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PAULITO (Continuação - terceira parte)
Cultura

PAULITO (Continuação - terceira parte)

X CENA

Paulito, muito bêbado, bate à porta. Bia, sua mulher, encontra-se no quarto com Patrick.

PAULITO (enquanto bate à porta) – Abre a porta, Bia. Sou eu.

BIA (descontraidamente) – Espera um bocadinho.

PATRICK (completamente atrapalhado) – Ave-maria, Bia! Não te disse que ele estava quase a chegar? E agora?

BIA – Cuidado para não fazeres cocó na cama e ele sentir o cheiro. Seu medricas.

PATRICK – Deixa-me sair pelo quintal antes de lhe abrires a porta.

BIA – Ele não te vai ver, criatura! Já não te disse? Eu conheço-o bem.

PATRICK – Como é que tens tanta certeza, se ele tem dois olhos e eu estou aqui na cama dele deitado?

BIA – Encosta-te bem à parede, tapa a cabeça e fica lá quietinho.

PAULITO (impaciente) – O que estás a fazer, Bia? Estou com frio.

BIA – Já vou, criatura!

PAULITO – Demoras tanto, só para abrires uma porta?!

BIA (Apaga o candeeiro e vai abrir a porta) – Mas oh homem, tu és bandido! Por onde andaste, que desde que saíste do trabalho, só agora é que vens para a casa, ainda por cima pior que um cão? (Observa-lhe o corpo todo) … Bêbado, nu, descalço, sem o relógio… vá, onde está o dinheiro que recebeste?

PAULITO – Ainda não recebi.

BIA – Não recebeste?!

PAULITO – E parece-me que não vamos receber este mês.

BIA – O quê?!

PAULITO – Patrão disse que houve falhas na feitura da folha de pagamento, que possivelmente iremos receber os dois ordenados na quinzena que vem.

BIA – Não estou a ouvir bem, ou tu é que não estás a ladrar em condições?

PAULITO – Foi o que ele nos disse hoje.

BIA – Ele é que vos disse? Mas a trabalhar ele vos pôs?

PAULITO – Claro. E no duro. Por isso que vim assim. Estivemos a fazer uns regos, o chão estava molhado, quando largamos para tomarmos o banho e mudarmos de roupa, a motobomba avariou. Sujos como estávamos, não dava para vestir roupa limpa… viemos todos assim e só agora. Ficamos lá a jogar às cartas, à espera que anoitecesse primeiro.

BIA – Mas tu não estás sujo!…

PAULITO (gaguejando-se) – Passei por casa da Xia, pedi-lhe água e lavei-me.

BIA – Então onde está a roupa do serviço?

PAULITO – Deixei lá na Xia, amanhã vou buscar.

BIA – E o relógio?

PAULITO – O relógio dei ao Agostinho de Catrina para segurar enquanto lavava as mãos, quando acabei esqueci-me de tomar.

BIA – Disseste que não havia água… lavaste as mãos?

PAULITO – Estava lá um garrafãozinho com água, dividimos por todos e lavamos só as mãos.

BIA – Amanhã vou falar com Nhu Desempate, porque essa estória de não pagar um chefe de família o seu salário… não está correta. Ainda mais, agora que tenho um filho para matricular na escola!

PAULITO – Não precisas de ir falar com ele. Deixa estar, que eu resolva.

BIA – Tu é que vais resolver?

PAULITO – Amanhã trago-te dinheiro e vais matricular os meninos.

BIA – Os meninos?! Que meninos?

PAULITO – Danilson, Euclides e a Meryl. Esqueceste que eles têm a mesma idade?

BIA – Oh, rapaz… quantas vezes já te disse para não misturares o meu filho com aqueles das tuas porcas! Traz-me dinheiro, eu vou matricular o meu filho.

PAULITO – Amanhã dou-te dinheiro e vais matricular Danilson.

BIA – Pra já vou sim, falar com Nhu Desempate, para ter a certeza se ele não te pagou.

PAULITO – Tu desconfias de mim?!

BIA – Não é por desconfiar-me de ti. Mas ocorreu-me a ideia que já recebeste.

PAULITO – Estás doida?!

BIA – Disseste que foste lavar à casa da Xia? Pois, alguém disse-me que estavas lá a gastar dinheiro.

PAULITO – Eu?!… Quem foi que te disse?

BIA – Não precisas saber. E disseram-me ainda que estavas com a Edite, aquela vagabunda que todos os rapazinhos daqui a fazem de fast food.

PAULITO – É tudo mentira. Tu não acreditas no teu marido?

BIA – Se Nhu Desempate me disser que já te pagou, não iremos caber dentro desta casa.

