Cabo Verde é ainda um estado de Direito? Se sim, terá de libertar imediatamente o deputado Amadeu Oliveira! (Com Post Scriptum adicionado)
Ponto de Vista

Cabo Verde é ainda um estado de Direito? Se sim, terá de libertar imediatamente o deputado Amadeu Oliveira! (Com Post Scriptum adicionado)

Mas por que razão estou aqui a falar do Estado de Direito? Por que questionar o funcionamento do Estado de Direito em Cabo Verde precisamente num ano em que se celebra solenemente o trigésimo primeiro aniversário da Constituição da República? A razão do meu questionamento, como mais à frente explicitarei, se prende com flagrantes atropelos à lei e à constituição que envolvem o caso Amadeu Oliveira.

 

“O errado não deixa de ser errado só porque a maioria concorda e participa”

Leon Tolstói
 

É um grito de socorro em nome do Estado de Direito!

É um clamor contra a arbitrariedade e o abuso do poder!

É um apelo para que se cumpra a Constituição e as leis da República, a Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos e se cumpra a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Grita-se para que se cumpra o Estado de Direito!

Estado de Direito que invocamos por tudo e por nada, mas que, nos momentos em que devíamos, em seu nome, fazer valer o seu império, eis que somos impelidos, e sempre que nos dá jeito, sem pestanejar, de o violar e trair.

Obviamente que pior que não cumprir as regras e os princípios do Estado de Direito, é a triste constatação de que as instituições sobre as quais recaem especial incumbência de o proteger e de o fazer respeitar, são as que simplesmente abdicaram de exercer as suas competências, bem como de cumprir com o seu dever irrenunciável de fazer a sua defesa.

Tempos complicados estes que vivemos, em que a certeza e as garantias de outrora se desvaneceram, e onde, agora, se cede lugar à irracionalidade, à insegurança e às derivas persecutórias.     

Mas por que razão estou aqui a falar do Estado de Direito?   

Por que questionar o funcionamento do Estado de Direito em Cabo Verde precisamente num ano em que se celebra solenemente o trigésimo primeiro aniversário da Constituição da República?

A razão do meu questionamento, como mais à frente explicitarei, se prende com flagrantes atropelos à lei e à constituição que envolvem o caso Amadeu Oliveira.

Cabo Verde assumiu-se, desde 1992, como um Estado de Direito Democrático, cuja adesão está expressa no nº 1 do artigo 2º da Constituição da República onde se postula expressamente que Cabo Verde “organiza-se em Estado de direito de­mocrático”.

Segundo Rebelo, José M. G, 2020[1], uma das caraterísticas mais relevantes do Estado de Direito “é o fundamento de que as leis se tornaram a fonte da legitimação do poder e das decisões dos governos“.

José Rebelo entende ainda que “a Constituição pode ser compreendida como um normativo de ordem superior a partir da qual se sistematiza o ordenamento jurídico que estabelece a estrutura do Estado-Poder, os seus órgãos e respetivos poderes e os estatutos dos seus titulares”[2]

Um Estado de Direito Democrático é aquele que, no dizer de Gomes Canotilho[3], é limitado pelo direito e o poder político é legitimado pelo povo.

Curiosamente, a limitação do poder é um dos princípios presentes na nossa Constituição, e se revela especialmente na formulação constante no nº 2 do artigo 3º, segundo a qual, “O Estado subordina-se à Constituição e funda-se na legalidade democrática, devendo respeitar e fazer respeitar as leis”.

A este propósito, importa destacar o que os renomados professores de Direito, como são os casos de Gomes Canotilho e Vital Moreira[4], escreveram ao comentarem o nº 2 do artigo 3º da constituição portuguesa, fonte de onde saiu exatamente o nº 2 do artigo 3º da constituição cabo-verdiana, e que passo a citar: “O nº 2 reitera o princípio da constitucionalidade do Estado, ou seja, de que ele não se encontra acima ou à margem da Constituição, mas antes submetido a ela (princípio da juridicidade constitucional vinculativa de todos os poderes do Estado). O Estado não é sujeito da Constituição, é seu objeto; não dispõe da Constituição, é por ela comandado”.

Se assim é, mal se entende que um órgão de Estado possa ter prerrogativas de produzir normas contra a Constituição, sem subverter a ordem constitucional ou então de funcionar contra o Estado de Direito estabelecido pela constituição.

Na perspetiva dessas eminentes figuras de direito, os orgãos do Estado não podem atuar fora da constituição, e muito menos contra a constituição sob pena de violação do Estado de Direito que não é, mais nem menos, o estabelecido pela nossa constituição.  

Gomes Canotilho e Vital Moreira, discorrendo sobre o princípio da constitucionalidade em geral e do princípio da constitucionalidade do Estado, em particular, entendem que dessa conceção “decorre necessariamente o princípio da constitucionalidade da ação do Estado e de quaisquer outras entidades públicas”[5]. Para de seguida rematarem: “É uma consequência direta da juridicidade de todos os poderes do Estado e da força normativa da Constituição, enquanto lei fundamental da ordem jurídica. Sob pena de inconstitucionalidade – e logo, de invalidade – cada ato há-de ser praticado apenas por quem possui competência constitucional para isso, há-de observar a forma e seguir o processo constitucionalmente prescritos e não pode contrariar, pelo seu conteúdo, nenhum princípio ou preceito constitucional”[6] .

Creio que não se poderia ser mais claro quanto ao significado da submissão do Estado à constituição, não deixando, os dois autores, quaisquer margens para dúvidas, de que não há atos válidos dos órgãos do Estado se não forem conforme à constituição.  

