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Pan-africanismo e lealdade bipartida (ou cissiparidade pátrida) entre os letrados nativistas e regionalistas caboverdianos e entre os intelectuais nacionalistas e independentistas caboverdianos – Parte III
Cultura

Pan-africanismo e lealdade bipartida (ou cissiparidade pátrida) entre os letrados nativistas e regionalistas caboverdianos e entre os intelectuais nacionalistas e independentistas caboverdianos – Parte III

Os constrangimentos paralisantes, provenientes tanto da emergência nas ilhas de uma cultura crioula, peri-ocidental e peri-africana (na pertinente terminologia do sociólogo e historiador António Leão Correia e Silva) e consolidada em toda a extensão arquipelágica da colónia/província ultramarina na diversidade das suas manifestações materiais e espirituais, como também da ascensão económica e social e da aristocratizarão intelectual de negros e de mulatos caboverdianos, para utilizar expressões muito caras à doutrina culturalista instituída por Baltasar Lopes da Silva e retomada por outros ensaístas caboverdianos de feições claridosas e neo-claridosas para significar a precoce emergência de elites económicas, sociais e culturais nativas no quadro colonial caboverdiano, isto é, daquilo que Iva Cabral e outros estudiosos integrantes da Equipa para a Elaboração da História Geral de Cabo Verde denominam pretos brancos ou brancos pretos. A emergência das elites económicas, sociais e culturais caboverdianas é muito marcada por especificidades resultantes tanto do processo de povoamento do arquipélago como da pobreza franciscana, na precisa expressão de Gabriel Mariano, que desde sempre (ou, desde há muito) caracterizaram as ilhas de Cabo Verde, as quais desembocaram numa ampla mestiçagem cultural, numa muito significativa miscigenação biológica e na precoce constituição da nação crioula caboverdiana.

TERCEIRA PARTE

PAN-AFRICANISMO, NACIONALISMO CABOVERDIANO E PÁTRIA AFRICANA NO PROJECTO PAIGCISTA DE UNIDADE GUINÉ-CABOVERDE DE AMÍLCAR CABRAL

3.1. Como já referido, assiste-se,  a partir das décadas de quarenta e de cinquenta do século XX, a uma nítida transfiguração político-ideológica na lealdade bipartida ou cissiparidade pátrida  professada pelos letrados e intelectuais caboverdianos. Essa transfiguração resulta da nova compreensão  da cultura e da identidade caboverdianas,  não mais interpretadas como um caso de regionalismo europeu, tal como anteriormente entendido não somente pelos nativistas e pelos claridosos, mas também,  e até aos dias de hoje,  por um significativo número de neo-claridosos, mas como um caso de regionalismo africano. Do ponto de vista literário e ensaístico, essa mudança de paradigma é encetada com a poesia de António Nunes, Aguinaldo Fonseca e Amílcar Cabral, vindo a ser inteiramente assumida pela geração político-cultural da Nova Largada e os seus sucessivos desdobramentos temporais,  com a obra de Gabriel Mariano, Ovídio Martins, Iolanda Morazzo, Luís Romano, João Manuel Varela e os seus nomes literários João Vário e Timóteo Tio Tiofe, Corsino Fortes, Kaoberdiano Dambará - pseudónimo de Felisberto Vieira Lopes-,  Oswaldo Osório, Mário Fonseca,  Arménio Vieira, Emanuel Braga Tavares, entre outros, culminando do ponto de vista cívico-político na epopeia político-militar de Amílcar Cabral e dos movimentos de libertação nacional africanos, depois resultando  na proclamação unilateral da independência política da República da Guiné-Bissau, na queda do colonial-fascismo e na revolução democrática do 25 de Abril de 1974 e na obtenção das independências políticas e das soberanias nacionais  de Cabo Verde e das demais antigas colónias portuguesas.  

