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Cientista Rory Brito: As vacinas não geram doenças, elas previnem-nas
Entrevista

Cientista Rory Brito: As vacinas não geram doenças, elas previnem-nas

Jovem, 32 anos, cabo-verdiano e cientista. Rory Brito, natural da ilha do Sal, tem um doutoramento na área de desenvolvimento de vacinas contra doenças infeciosas. No Brasil, onde fez boa parte do seu percurso académico, atuou em vários projetos de vacinas contra parasito e esteve envolvido em um programa de vacina contra a Covid-19. Hoje reside na Inglaterra, integrando uma importante equipa de pesquisa e investigação científica, no The Pirbright Institute. Em entrevista ao Santiago Magazine, Rory Brito descomplica as questões e temores em torno da vacina, garantindo que ela é uma das ferramentas mais eficazes no controlo de uma pandemia, fala do papel dos cientistas no combate ao negacionismo e do seu compromisso pessoal e profissional no que tange a desmistificação do poder das vacinas. Mesmo acreditando no sucesso da vacinação, o cientista cabo-verdiano mostra-se cauteloso e diz que o mundo deverá manter, nos próximos anos, muitos cuidados coletivos de proteção. Porque “a vida pós pandemia vai depender de cada um de nós”.

Cabo Verde, em exceção à ilha da Brava, está em estado de calamidade. Os números de infetados aumentam a cada dia. Até o fecho deste artigo, registava no país 3.231 casos ativos, 223 óbitos, dos quais 50 só no último mês de abril. Em termos globais, foram 24.368 casos acumulados desde março de 2020 e 20.899 recuperados. Números preocupantes, que colocou o arquipélago na “lista negra da Covid-19”, dos Estados Unidos da América. A campanha de vacinação iniciou em meados de março e, de lá para cá, mais de 14 mil pessoas já foram vacinadas. A meta do governo é atingir pelo menos 70% da população, até ao final deste ano.

Santiago Magazine - Antes de tudo, queremos saber quem é Rory Brito.

Rory Brito - Aos 18 anos saí de Cabo Verde para o Brasil, onde fiz o curso de Farmácia voltado para a parte clínica. Durante esse período da minha formação universitária, sentia uma grande afinidade por pesquisa e ciência. Assim, quando terminei o meu curso superior resolvi fazer um mestrado. Percebi, então, que tinha uma enorme vocação para ser cientista e decidi fazer o doutoramento na área de desenvolvimento de vacinas contra doenças infeciosas. Participei em vários projetos de vacinas contra parasito e, recentemente, estive envolvido em um projeto de vacina contra a Covid 19.

Sei que hoje reside na Inglaterra. Como foi que isso aconteceu de ir para um instituto de pesquisa científica na Europa, depois de anos no Brasil?

Após construir um curriculum interessante no meio científico, fui contratado recentemente como cientista para atuar em pesquisa de desenvolvimento de vacinas contra vírus, no The Pirbright Institute, Inglaterra. Passei por todo o processo de recrutamento, entre vários outros concorrentes, até chegar à fase da entrevista com o chefe do departamento e pessoal dos Recursos Humanos. Após dois dias, recebi a notícia de que a posição era minha. A partir desse momento, iniciei uma corrida para adquirir o visto e me mudar do Brasil para a Inglaterra. Tem sido muito bom fazer parte de uma equipa de grandes cientistas e a trabalhar com pesquisas importantíssimas.

Falemos sobre a Covid-19 e as vacinas? Há pouca informação em Cabo Verde sobre o funcionamento das vacinas. Como é desenvolvida uma vacina e como ela age no nosso corpo?

As vacinas são formulações que possuem algum patógeno – um vírus, uma bactéria ou um parasito - inteiro ou uma parte dele. Essas formulações são administradas em indivíduos, na tentativa de treinar o sistema imunológico. Assim, quando o vacinado entrar em contato com aquele vírus, bactéria ou parasito, o seu sistema imunológico estará pronto para combater e eliminar o vírus. Isso quer dizer que as vacinas geram memória e ativam o nosso sistema imunológico.  Cabe ressaltar que as vacinas não geram doenças. Muito pelo contrário, elas previnem-nas.