Parece que, subjacente à ideia de um Estado que “respeita e faz respeitar as leis”, está também evidenciada a supremacia da constituição. 

O Estado constitucional, para o Prof. Jorge Miranda[7], “é o que entrega à Constituição o prosseguir a salvaguarda da liberdade e dos direitos dos cidadãos, depositando as virtualidades de melhoramento na observância dos seus preceitos, por ela ser a primeira garantia desses direitos”.

A supremacia da constituição parece decorrente da nossa condição de Estado de Direito e Constitucional. Aliás, isso transparece também no pensamento do Doutor José Pina Delgado[8], atual Presidente do Tribunal Constitucional, quando analisa a constituição de Cabo Verde de 1992, e escreve que “Os desdobramentos constitucionais objetivos deste Estado de Direito são parcialmente traduzidos no número 2 do artigo 2º da Lei Fundamental, em que se consagra, a separação e interdependência de poderes, a separação entre as Igrejas e o Estado, a independência dos tribunais, a autonomia do poder local e a descentralização democrática da Administração Pública, ao que se deve acrescentar a subordinação do Estado à Constituição formulada no artigo 3 (1) e a supremacia da Lei Fundamental”.

Pina Delgado não tem dúvida em relação à supremacia da constituição no nosso Estado de Direito e da submissão dos órgãos do Estado, todos sem exceção, à Constituição da República, estando, pois, alinhado o seu posicionamento com os dos grandes pensadores nesta matéria.

Na mesma linha de pensamento segue o jurista Bartolomeu Varela[9], docente da UNI-CV, que define a constituição “como a lei fundamental do Estado, a lei-mãe, a lei das leis; é a lei suprema …”.

Parece, pois, pacífica a aceitação do princípio da supremacia da constituição por quase todos os investigadores do direito e constitucionalistas que nos são próximos e que debruçaram sobre esta problemática, o que significa, na prática, que num Estado Direito e Constitucional, como o nosso, nenhuma norma jurídica produzida por órgãos de Estado pode estar acima ou contra a constituição, porque a própria constituição já a considera que são inconstitucionais. Ou seja: são inconstitucionais as “normas e resoluções de conteúdo nor­mativo ou individual e concreto que infrinjam o disposto na Constitui­ção ou os princípios nela consignados”.  

Se se conjugar essa formulação expressa no nº 1 do artigo 277º, com a que vem definido no nº 3 do artigo 3º da constituição, torna-se impossível negar que em Cabo Verde os atos do Estado e das entes públicas “só serão válidos se forem conformes à Constituição”.

Não será, pois, fácil de admitir que atos inconstitucionais do Estado sejam aceites pacificamente num Estado de Direito e Constitucional, especialmente o que se rege pelo princípio da constitucionalidade; nem é crível que se possa conviver alegremente com inconstitucionalidades praticados por órgãos do Estado, e, ao mesmo tempo, se tenha a pretensão de preservar a natureza de um Estado de Direito e Constitucional.

Pois bem!

Então qual a razão de eu trazer à colação esses especialistas de direito, citando trechos da sua lavra?  

Trago à liça essas citações para ilustrar como vamos em matéria de respeito pela constituição e leis da república, especialmente no tocante ao caso de Deputado Amadeu Oliveira, preso preventivamente, já lá vai no terceiro ano, por um alegado, e nunca provado, crime de responsabilidade.

Trago esta questão à praça pública para demonstrar as nossas contradições, o nosso faz de contas e a nossa farsa de Estado de Direito.

Este caso é demonstrativo de um Estado que, pese embora constitucionalmente deva submeter-se à Constituição e às leis, se comporta não diferentemente de um Estado autoritário e absolutista, e que se acha acima da lei ou que possa agir livremente à margem dela.

«Este caso padece de um vício processual que poderá conduzir, e parece que não haverá outra saída, à nulidade.»

Vou descrever passo a passo as sucessivas violações da constituição e das leis, inadmissíveis num Estado que se afirma de direito:

Primeira Violação – (detenção do cidadão Amadeu Oliveira antes da publicação da resolução que autoriza a sua detenção)

Trata-se de uma flagrante e insanável ilegalidade que num Estado de Direito jamais poderia ter acontecido.

O deputado Amadeu Oliveira foi detido e preso no dia 18 de julho e a resolução 3/X/2021 que autorizou a sua detenção foi publicada no dia 19 de julho de 2021.

Acontece que a resolução aprovada pela Comissão Permanente não fixou a data da sua entrada em vigor o que, por força do disposto no nº 1 do artigo 4º da Lei nº 87/VII/2011, a mesma só poderia vigorar a partir do quinto dia após a sua publicação, ou seja, no dia 24 de julho.

Tendo as autoridades detido o deputado no dia 18 de julho, antes da publicação da resolução e antes da sua entrada em vigor, isso configura uma atuação estatal, sem a necessária cobertura legal e, numa palavra, fora da lei.

Assim, estribado nos princípios do direito, fica evidenciado que, quando o deputado foi detido, não havia suporte legal para o deter, sendo a sua prisão ilegal, uma vez que a resolução, na base da qual se justificou a sua detenção e prisão, carecia de eficácia jurídica, tal como disposto nos n.ºs 1 e 2 do Artigo 2º e os nºs 1 e 2 do artigo 4º da Lei n.º 87/VII/2011 e alínea d) do nº 1 do artigo 269º da Constituição da República.

Preceitos não observados na detenção do deputado:

a)      N.ºs 1, 2 do Artigo 2º da Lei n.º 87/VII/2011;

b)      Nºs 1 e 2 do artigo 4º da Lei n.º 87/VII/2011;

c)      Nº 2 do artigo 6º da Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos

d)      Artigo 9º da Declaração Universal dos Direitos Humanos

e)      Alínea d) do nº 1 do artigo 269º da Constituição da República.

