde e da ruptura total com o sempre adiado projecto de união orgânica entre as Repúblicas da Guiné-Bissau e de Cabo Verde.
Cumprido o seu destino de orgulhosa sinalização da história e da dignidade resgatadas no nascimento de dois Estados-nação independentes e soberanos, e em prevenção do pesadelo que da utopia em sangue e ressentimento poderia entrementes jorrar e coagular-se, foi esse hino envolto e simbolicamente revestido com a bandeira ouro-verde-rubra da estrela negra, do milho e da concha da singular idiossincrasia caboverdiana e, depois, remetido para o lugar digno que, por direito próprio, deve ocupar no presente do Estado-nação bissau-guineense, na memória colectiva da nação caboverdiana e na história e na actualidade política do Partido Africano da Independência de Cabo Verde.
Outros símbolos, por uns considerados como exclusiva e plenamente crioulos, ainda que também gémeos dos símbolos de uma outra nação irmã, agora situada nas Antilhas ditas holandesas, mais concretamente na ilha da Aruba, podiam doravante ocupar os palcos libertos e abertos da História caboverdiana.
4. Consabidamente, a conquista pelo povo caboverdiano da sua independência política e da sua soberania nacional e internacional foi conseguida no quadro de uma longa e dificultosa luta política clandestina (e, no período pós-25 de Abril de 1974, abertamente legal e expressa por grandes manifestações de massas), conjugada com uma exitosa luta político-armada de longa duração no chão da Guiné dita portuguesa depois constituída em República da Guiné-Bissau e com uma diligente e perspicaz luta diplomática a partir do território da Guiné-Conacri, e depois do 25 de Abril de 1974, igualmente do território de Cabo Verde, todas elas conduzidas pelo partido-movimento pan-africanista de libertação bi-nacional liderado por Amílcar Cabral e pelos seus herdeiros e sucessores político-ideológicos.
Na altura da mudança dos símbolos nacionais da República de Cabo Verde, a ambiência política em Cabo Verde caracterizava-se por um profundo e histérico revanchismo histórico, primordialmente induzido e atiçado pelos sectores mais descontentes e ressabiados com as condições histórico-sociológicas e político-ideológicas nas quais houve lugar à irrupção do povo caboverdiano no cenário político internacional. Esse mesmo histerismo e revanchismo histórico pode ser ilustrado, por exemplo, na desqualificação como “combatentes do mato” dos dirigentes e responsáveis do PAIGC, regressados das duas Guinés e, depois, tornados alguns deles, a par de outros oriundos da luta política clandestina conduzida em Cabo Verde e em Portugal, mentores e autores intelectuais da transformação do ramo nacional do PAIGC bi-nacional destroçado pelo golpe de Estado de Nino Vieira num partido estritamente caboverdiano, o PAICV, o qual se declarara, imediatamente depois da sua constituição, como sucessor para o povo das ilhas e das diásporas caboverdianas do antigo PAIGC bi-nacional, considerado doravante como morto e enterrado.
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