A descoberta das vacinas representa um grande alívio e a esperança para a humanidade.  As vacinas contra a Covid-19 são seguras? Há relatos de mortes relacionadas com a administração das vacinas. Comprova-se?

Antes de serem aprovadas, as vacinas passam por diversas fases onde precisam demonstrar que são seguras acima de tudo. Todas as vacinas que foram aprovadas para o uso emergencial demonstraram ser seguras em animais de experimentação e no homem. Contudo, recentemente, a vacina da astrazene e a da Janssen foram associadas a efeitos adversos extremamente raros de formação de coágulos sanguíneos. Cabe ressaltar, que esses efeitos adversos raros podem acontecer em uma pessoa a cada 100 mil vacinados. Além disso, os benefícios superam, em muito, os riscos. Dependendo do indivíduo, da idade, e da localização do coagulo sanguíneo, pode-se observar óbito. Repito: é necessário ressaltar novamente que mesmo perante essas condições, a vacina da astrazeneca continua sendo utilizada, pois estamos numa pandemia onde milhares de pessoas morrem por dia e que os benefícios superam os riscos de tomar essa vacina. Apenas um a cada 100 mil vacinados com essa vacina poderão ter a formação de coágulos sanguíneos.

Mas tem havido muito movimento contra. Porquê, em pleno século 21, esse negacionismo em torno das vacinas?

Muitos movimentos foram ganhando força nos últimos anos, principalmente o movimento contra a utilização de vacinas. Muitas teorias, fatos falsos e não comprovados foram sendo propagados. Muitas pessoas acreditam que podemos viver sem as vacinas, mas observações científicas comprovadas, já demonstraram que algumas doenças, antes tidas como erradicadas, têm voltado. É o caso do Sarampo, que nos últimos anos vem reaparecendo em alguns países. Não canso de ouvir frases como “as vacinas nos transformam em jacarés”, “eles injetam chips para nos controlar”, “as vacinas causam deformações nas pessoas”, “os bebés não têm um sistema imune completamente desenvolvido para que sejam vacinadas”. O movimento anti vacinas tenta criar teorias sem nenhum fundamento científico. Há muita falta de informação sobre a matéria. Ou, o mais grave, as informações são passadas de forma erradas e acabam sendo consumidas por milhares de pessoas.

Qual é o papel da ciência no que tange o esclarecimento da população diante do contexto de proliferação da desinformação e do negacionismo em relação à eficácia das vacinas? Como a ciência deve agir em relação a isso?

Eu acho que a forma como a ciência é, muitas vezes, divulgada não facilita o seu entendimento de uma forma geral. Felizmente, os cientistas já entenderam sobre a necessidade da utilização de uma linguagem mais leiga quando a informação é direcionada para a população. Neste momento, estamos a repensar como fazer a propaganda da ciência. A ciência exerce um papel muito importante na sociedade. Vários são os campos onde temos atuação de cientistas, desde as novas tecnologias, saúde, educação, etc. Com o crescente movimento anti vacinas, os cientistas têm buscado formas de provar para a sociedade que é importante a vacinação, recorrendo a animações, podcast, vídeos contando a história de vacinas e como sempre fomos dependentes delas para o bem da nossa saúde.

O nosso país acabou de decretar o estado de calamidade durante um mês. Como analisa todo esse aumento de casos em Cabo Verde?

Essa pergunta é um pouco delicada. Passei quatro meses de lockdown aqui na Inglaterra e só agora começamos a voltar para um pouco de normalidade. É difícil analisar o que tem ocorrido em Cabo Verde, mas para salvar vidas medidas têm de ser tomadas. Como estamos bem distantes de uma vacinação em massa, penso que essas medidas devem passar por distanciamento social e lockdown.

O processo de vacinação em cabo Verde deu o seu início no mês de março. Neste momento, o que aconselharia aos cabo-verdianos relativamente às vacinas e ao ato cívico de se vacinar?

Com certeza precisamos superar essa situação. Para isso, precisamos de medidas de controle que passam pela vacinação e distanciamento social. É fundamental que não haja resistência ao ato de se vacinar, porque além de se proteger estaremos a proteger aos outros. Como disse, e bem, vacinar-se é um ato de cidadania.

O governo pretende imunizar até o fim desde ano em torno de 70% da população. Acha que conseguiremos atingir essa meta?