Em consequência, este caso padece de um vício processual que poderá conduzir, e parece que não haverá outra saída, à nulidade.

Segunda Violação – (violação da imunidade parlamentar)

Aqui trata-se de uma violação da lei gravíssima que atenta contra o Estado de Direito.

A imunidade parlamentar é uma garantia constitucional e é um mecanismo de defesa do livre exercício da função parlamentar.

Num país normal, essa situação faria com que vozes de deputados e do parlamento se fizessem ouvir, por uma ação fora da lei, levada a cabo por órgãos do Estado contra um titular de um órgão de soberania, cujo estatuto, constitucionalmente reconhecido, o resguarda de ações do tipo.

A Constituição da República de Cabo Verde estabelece de forma clara, no nº 2 do artigo 170º, que “Nenhum Deputado pode ser detido ou preso preventivamente sem autorização da Assembleia Nacional, salvo em caso de flagrante delito por crime a que corresponda pena de prisão, cujo limite máximo seja superior a três anos”.

A constituição ao definir que nenhum deputado pode ser detido ou preso sem autorização da Assembleia Nacional, fá-lo de forma impositiva, não deixando margem para interpretações enviesadas que subvertam essa garantia constitucional.

Tendo sido o deputado privado da liberdade, no dia 18 de julho, antes da publicação da resolução que autorizava a sua detenção, as autoridades judiciais agiram ilegalmente, lesando valores fundamentais num Estado de Direito como são o direito à liberdade, por um lado, e a imunidade parlamentar do deputado, por outro.

A pressa e a vontade de colocar o deputado atrás das "grades” conduziram a esta triste situação de inobservância absoluta do estatuto dos deputados, do regimento da Assembleia Nacional e da própria constituição, o que configura um sério atentado ao Estado de Direito Democrático.

Parece que a vontade de vingar superou a de fazer justiça, que terá de se fazer com base na lei, e respeitando escrupulosamente as regras processuais e a constituição.

Conclusão: quando o deputado foi detido, inexiste juridicamente a autorização para o deter, e numa palavra: foi detido, de jure, sem autorização da Assembleia Nacional.

Assim, constata-se uma violação flagrante do nº 2 do artigo 170º da constituição, cuja consequência conduz a desfechos seguintes:

a)      Detenção ilegal;

b)      Primeiro interrogatório judicial ilegal;

c)      Decretação da prisão preventiva ilegal;

d)      Todos atos subsequentes ilegais por vício processual.  

Terceira Violação – (autorização para detenção do deputado aprovada por um órgão incompetente)  

A Comissão Permanente da Assembleia Nacional é um órgão de substituição da Assembleia Nacional quando esta não se encontre em funcionamento.

Com a revisão da constituição de 2010, a Assembleia Nacional passou a regime de funcionamento permanente, e o legislador constitucional estipulou claramente que a Comissão Permanente só substituiria a Assembleia Nacional quando este não estivesse em funcionamento, e tipificou as situações em que isso poderia ocorrer: Assembleia Nacional dissolvida, intervalo das sessões legislativas e demais casos previstos na constituição, contrariamente ao que estipulava a formulação constitucional anterior à revisão de 2010 que falava de forma indiferenciada de “nos intervalos das sessões” sem distinguir intervalo das sessões legislativas e sessões plenárias.

Decorre de uma leitura minimamente atenta, que a revisão de 2010 introduziu uma descontinuidade na forma de funcionamento da Assembleia Nacional, passando de um funcionamento intermitente a um funcionamento contínuo, o que evidencia claramente um antes e um depois da revisão de 2010.

O legislador constitucional definiu expressamente que a Comissão Permanente só poderia substituir a Assembleia Nacional nas situações em que esta não estivesse a funcionar, e enumerou as situações em que essa substituição poderia eventualmente ocorrer.

Sem dúvida que se está perante um quadro de repartição de poderes dos orgãos da Assembleia Nacional onde se define quando e como esses poderes podem ser exercidos.

Acontece que quando a Comissão Permanente aprovou a Resolução 3/X/2021, a Assembleia Nacional estava em funcionamento. Estando em funcionamento, a competência para aprovar tal resolução é constitucionalmente da Assembleia Nacional e nunca da Comissão Permanente.

Como muito bem escreveu o Doutor Aristides Lima, juiz conselheiro do Tribunal Constitucional “em sede da concretização da Constituição, não se pode alterar a repartição das competências e funções constitucionalmente estabelecidas. O órgão encarregado de interpretar a Constituição não deve optar por uma interpretação que subverta ou perturbe o esquema existente de organização das funções e competências” (Declaração de voto in Acórdão 27/2017).

Sendo a Comissão Permanente um órgão de substituição e não concorrente da Assembleia Nacional, o seu funcionamento fora do quadro definido pela constituição parece indiciar claramente a usurpação do poder e violação do princípio de repartição dos poderes que, a meu ver, nenhuma interpretação constitucional, a não ser a que vá contra o “princípio de conformidade funcional”, poderá admitir, ou seja, que um órgão estatal possa funcionar fora do quadro de competências que lhe são constitucionalmente atribuídas.

O nº 1 do artigo 148º é uma norma prescritiva, tal significa que a Comissão Permanente só poderá funcionar quando se encontrar “dissolvida a Assembleia Nacional, nos intervalos das sessões legislativas e nos demais casos e termos previstos na Constituição”. Para além disso, a norma ainda define os momentos e as circunstâncias em que a Comissão Permanente poderá substituir a Assembleia Nacional.