3.2. Na nossa opinião, a lealdade bipartida  professada por Amílcar Cabral, além de fundada nas suas vivências individuais, experienciadas como dupla pertença biográfica e pessoal (por isso, transmissível somente àqueles que com ele partilha(va)m uma história pessoal similar), foi, por outro lado, amplamente subvertida nos termos anteriormente postos pelo nativismo proto (ou pré)-nacionalista, porque agora inundada de um pan-africanismo severamente anti-assimilacionista e anti-colonialista, e projectada para uma versão ressurrecta, insurrecta e libertária das ilhas de Cabo Verde e da parte dos antigos Rios da Guiné do Cabo Verde que viria a constituir a Guiné dita portuguesa e, mais tarde, a Guiné-Bissau. Referimo-nos, neste último caso, àquela parcela da terra firme africana que era considerada, designadamente por René Pélissier, como sendo colónia da colónia caboverdiana, porque governada directamente das ilhas então portuguesas de Cabo Verde como uma sua circunscrição administrativa que, sucessivamente, foi assumindo as formas e as denominações de capitania (por exemplo, de Cacheu), de sub-prefeitura, de distrito militar, entre outras. Os territórios da Guiné dita portuguesa e das ilhas de Cabo Verde são agora politicamente transfigurados pelo pensamento cabraliano e projectados numa futura pátria africana integradora das “nossas terras africanas da Guiné e de Cabo Verde” ou, dito noutros termos, de uma pátria africana  conformadora em tempos vindouros “da nossa terra africana na Guiné e em Cabo Verde”. Deste modo, isto é, pela sua projecção num futuro indeterminado e condicionado pela actualidade da unidade de acção política entre guineenses e caboverdianos na luta anticolonial, o projecto da unidade Guiné-Cabo Verde diferenciava-se substancialmente da lealdade bipartida (ou bipátrida, se se quiser) comungada pelos nativistas (tanto os assim denominados em sentido próprio e integrantes da geração dita pré-claridosa como também os aqui assim considerados em sentido impróprio e integrantes da geração claridosa).

O princípio da unidade Guiné/Cabo Verde e o correlativo projecto de pátria africana de Amílcar Cabral parecem ter sido pensados para servirem, no presente histórico colonial, como instrumentos estratégicos de libertação política dos “nossos povos africanos da Guiné e de Cabo Verde”, que, a seu tempo, poderiam constituir-se em Estados-nação independentes e soberanos e, depois, se pronunciariam sobre a união orgânica entre os respectivos países para a constituição da futura pátria africana una, forte, progressiva  e solidária, sempre pensada como integrando um processo gradual de unificação política e económica da África, toda e inteira, de norte a sul, de oeste e a leste, nas suas partes continental e insular, bem como de valorizarão e de plena dignificação do homem negro e dos afro-descendentes de todo o mundo e das respectivas culturas e identidades culturais. Essa futura pátria africana resultante da união orgânica entre a Guiné e Cabo Verde (ou, por outras palavras, da unificação num único Estado dos dois países soberanos e independentes) divisava-se, por seu lado, como uma entidade política de contornos jurídico-constitucionais nunca clara, inequívoca e definitivamente definidos por comparação com os modelos disponíveis (confederação, federação, união real, estado unitário centralizado ou descentralizado, estado unitário parcial ou integralmente regional, formas de integração política próximas do modelo da União Europeia, etc.). Por sua vez, a união orgânica entre a Guiné e Cabo Verde deveria funcionar como empecilho aos apetites hegemónicos de certos países muito bem identificados, sobretudo em relação à Guiné-Bissau, bem como de ante-câmara para a futura unidade política de parte e/ou do todo do continente africano. Ante-câmara que deveria ser exemplar nos seus efeitos progressistas, desenvolvimentistas e anti-neocolonialistas, mesmo que de forma remota, tendo sempre em conta  os interesses legítimos e devendo estar devidamente salvaguardadas as justas aspirações dos povos da Guiné e de Cabo Verde à paz, à liberdade, ao bem-estar material e espiritual, ao progresso social e ao desenvolvimento. A salvaguarda da dignidade e dos interesses dos povos da Guiné e de Cabo Verde e das suas aspirações à liberdade, à justiça, à prosperidade, à paz e ao desenvolvimento parecem ser, aliás, os únicos limites impostos por Amílcar Cabral para a inserção desses povos e dos respectivos países em quadros mais vastos de integração económica e, sobretudo, de integração política africana.

Deste modo, a lealdade bipartida de feições nitidamente bi-nacionais  característica do projecto de pátria africana de Amílcar Cabral é largamente tributária dos futuros desenvolvimentos que a História pudesse e viesse efectivamente proporcionar.

3.3. Ademais, Amílcar Cabral pôde desenvolver as suas teses relativas à alienação e à marginalização da pequena burguesia intelectual e burocrático-administrativa no quadro do sistema colonial em múltiplas ocasiões e em vários escritos, em especial nos ensaios teóricos “Fundamentos e Objectivos da Libertação Nacional em Relação com a Estrutura Social“ (mais conhecido como A Arma da Teoria, apresentado â Conferência Tricontinental de Havana, de 1966) e “O Papel da Cultura na Luta de Libertação Nacional”, insertos nas suas Obras Escolhidas, Unidade e Luta, Primeiro Volume, A Arma da Teoria) bem como nos textos “Análise de alguns Tipos de Resistência” e “Alguns Princípios do Partido” (de recolha das suas explanações orais em crioulo, sobre a ideologia e a praxis política do PAIGC proferidas no célebre Seminário de Quadros de Novembro de 1969, realizado em Conacri, traduzidas para português por Amélia Araújo e organizadas para edição por Mário Pinto de Andrade com o beneplácito do Comité Executivo da Luta do PAIGC).