PAULITO – Se fores pedir ao meu patrão o dinheiro do meu trabalho, fico mal perante os meus colegas.

BIA – Ficas mal perante os teus colegas?! Não acham pior trabalhar sem receber?

PAULITO – Vão ficar a falar mal de mim… a dizer que homem trabalha e a mulher é que recebe…

BIA – Não quero saber. Quero ver o dinheiro do teu trabalho.

PAULITO (tenta abraçá-la, ela desvia o corpo) – Vamos… vamo-nos deitar. Não acredites no que o mundo diz. O mundo está cheio de intrigas.

BIA – Pode até ser que o mundo está cheio de intrigas, mas ninguém sai de sua casa para me vir dizer uma coisa se não é verdade, sem quê nem porquê.

PAULITO – Quantas coisas também já me disseram de ti?!

BIA – De mim?! Ninguém tem nada a dizer de mim. Graças a deus, não sou daquelas que imaginam. Sou badia, mas não sou vadia.

PAULITO – Por isso que nem liguei. Não viste que nunca te disse nada?!

BIA – Gostaria que me dissesses o que te disseram de mim: que tenho lume no cu ou cauda no traseiro? Que tenho chifres na cabeça, ou que costumo ir para a cama com o meu pai?

PAULITO – Disseram que me pões os cornos…

BIA (arregala os olhos) – Que te ponho os cornos?!

PAULITO – Que Punoi não é meu filho.

BIA – O Punoi não é teu filho?

PAULITO – Se não reparei que ele tem cor clara, e tu e eu somos escuros.

BIA – Já não têm mais de falar! Punoi que é parecido com Joaquim de Beba?! Deve ser tu que estás a inventar e dizer. Então Joaquim também não é teu filho. Ele e Punoi têm a mesma cor!

PAULITO – Já não te disse que não acreditei?! Que nem liguei?!

BIA – Graças a deus, eu sou séria. Não sou daquelas que se apanham facilmente. Que se apanham na maskadjon. Conheço um único homem e ele está aqui comigo.

PAULITO – Eu estou farto de dizer que Punoi e Joaquim são parecidos na cor.

BIA – Um filho pode sair ao seu bisavó ou tetravó! Tu conheces todos os teus antepassados? Sabes se algum não era branco? Lembra-te que nós somos o resultado de misturas entre África e Europa.

PAULITO – Dizem que o meu bisavô era sanpadjudu. Que Joaquim é parecido com ele. Que era sanpadjudu la dos Mosteiros, da ilha do Fogo.

BIA – Estás a ver. Punoi saiu ao teu bisavô… como o Joaquim também.

PAULITO – Não ligues.

BIA – A melhor coisa que deviam fazer era lavar os seus colhões e deixarem a minha vida em paz.

PAULITO – Eu vi que era mentira.

BIA – Eles têm vontade que eu te ponha os cornos, mas hão-de ficar com essa gana. Pragas do burro não chegam ao céu, nem barro seco se cola à parede. Eles têm raiva de mim, mas é como os pés com raiva do caminho. Mesmo que dêem topada, têm que caminhar. (Faz um sorriso fingido) Só isto é que faltava. Não achei esta mácula na minha família, não sou eu a pô-la.

PAULITO (pega-lhe na mão) – Vamo-nos deitar. Não te zangues. Tenho confiança em ti.

BIA – Calúnia é uma coisa que dói demais, Paulito.

XI CENA

Bia deita rápido, Paulito senta-se na ponta da cama e despe-se. Patrick continua colado à parede e a suster respiração.

PAULITO – Acende o candeeiro, Bia.

BIA – Não tenho fósforo.

PAULITO (apalpa o bolso) – Ah! Eu tenho.

BIA (arrebata-lho) – Não acende o candeeiro. Doem-me os olhos e a luz fá-los piorar ainda mais.

Obediente, Paulito despe a t-shirt e deita com os calções vestidos. Encosta na Bia, passa-lhe a mão pelas coxas e toca nas pernas do Patrick.

PAULITO (assustado) – Eh! Bia, o que é isto?

BIA – O que é isto, o quê?

PAULITO – Seis pernas em cima da cama?!

BIA – Sempre que ensoles (bebes, engeres, metes) grogue-fede vens com uma estória.

PAULITO – Estão seis pernas em cima da cama, sim, Bia!

BIA – Conta melhor e deixa de palermice!

PAULITO – Olha… (conta de novo) Uma, duas, três, quatro, cinco, seis.

BIA – Tens a certeza que são seis?

PAULITO – Eu não sei contar? Ou queres tratar-me por burro?!