Tal como entendem María Cristina Redondo, José María Sauca e Perfecto Andrés Ibáñez[10] que citam Riccardo Guastini, a expressão “”“rule of law” alude a aquel principio según el cual todo acto estatal, cualquiera él sea, debe estar sujeto al próprio Derecho, ou seja: a expressão ““Estado de Direito” refere-se àquele princípio segundo o qual todo ato estatal, qualquer que seja, deve estar sujeito ao próprio Direito”.

Aliás, é o próprio Acórdão do Tribunal Constitucional 27/2017 (pág. 9) que determina a inconstitucionalidade dos atos praticados por quem não tem competência constitucional para tal, quando afirma:  “É consabido que, sob pena de inconstitucionalidade, e, logo, de invalidade, todo e qualquer ato (i) deve ser praticado apenas por quem possui competência constitucional para isso, (ii) deve observar a forma e (iii) o processo constitucionalmente prescrito, e (iv) não pode contrariar, pelo seu conteúdo, nenhum princípio ou preceito constitucional”.

Ora, se o Tribunal Constitucional tivesse recorrido à sua própria jurisprudência, só poderia ter chegado à única conclusão possível: declarar inconstitucional a Resolução 3/X/2021, porque estando a Assembleia Nacional em funcionamento, não competia à Comissão Permanente, nem reunir-se, e muito menos decidir sobre autorização para detenção do deputado.

Citando de novo María Cristina Redondo, José María Sauca e Perfecto Andrés Ibáñez “Se as normas constitucionais estabelecem limites às autoridades inferiores, então não podem ser elas a decidir que força ou peso têm tais normas. Se as autoridades estão limitadas por uma norma, não têm jurisdição para determinar a existência, o conteúdo ou a força de tal norma”[11].

Voltando de novo às decisões do Tribunal Constitucional,  o próprio havia admitido no acórdão 27/2017 (pág. 57) que  “nenhum órgão de soberania pode exercer poderes que lhe não sejam atribuídos nos termos da Constituição. Mas também não pode dispor das suas competências, transmiti-las a outra autoridade ou conformá-las de modo diferente. O princípio da prescrição normativa da competência é, numa ordem constitucional de Estado de Direito, manifestação de duas ideias mais fundadas: a de limitação do poder público como garantia da liberdade das pessoas e da separação de poderes e articulação dos órgãos do Estado entre si e entre eles e os órgãos de quaisquer entidades ou instituições públicas”.

Importa sublinhar:  “o princípio da prescrição normativa da competência” que, no entender do Tribunal Constitucional, implica que nenhum órgão público possa exercer competências de  outrem ou que não sejam atribuídos nos termos da Constituição.

Ora, se isso é assim, o Tribunal Constitucional teria, simplesmente, de respeitar a sua jurisprudência ou, então, se já a tivesse abandonado, teria de justificar as razões da mudança de entendimento, em nome do sagrado princípio da transparência e do respeito que é devido ao povo e à opinião pública.

Não se pode, sob pena de descrédito, dizer-se uma coisa num acórdão e dizer-se o seu oposto em outro, porque atuando assim, isso poderá mexer legitimamente com a confiança no próprio sistema.

Assim, deste modo, e, em consequência, neste quesito:

a)      Viola-se o quadro de repartição das competências e funções de orgãos da Assembleia Nacional, um princípio básico do Estado de Direito;

b)      Viola-se o nº 1 do artigo 148º da Constituição;

c)      Viola-se o artigo 11º do Estatuto dos Deputados;

d)      Viola-se a alínea c) do artigo 135º do Regimento que impõe a regra de escrutínio secreto quando se trata de matérias relativas à imunidade parlamentar.   

Violação 4 – (violação  dos limites materiais da revisão constitucional pela admissão de normas costumeiras com poder derrogatório de normas constitucionais)  

O artigo 290º da constituição estabelece um conjunto de matérias que não podem ser revistas, restringidas e, muito menos, derrogadas, nem pelo poder constituinte derivado nem por qualquer outra entidade. O nº 2 do artigo 290º diz que “As leis de revisão não podem, ainda, restringir ou limitar os di­reitos, liberdades e garantias estabelecidos na Constituição”, e se se conjugar este preceito com o que dispõe o nº 2 do artigo 17º da constituição, segundo o qual “A extensão e o conteúdo essencial das normas constitucionais relativas aos direitos, liberdades e garantias não podem ser restringidos pela via da interpretação”, ficam evidenciadas que estas duas disposições constitucionais inviabilizam qualquer tentativa de restringir ou limitar os direitos, liberdades e garantias, quer via produção legislativa quer via interpretação.

Ora, a Resolução 3/X/2021 da Comissão Permanente que autorizou a detenção do deputado fora de flagrante delito, mexe com direitos, liberdades e garantias, e foi viabilizada via admissão de costumes constitucionais contra a constituição que derrogou uma norma constitucional, norma essa que, se fosse aplicada, não permitiria que tal autorização de detenção ocorresse, nos termos e circunstância em que aconteceu.

Não sendo a Comissão Permanente competente para tomar conhecimento daquele processo, porém, paradoxalmente, a instância jurisdicional habilitada, não reconhecendo à Comissão Permanente a competência para praticar aqueles atos, nos termos da constituição, decidiu, através da admissão/criação de costumes constitucionais contra a constituição, declarar não inconstitucional a referida resolução, não à luz da constituição, mas com base nos costumes constitucionais.

A admissão de costumes constitucionais contra a constituição com poder derrogatório de normas constitucionais altera a constituição, em termos não preceituados pela constituição. E essa alteração é feita de forma informal, sem obedecer ao regime consagrado na constituição para o efeito.