A questão da aquisição de vacinas tem sido difícil, pois a produção não consegue suprir a demanda. Porém, acredito que podemos atingir essa meta, se o pessoal que comanda o sector da Saúde em Cabo Verde conseguir articular bem a aquisição de diferentes vacinas.

Após receber as duas doses, quanto tempo leva um vacinado para estar efetivamente imune ao coronavírus?

Estudos demonstram que depois de 21 a 28 dias a pessoa já fica imune ao vírus.

Já se fala na possibilidade de vir a ser necessário tomar uma terceira ou mais doses da vacina. Quem já se vacinou não está totalmente imune? A imunidade da vacina da Covid-19 tem durabilidade?

Essa informação ainda não foi comprovada. É tudo muito novo, tratando-se de Covid 19 e principalmente de vacinas. No quesito duração da imunidade, isso ainda está a ser estudado. Acredito que só teremos resultados mais fiéis, a partir de 2022, um ano após a vacinação. Talvez precisaremos de reforços todos os anos ou a cada seis meses. Mas, nada é certo ainda, vamos precisar de fatos científicos comprovados.

As vacinas até agora aprovadas previnem a transmissão da doença?... Já que mesmo vacinado é possível a reinfeção...

Com bases em resultados preliminares, essas vacinas têm demonstrado capacidade para bloquear a transmissão. Isso é extremamente importante.

Existe algum estudo que diz que uma gravida ou as crianças não podem vacinar?

Recentemente, um estudo foi publicado demonstrando resultados animadores em adolescentes. Assim, a vacina parece ser segura e induziu uma boa resposta imunológica. Quanto às grávidas, alguns estudos estão sendo ainda conduzidos. Mas até este momento nenhum estudo cita algum efeito nas grávidas. Convém, realçar que todas as grávidas devem discutir com os seus médicos, se precisam ser imunizadas ou não. Tratando-se de grávidas em risco de serem infetadas pelo coronavírus, pode ser mais benéfico que ela receba a vacina. Mas é fundamental a orientação do médico nesse sentido.

Temos observado o aumento de infeções entre crianças, adolescentes e jovens. A ciência tem respostas para esse aumento de casos entre jovens?

O Sars-Cov-2 tem sofrido diversas mutações, com isso muitos fatores podem ser afetados. As novas variantes circulando possuem uma capacidade muito maior de transmissão e podem ser mais letais.

As mutações do vírus têm preocupado muito a comunidade científica? O que significa a mutação de um vírus e como isso pode comprometer a estratégia de imunização?

Toda mutação é motivo de preocupação. Às vezes pode ser que o vírus fique menos ou mais infetivo e mais transmissível. Mutações seriam modificações no conteúdo genético. Com isso, o vírus consegue se esconder do nosso sistema imune ou mesmo consegue ser mais infecioso. Até o momento, algumas dessas vacinas, em estudos preliminares têm demonstrado alguma eficácia, mas pode ser que apareça uma variante que vá desafiar todas essas vacinas. O maior exemplo do poder das mutações e como isso pode afetar o processo de imunização é o vírus do HIV.

Isso quer dizer que as vacinas que já foram produzidas podem vir a ser ineficazes?

Sim, podem vir a ser ineficazes.

Para finalizar, dentro de um ano em maio de 2022, é possível imaginar que a vida já esteja mais parecida com a que vivíamos antes disso tudo? Ou, mesmo com a vacina, ainda estaremos a viver com muitas restrições, sem beijos e abraços, usando máscaras e cumprindo o distanciamento físico? A essa altura será possível falar da vida pós-pandemia?

Com essas vacinas caminhamos para uma certa normalidade, mas temos que ser cautelosos. Algumas medidas deverão ser repensadas para o futuro. Talvez tenhamos que usar máscaras apenas em lugares com muitas pessoas, mas tudo não passa de especulações. Temos que pensar no agora, em imunizar mais pessoas, fazer o distanciamento social e passar essa fase intensa de aumento de números de infetados e de mortes pelo Covid-19. Penso que só estaremos a viver em uma certa normalidade no próximo ano, se cada um de nós fizermos, hoje, a nossa parte, cumprindo as normas de segurança.

 

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