BIA – Oh homem de Cristo, desce da cama e conta melhor.

PAULITO (do chão) – Uma, duas, três, quatro…

BIA (remata) – Vês que estavas enganado? Tinhas contado seis, agora contaste quatro: duas minhas, duas tuas.

PAULITO (envergonhado) – Desculpa… desculpa. Esse matoso complica miolos às pessoas.

Paulito deita e ressona, Bia e Patrick tomam conta do espaço e do momento até de madrugada.

XII CENA

Encostados à janela, Patrick e Bia namoram-se como se o mundo fosse só deles.

BIA – Viste como Paulito é bakan?

Riem-se.

PATRICK – Ele é bakan, tu és perigosa. (Bia dá-lhe uma palmada no ombro) – Ok. Adeus.

BIA – Vem amanhã às quatro da tarde.

PATRICK – Amanhã?!… Então hoje. Já são quatro e meia da madrugada.

BIA – Não me digas?! Já?

PATRICK – Estavas tão bem que nem deste pelo tempo a passar. Ok. Guarda-me alguma coisa que se coma.

BIA – Guardo-te o que quiseres e ofereço-te a Bia para sobrecama.

PATRICK – Bia sobrecama e Patrick sobre… (Riem-se e acabam aos beijos) Ainda bem que tu me conheces e sabes que sou guloso.

BIA – Tchau, flor. Deus vai contigo.

PATRICK – Que fique contigo também, para te encontrar rija como sempre.

Paulito vira na cama e não sente a presença da Bia. Levanta assustado e, ao sair à porta, encontra Bia a entrar.

PAULITO – Foste aonde?

BIA – Não sei se foi leite em pó que comi com suanca… fez-me umas cólicas!

PAULITO – Fizeste-me o coração ir parar aos pés! Acordei e não te encontrei!…

Voltam para a cama, Paulito tenta acariciá-la mas ela recusa.

BIA – Para quê me estás a acariciar? Dormiste o teu sono à vontade, incomodaste-me até agora, ainda não queres que eu durma o resto da noite?

PAULITO – Fazemos primeiro e dormes depois! Olha como estou!

BIA – Pega-lhe no pescoço e não me chateia.

Bia volta-lhe as costas e dorme tranquila.

XIII CENA

Paulito levanta, abre a mala, tira a roupa e veste. Apanha a água, lava a cara, esfrega os dentes com o dedo.

PAULITO – Bia… oh, Bia.

BIA (rabugenta) – O que é que tu queres, chato? Agora que estou a tentar apanhar uma soneca, porque com a tua bebedeira, ressonaste que nem um porco e, com a infeção que tenho nos olhos, não consegui pregar olho. Agora vens-me chamar para quê? O que é que precisas de mim?

PAULITO – Não me vais preparar o pequeno-almoço e o tacho para levar para o trabalho?

BIA – Pequeno-almoço? Tacho para levares para o trabalho? Com quê? Onde está o dinheiro? Oh homem, por favor!… ainda por cima, com este sono que tenho… não vejo nada que me faça levantar da cama agora. Desenrasca-te.

PAULITO – Então vou trabalhar com fome? Não levo o almoço?

BIA – Vai comer onde bebeste. O que é que queres que eu faça contigo? Que venda o meu corpo para dar-te de comer? Com essa gana hás-de ficar. E por favor não te esqueças de me trazer dinheiro para matricular o meu filho.

PAULITO – Quando levantares, vais a casa do meu irmão Eduardo, diz-lhe para te emprestar cinquenta escudos para ires matricular Danilson, que depois eu passo lá e a gente conversa.

Paulito sai e fecha a porta.

XIV CENA

Paulito encontra 2 dos filhos à espera dele: Euclides, de pele escura, cabelo cortado à escovinha; Meryl, cabelo encaracolado, cor clara. Ambos têm 7 anos como Danilson.

EUCLIDES – Dê-me bênção, papá.

PAULITO – Deus te dê juízo.

MERYL – Dê-me bênção.

PAULITO – Deus te livre do perigo.

EUCLIDES – Papá, mamã mandou perguntar-lhe se ela pode vender aquele boronsete [já não é um leitão, mas também não é um porco ainda] que ela comprou no Pelourinho dos Órgãos, para me matricular na escola?

PAULITO – Diz-lhe para desenrascar-se como puder, que passo por lá logo e falamos. E tu, Meryl, também é sobre a escola?

MERYL – Sim, papá. Mamã mandou-me dizer-lhe que ela penhorou aquele brinco papo-seco que a minha madrinha me deu, e que ela já me matriculou.

PAULITO – Diz-lhe também que vou lá mais tarde. Vão depressa.