O Tribunal Constitucional, ao derrogar uma norma prescritiva e organizativa da constituição, mais não fez do que alterar a constituição, contrariando os limites materiais de revisão constitucional, restringiu uma garantia constitucional, contrariando o disposto no artigo 17 da constituição e violou o princípio de separação dos poderes, um dos elementos fundamentais do Estado de Direito, por o Tribunal Constitucional ter assumido o papel de legislador.    

A este propósito, ensina-nos o Prof. Doutor José Pina Delgado, Juiz Conselheiro, atual Presidente do TC, aquando da sua declaração de voto, constante do acórdão nº 27/2017  que “sempre que se invoca a existência de uma norma costumeira, o Tribunal deverá para a reconhecer e certificar, avaliar, antes de tudo, se há, por um lado, lacuna constitucional a ser preenchida, ou ambiguidade normativa a ser ultrapassada, nas situações em que, respetivamente estiverem em causa costumes secundum ou praeter constitutonem, e, do outro, se ele não se encontra vinculado a uma determinação constitucional de rejeição, caso seja um costume contra constitutionem no sentido já representado, o que deve fazer sempre que ele atinja de modo constitucionalmente ilegítimo as matérias protegidas de revisão e os direitos, liberdades e garantias”.

Importa sublinhar os seguintes:

a)      Sempre que se invoque a existência de uma norma costumeira;

b)      O tribunal para a reconhecer terá de certificar e avaliar a sua natureza;

c)      Terá verificar se ela não está vinculada a uma determinação constitucional de rejeição.

Parece claro que a resolução 3/X/2021 só poderia conhecer um destino que era a sua declaração de inconstitucionalidade, por ter sido aprovada à revelia de uma norma constitucional prescritiva de repartição de competências, expressamente definidas (vertente Estado de Direito), assim como nunca deveria ter sido viabilizada, em especial através da admissão do costume constitucional contra constituição com poder derrogatório de normas constitucionais escritas, em matéria relativa aos direitos, liberdades e garantias, porque acabou por pôr em causa os limites materiais de revisão constitucional.

Assim, não foram observadas as normas constitucionais que se seguem:

a)      Nº 2 do artigo 290º da Constituição da República;

b)      Nº 2 do artigo 17º da Constituição da República;

c)      Contradição entre o que é escrito no acórdão nº 27/2017  com o que consta do acórdão 17/2023 (embora se deva ressaltar que as declarações de voto não façam parte da decisão, mas é um indicador de coerência na produção de pensamento de quem decide).

Violação 5 (violação do princípio de separação dos poderes em razão de ter sido o Tribunal Constitucional a invocar e admitir o costume constitucional)

Este é o aspeto mais original e complicado deste processo.

O Tribunal Constitucional foi chamado a pronunciar-se, a pedido de 15 deputados, em sede de fiscalização abstrata de constitucionalidade da Resolução 3/X/2021, aprovada pela Comissão Permanente da Assembleia Nacional.

Em sede da fiscalização da constitucionalidade, cabia ao Tribunal Constitucional apreciar e julgar a questão que lhe foi submetida.

O Tribunal Constitucional, embora não fosse um processo de litigância entre as partes, ouviu o demandante que, chamado a pronunciar-se “alegou” que tinha dúvidas sobre a constitucionalidade da Resolução 3/X/2021.

De igual modo foi solicitado ao demandado que se pronunciasse sobre a “queixa” apresentada, tendo este afirmado que “agiu dentro da legalidade e cumpriu o estabelecido na constituição e nas leis”.

A prova apresentada é a cópia do Boletim Oficial onde se encontrava publicada a Resolução 3/X/2021, onde é dita que a Comissão Permanente votou nos termos da alínea a) do nº 5 do art.º 148º, da Constituição da República. No entanto, na resolução não foi citada a norma legal habilitante que daria amparo à Comissão Permanente para que pudesse reunir, como ainda não se invocou qualquer costume, na base da qual a reunião da Comissão Permanente pudesse ter lugar.

A verdade é que a Comissão Permanente só poderia exercer as suas competências invocadas, se tivesse observado o nº 1 do artigo 148º, norma que a habilitaria, como definidas na constituição, a se reunir, o que só ocorreria, como é obvio, se a Assembleia Nacional não estivesse em funcionamento.

Pois bem, não tendo nem os 15 deputados, nem a Assembleia Nacional e nem a própria Resolução invocado qualquer costume, cabia ao Tribunal Constitucional tomar conhecimento das questões que lhe foram submetidas a julgamento pelo demandante, e não julgar um assunto que não lhe foi pedido para apreciar. Mais, considerando as alegações das partes, competia ao Tribunal Constitucional, em sede da fiscalização da constitucionalidade, analisar e decidir, se as dúvidas da constitucionalidade suscitadas pelos 15 deputados tinham ou não fundamento.  

O que fez o Tribunal Constitucional?

Decidiu atribuir à Comissão Permanente a autoria de um costume constitucional que o próprio nunca invocou e nunca se deu conta de o ter constituído, e, por via disso, declarou como não inconstitucional a Resolução 3/X/2021, por esta obedecer não à constituição, mas a um costume constitucional que se tinha constituído, e que ninguém se tinha dado conta, em sede, imagine só, da fiscalização da constitucionalidade.

Na doutrina de Riccardo Guastini[12], ao analisar o  que deve ser o papel jurisdicional da justiça constitucional, ensina que “a função do juiz constitucional apresenta-se como uma função genuinamente jurisdicional: ao contrário do legislador, o juiz constitucional não cria nova lei, mas limita-se a aplicar a lei (constitucional) pré-existente. Ao contrário do legislador, as suas decisões são motivadas, e são precisamente como decisões que aplicam (não criam) normas (constitucionais) já dadas. Ao contrário do legislador, o juiz constitucional geralmente carece de iniciativa, ou seja, não pode tomar a iniciativa de forma autónoma (todas as suas decisões dependem da iniciativa de outros sujeitos) nem pode delimitar ao seu gosto o objeto das suas decisões”.

Deve-se destacar desses ensinamentos de Guastini (2016) que não cabe ao juiz criar normas e nem se lhe permite que tenha iniciativa de se debruçar sobre situações que lhe não foram suscitadas.

A este propósito, o Prof. Doutor Vital Moreira[13], investigador da Universidade de Coimbra, numa comunicação para assinalar o “X Aniversário do Tribunal Constitucional  - maio de 1993 - Fundação Calouste Gulbenkian – Lisboa”, falando sobre o tema “Princípio da maioria e princípio da constitucionalidade: Legitimidade e Limites da Justiça Constitucional”, disse o que passamos a citar: “são de rejeitar por princípio as concepções de activismo ou de criatividade do juiz constitucional, que fundamentam em boa parte a prática das chamadas «sentenças manipulativas» ou «construtivas», a que se referem os estudos sobre a jurisprudência constitucional de alguns países. […] Porque aí o juiz cons­titucional assume inequivocamente a veste do legislador e, em vez de se limitar a declarar a inconstitucionalidade das normas que o legislador emitiu, permite-se criar ele mesmo normas em substituição do legislador, ou imputar deliberadamente ao legislador normas diferentes da que este efectivamente emitiu. […] Dessa maneira, porém, o juiz constitucional age a descoberto da legi­timidade própria da justiça constitucional, e entra directamente em choque com o princípio da maioria e com a repartição de funções entre o legislador — a quem cabe formular as escolhas normativas — e o juiz constitucional — a quem cabe somente verificar a compatibilidade des­tas com as normas constitucionais.

O que o Prof. De Coimbra nos diz?

Que são de rejeitar:

a)      O ativismo ou a criatividade do juiz constitucional;

b)      As «sentenças manipulativas» ou «construtivas”, em consequência desse ativismo;

c)      O juiz cons­titucional assumir as vestes do legislador;

d)      A imputação deliberada ao legislador de normas diferentes da que este efetivamente emitiu.

Vital Moreira disse isso em 1993, há 30 anos, e parece que até estava a debruçar-se sobre a decisão do Tribunal Constitucional de Cabo Verde que declarou não inconstitucional a resolução 3/X/2021.

Não se pode, em nome da verdade, dizer-se que o costume se constitui na Comissão Permanente, sem que esta tivesse alguma vez dado conta que estava a agir por conta desse mesmo costume, contrariando um dos pressupostos para a aceitação da existência de um costume.

Trata-se de um paradoxo!

O renomado constitucionalista português, Vital Moreira, ao falar da justiça constitucional, que foi o essencial da sua comunicação nesse evento, diz expressamente que “A justiça constitucional supõe a prevalência do princípio da constitucionalidade, ou seja, a submissão de todos os poderes do Estado, a começar pelo poder legislativo, à Constituição”[14].

Parece evidente que o eminente professor de direito entende que o Estado, em um Estado de Direito, só poderá funcionar com base em leis, e não em costumes, especialmente aqueles contra a lei, exatamente porque a administração do Estado faz-se com base em regras, procedimentos e atribuições e competências, definidas por quem tem competência para tal.

Dada a relevância do pensamento de Prof. Vital Moreira, e que ajuda sobremaneira à compreensão e clarificação desta questão, sou obrigado a fazer uma citação extensa, mas absolutamente necessária, para que as pessoas fiquem com uma perceção clara de qual é o papel de um juiz constitucional em sede de fiscalização da constitucionalidade das leis.

Eis que o diz e ensina o Prof. de Coimbra: 

A prevalência do princípio da constitucionalidade sobre o princí­pio da maioria implica, entre outras, três consequências essenciais:

Primeiramente, para o juiz constitucional a Constituição é um dado, não podendo ele substituir-se ao legislador constitucional na definição da extensão e da intensidade com que a lei fundamental limita a liber­dade de escolha do legislador ordinário. Não compete ao juiz consti­tucional «corrigir» a Constituição quando esta supostamente não con­tém as soluções mais acertadas ou avisadas.

Em segundo lugar, em princípio, todos os preceitos constitucionais detêm uma função normativa. Incumbe ao juiz constitucional, em sede de interpretação da lei fundamental apurar o sentido e o alcance de cada preceito, mas não lhe assiste o direito de desqualificar como norma não constitucional nenhum preceito da constituição. Para o juiz constitucional nenhum preceito constitucional pode à partida ser enjei­tado, incapacitado ou interditado como impróprio para efeitos de afe­rição da legitimidade constitucional das decisões dos poderes públicos. 

[…] Em terceiro lugar, não assiste ao juiz constitucional o direito de autolimitar-se no exercício dos seus poderes (teoria do chamado selfrestraint), nomeadamente a pretexto de se tratar de «questões políticas» (political question doctrine, da jurisprudência constitucional norteamericana). Seguramente que, por definição, o juiz constitucional só pode censurar o legislador ordinário se e na medida em que este esteja vinculado pela Constituição, independentemente do mérito ou demérito das soluções legis­lativas em causa. Mas, uma vez verificado que o legislador estava constitucionalmente vinculado e violou a Constituição, não resta ao juiz constitucional senão tirar a consequência da inconstitucionalidade, inde­pendentemente da natureza, «política» ou não, das questões envolvidas[15].