Os meninos partem-se e Paulito fica muito pensativo.

XV CENA

Elegantemente vestida, Bia bate à porta do cunhado Eduardo. Amarize, a mulher do cunhado, vai abrir.

BIA – Bom dia, cunhada Amarize.

AMARIZE – Bom dia, cunhada. Logo cedo!… Alguma novidade?

BIA – Onde está o cunhado Eduardo?

AMARIZE – Eduardo foi a Jaracunda. Era alguma coisa que a cunhada não se importava de me dizer? Entre. (Bia entra) Como está o meu cunhado!

BIA – Paulito está bem.

AMARIZE – Graças a Deus.

BIA – Afora aquele seu beber!…

AMARIZE – Coitado!… É a sua cruz, cunhada!

BIA – Ninguém diz que ele e o cunhado Eduardo são irmãos.

AMARIZE – Isso é verdade… ninguém acredita. Para quê é que a cunhada precisa do Eduardo?

BIA – Paulito é que me mandou buscar cinquenta escudos nele, para ir matricular Danilson, que depois ele passa cá e eles acertam-se.

AMARIZE – Eduardo não está mas eu dou-lhos. Era só?

BIA – Por enquanto era só isso. E despache-me para ver se o matriculo ainda esta manhã.

AMARIZE (dá-lhe 50$00) – Já que não quer parar… então Deus lhe acompanhe.

BIA – Quando o cunhado voltar, dê-lhe os meus cumprimentos.

AMARIZE – Serão entregues, se Deus quiser.

XVI CENA

Frente a um espelho, Bia pinta o beiço e dança ao som de uma morna. Patrick entra e dá-lhe uma palmadinha no ombro.

PATRICK – Que tal? Dormiste bem?

BIA – Eh!… Chegaste agora?

PATRICK – E pa N fla-u? Vais sair?

BIA – Queria ir à escola matricular Danilson. Mas já que chegaste… deixo para a tarde.

PATRICK – A tarde há tolerância de ponto, as repartições não abrem.

BIA (dá-lhe um beijo) – Achas que te ia deixar aqui sozinho, só para ir matricular o puto? Não vês que não consigo?

PATRICK – E não vais matriculá-lo? Olha que hoje é último dia!

BIA – Se ele não for à escola este ano, vai para o próximo. Ele só tem 7 anos.

PATRICK – Nós podemo-nos encontrar numa outra altura. O mundo ainda não vai acabar de certeza. E estivemos juntos à noite toda!

BIA – A noite passada teve o que ela mereceu. O que sempre era dela. A outra altura em que nos possamos encontrar será txaskan [apenas] mais um encontro. O que perdemos, nunca mais recuperamos.

PATRICK – Ok. Onde está aquela coisa que disseste que me guardavas?

BIA – Não estou eu aqui à tua frente?

PATRICK – Tu… sei que és minha. Quero aquela coisa que se come.

BIA – Dá-me um beijo primeiro. (Patrick beija-a. Ela chama) DANILSON… (Danilson aparece e ela dá-lhe uma nota de 20$00) Toma esta nota de 20$00, vai na taberna de Nhu Lelenxo e diz-lhe para vender-te 4 pães, dez tostões de manteiga inglesa, meio quarto de açúcar, um quarto de leite em pó…

PATRICK – Por que não escreves num papel? De cabeça ele pode esquecer…

BIA – Então escreve tu. Sabes que eu não sei escrever!…

PATRICK (tira uma caneta) – Dá-me um pedaço de papel.

BIA – Danilson, arranca uma folha daquele caderno que te comprei para levares para escola e trazes-me. (Danilson dá-lha e ela dá ao Patrick) Escreve lá: quatro pães – duas pidóngas e duas nhanhinhas – dez tostões de manteiga inglesa, um quarto de leite em pó, um cruzado de chicória de café, meio quarto de açúcar, quatro ovos e um palmo de linguiça, daquelas que Tana do José Vaz faz. Escreve também: um quarto de grogue para ti.

PATRICK (olha-a fixamente) – Posso acrescentar um maço de tabaco?

BIA – Precisas perguntar? Fico ofendida.

PATRICK (dá-lhe um beijo) – Não te zangues.

BIA – Põe lá no bilhete: se o dinheiro não chegar, para ele assentar na conta do Paulito.

PATRICK – Vinte escudos vão chegar perfeitamente. Ele ainda vai trazer troco.

Patrick acaba de escrever, dá o bilhete à Bia e ela dá ao Danilson que sai com o Punoi. Bia e Patrick abraçam-se e entram no quarto.

[…continua]

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Redação