Vital Moreira não poderia ser mais esclarecedor com relação ao papel do juiz constitucional em sede da fiscalização da constitucionalidade.

Do conteúdo acima citado de Vital Moreira pode-se concluir que:  

1)   A Constituição deve ser um dado para o juiz constitucional;

2)   O juiz constitucional não pode substituir-se ao legislador constitucional;

3)   Sai fora da esfera de competência do juiz consti­tucional «corrigir» a Constituição;

4)   Não assiste ao juiz constitucional o direito de desqualificar como norma não constitucional nenhum preceito da constituição

5)   O juiz constitucional não tem o direito de autolimitar-se no exercício dos seus poderes.

Ora, isso foi tudo o que não aconteceu na análise em sede da apreciação da constitucionalidade da Resolução 3/X/2021, onde os princípios mais elementares da fiscalização da constitucionalidade foram ignorados, tendo os juízes ido mais longe ainda quando decidem derrogar uma norma constitucional.  

Nesta aula magna do Prof. Vital Moreira sobre o papel dos juízes constitucionais, que simplesmente deve servir de referência, importa ainda destacar as seguintes passagens da sua comunicação: “Se o juiz constitucional não deve autolimitar-se nas suas funções de fiscalização da constitucionalidade, deve em contrapartida observar precipuamente os limites aos seus poderes que decorrem da Constituição ou são inerentes à fiscalização da constitucionalidade.

A ideia fundamental é a de que ao juiz constitucional só compete averiguar se a lei é ou não contrária à Constituição, mas não lhe com­pete substituir-se ao legislador na formulação das soluções conformes à Cons­tituição. Aqui continuam a ter plena validade as limitações decorrentes do princípio da maioria e da separação de poderes. É à maioria demo­craticamente legitimada para governar que compete fazer as leis e não aos juízes, mesmo ao juiz constitucional. A este só compete verificar se aquele legislou contra a Constituição. Ele é um contralegislador, não um legislador[16].

As autoridades que citamos neste artigo permitem sustentar que o processo Amadeu Oliveira foi desenvolvido à revelia do direito, da constituição, das leis e do Estado de Direito.

Um cidadão que preza a sua cidadania, que defende uma sociedade justa e de justiça e que luta pela democracia e o Estado de Direito, não pode ficar indiferente perante as arbitrariedades cometidas neste processo.

Estamos perante um caso que não honra e nem engrandece a nossa democracia e o nosso Estado de Direito, e que deveria nos interpelar a todos por que razão chegamos a esta lamentável e inusitada situação.

Num Estado de Direito Democrático não pode:

a)      Ocorrer prisão arbitrária;

b)      Ser preso um deputado sem autorização da Assembleia Nacional:

c)      Um órgão de Estado atuar fora e contra as prescrições constitucionais;

d)      O costume constitucional derrogar normas constitucionais protegidas pelos limites materiais de revisão constitucional;

e)      O Tribunal Constitucional criar normas legais, contrariando o princípio constitucional de separação dos poderes;

f)       Haver «sentenças manipulativas» ou «construtivas» onde o juiz se veste de legislador.

Estamos num Estado de Direito, onde a constituição diz taxativamente que “Os tribunais não podem aplicar normas contrárias à Constituição ou aos princípios nela consignados” (nº 3 do artigo 211º da Constituição), no entanto, o que se verifica é que são os próprios tribunais a criar normas contra a constituição, o que não deixa de ser problemático e, sobretudo, preocupante.

Vital Moreira e Gomes Canotilho ao comentarem a formulação portuguesa equivalente ao nosso nº 3 do artigo 211º, referem que “O princípio da fiscalização judicial da constitucionalidade, na qualidade de princípio material organizatório fundamental, tem ainda outro significado se tivermos em conta o seu enquadramento na organização dos tribunais. O sentido é agora este: como garantes da constituição, os tribunais são todos iguais e todos têm o mesmo peso na fiscalização judicial da constitucionalidade”[17].

Os tribunais são garantes da constituição e do seu cumprimento, se deixarem de cumprir a constituição põe-se em cheque o Estado de Direito.

 Os dois constitucionalistas portugueses assinalam ainda que “O corolário lógico de todas essas dimensões do dever de exame de atos normativos eventualmente aplicáveis nos feitos submetidos a julgamentos é o da garantia de uma decisão judicial em conformidade com a constituição no caso concreto (”feito”)”. […] “No modelo de fiscalização judicial consagrado na constituição, o juiz (todos os juízes) são juízes constitucionais” porque lhes pertence um duplo direito-dever: (i) o direito de exame da questão da inconstitucionalidade; (ii) o direito de decisão no caso concreto, com eventual direito de desaplicação de normas relevantes na hipótese de uma decisão de acolhimento da inconstitucionalidade dessas normas. O único direito que lhes é subtraído pela constituição é o direito de declaração de inconstitucionalidade em termos abstratos e com força obrigatória geral”[18].

Ora, mal se percebe que um tribunal superior, em sede de apreciação de recurso em que se suscita a questão da inconstitucionalidade, em vez de fazer aquilo que lhe incumbe, nos termos da constituição, decide deitar mão do acórdão 17/2017 em que o Tribunal Constitucional declarou como não inconstitucional a Resolução 3/X/2021 para fundamentar e justificar a sua decisão. Ora, como é sabido quando o Tribunal Constitucional, em sede da fiscalização abstrata da constitucionalidade, decide declarar como não inconstitucional um ato normativo, essa decisão não se constitui “caso julgado”, podendo a questão ser suscitada de novo.

Porém, não deixa de ser uma aberração da função judicial, que o tribunal em questão tenha utilizado uma não decisão ou decisão não vinculativa, para exatamente, com base no caso não julgado, decidir pela constitucionalidade.

Como é possível chegar-se a isso, não me perguntem, porque não vos sei responder.

Só sei que a anormalidade deveria ter limites!  

E não se venha com aquele estafado argumento moralista, sobretudo quando o assunto não toca os seus interesses  e nem lhes causa sofrimento, de que se está a atacar a justiça e que se está a fazer populismo entre outros mimos que gostam de presentear aqueles que lutam por uma justiça justa, democrática e ditada por lei e direito.

E que não se venha dizer que o deputado não foi detido no dia 18 de julho;

Desmintam, se puderem, que a resolução que autorizou a sua detenção foi publicada no Boletim Oficial no dia 19 de julho, um dia após a sua detenção;

Neguem que o deputado foi detido sem autorização da Assembleia Nacional, tendo em conta que a resolução aprovada que legitimaria a detenção ainda não tinha entrado em vigor, logo carecia de eficácia jurídica.

Cabe a quem de direito e que disponha de legitimidade, requerer imediatamente a libertação do deputado preso ilegalmente.

Nos termos da constituição, o Presidente da República “vigia e garante o cumprimento da Constituição”, e, sendo assim, deve chamar o órgão do Estado a que incumbe defender “os direitos dos cidadãos, a legalidade democrática, o interesse público” a prestar informação sobre esta denúncia pública.

Só agindo assim, estaremos a fazer justiça e não a praticar vinganças em nome do Estado de Direito.

P.S.:

O Tribunal constitucional não pode (não deve) fazer a fiscalização da constitucionalidade como quer ou como lhe apraz. Está vinculado a uma determinação constitucional, claramente definido na alínea a) do nº 1 do artigo 215º, onde se estabelece a competência do Tribunal Constitucional. 

De acordo com esse preceito, cabe ao Tribunal Constitucional proceder à“Fiscalização da constitucionalidade e legalidade, nos termos da Constituição”, significando, com isso, que o Tribunal Constitucional não tem a liberdade de fazer a fiscalização da constitucionalidade a seu bel-prazer, pelo contrário, está vinculado ou submetido a uma prescrição constitucional de proceder à fiscalização da constitucionalidade conforme à constituição.

Assim, a declaração do Tribunal Constitucional, segundo a qual, a resolução 3/X/2021 não é inconstitucional, com base em costumes constitucionais, viola claramente a constituição, por força da disposição constitucional já citada, que impõe ao Tribunal Constitucional, em sede de fiscalização da constitucionalidade, o dever de a fazer, apenas, nos termos e conforme à constituição. 

Decorrente do nosso ordenamento jurídico-constitucional e da supremacia da constituição, o Tribunal Constitucional tem também o dever de obediência à constituição. E essa submissão aos ditames constitucionais, como já ficou demonstrado, obrigaria ao Tribunal Constitucionala simplesmente aplicar o nº 1 do artigo 277º que determina que “São inconstitucionais as normas e resoluções de conteúdo normativo ou individual e concreto que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignado

Não há outra saída constitucional, para o Tribunal Constitucional, que não seja a de obediência às determinações constitucionais.

Decidir em sentido oposto, equivalea contrariar e violar a constituição por quem cabe e está reservado o papel de zelar pelo cumprimento da constituição.

O Tribunal Constitucional, enquanto administrador da justiça constitucional, não tem poderes, nem competências para agir fora do quadro da constituição, nem amparo legal para contrariar ou desobedecer as determinações constitucionais.

É preciso que, com caracter de urgência, seja restaurada o princípio da constitucionalidade, tal como definido no artigo 3º da Constituição da República, sob pena de o guardião da constitucionalidade estar a subverter, involuntariamente, a ordem constitucional.  

 

Referências bibliográficas:

[1] Rebelo, J. M. Gomes. CONSTITUIÇÃO DE CABO VERDE: Um olhar sobre os enquadramentos dos direitos à vida, à liberdade e à segurança pessoais e a sistemática da segurança – Dissertação em Mestrado em Direito e Segurança – 2020

[2] Rebelo, J. M. Gomes. Idem

[3] Canotilho, J. J. Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993

[4] Canotilho, J. J. Gomes e Moreira, Vital. Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4ª edição revista, Coimbra Editora – 2010

[5] Canotilho, J. J. Gomes e Moreira, Vital. Idem

[6] Canotilho, J. J. Gomes e Moreira, Vital. Idem

[7] Miranda, J. Constituição e Democracia -   Imprenta: Lisboa, Petrony, 1976.

[8] Delgado, J. P. Constituição de Cabo Verde de 1992 – Fundação de uma República Liberal de Direito, Democrática e Social - Estudos em Comemoração do XXº Aniversário da Constituição, Academia Edu

[9] Varela, B. Manual de Introdução ao Direito - 2ª edição, revista, UNICV, 2011

[10] Redondo, M. C., Sauca, J. M. e Ibáñez, P. A. Estado de Derecho y decisiones judiciales - Fundación Coloquio Jurídico Europeo Madrid – 2009

[11] Redondo, M. C., Sauca, J. M. e Ibáñez, P. A. Idem

[12] Guastini R. La sintaxis del derecho - Marcial Pons – Madrid 2016

[13] Moreira, V.  Princípio da maioria e princípio da constitucionalidade: Legitimidade e Limites da Justiça Constitucional (disponível aqui:

https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/textos030212.html)

[14]  Moreira, V. Idem

[15] Moreira, V. Idem

[16] Moreira, V. Idem

[17] Canotilho, J. J. Gomes e Moreira, Vital. (2010)

[18] Canotilho, J. J. Gomes e Moreira, Vital. Idem

 

 

 

 

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