Ainda que não se tivesse referido de forma expressa e exclusiva ao caso específico de Cabo Verde, pode-se deduzir das conclusões de Amílcar Cabral referentes às problemáticas acabadas de referenciar que são fulcrais na sua tese da reafricanização dos espíritos e do seu projecto pan-africanista de unidade entre a Guiné e Cabo Verde os seguintes e relevantes factores e elementos de análise:

i) A tipificação das situações coloniais como essencialmente caracterizadas pela usurpação da liberdade de desenvolvimento das forças produtivas do território/país dominado e, assim, do processo histórico do povo colonizado, que, tal como uma carruagem, é atrelado à locomotiva-ao comboio da história do povo da potência colonial e das suas classes dominantes. Deste modo, vê-se o povo colonizado também ultrajado na sua cultura, entendida enquanto lugar onde, mediante a sua apreensão crítica pela consciência individual e colectiva, se sintetizam o processo histórico e as suas condições ambientais, se procede à reelaboração das relações dos seres humanos entre si e com a natureza, se focalizam as suas energias criadoras bem como os seus constrangimentos, isto é, se localizam as dinâmicas, subjectivamente pensadas ou imaginadas, dos pontos de vista individual e colectivo, para o progresso ou o retrocesso sociais. É dessas dinâmicas, subjectivamente reconstruídas ou imaginadas, que adviriam os aspectos positivos e negativos de uma dada cultura. Por isso, que a libertação nacional, a genuína, verdadeira e autêntica, implicaria necessariamente a libertação das forças produtivas, do processo histórico e da cultura do povo colonizado. Por isso que seria na cultura que residiria a capacidade de resistência do povo colonizado e a sua força anímica para se desenvencilhar da dominação estrangeira. Por isso que a libertação nacional seria simultânea e necessariamente um acto de cultura e um factor de desenvolvimento cultural.

ii) Os constrangimentos resultantes a um tempo das mais-valias e das vulnerabilidades geo-estratégicas e das fragilidades económicas e climatéricas de Cabo Verde, arquipélago desde sempre (ou, pelo menos, desde muito cedo,  depois do seu achamento pelo genovês António da Noli e pelos portugueses Diogo Gomes e Diogo Afonso, todos eles navegadores ao serviço da Coroa portuguesa) acossado pelas estiagens cíclicas e que, também por isso, viveu longamente sob a ameaça do colapso pelas mortandades provocadas pela desnutrição crónica e absoluta, ficando por isso conhecido como arquipélago da fome,  e que, ademais, se achava destituído de uma retaguarda logística sustentada que lhe permitisse enveredar sozinho e por um longo período temporal pelos caminhos da busca por meios violentos de um destino próprio e auto-determinado.

Paradoxalmente e tirando partido da pobreza de recursos naturais e do correlativo abandono administrativo e, desde  a  crise comercial ocorrida no século XVII, após um inicial período de apogeu económico, com a desvinculação da ilha de Santiago do tráfego/tráfico negreiro transatlântico e o sequente  desinteresse dos colonos brancos em se radicar no doravante considerado famigerado arquipélago meso-atlântico e saheliano, com o  seu consequente abandono, de forma maciça e definitiva, pelos  colonos brancos radicados, esse mesmo arquipélago pôde forjar as estruturas que dos pontos de vista social e antropológico o autonomizaram e aceleraram os processo que o fizeram emergir como uma entidade crioula, culturalmente distinta tanto da metrópole colonial portuguesa e das suas ilhas cultural-administrativamente adjacentes da Madeira e dos Açores e das vizinhas e também áridas ilhas Canárias, cultural-administrativamente adjacentes de Espanha, como também da terra firme continental contígua. É assim que Cabo Verde pôde se fazer e se perfazer como uma entidade  identitariamente singular na sua unidade e diversidade arquipelágicas, construídas a um tempo como continente e arquipélago culturais (na expressiva e pertinente terminologia de Gabriel de Gabriel Mariano), ou, como prefere e assevera esse incisivo ensaísta nova-largadista  no seu icónico ensaio “Do Funco ao Sobrado ou o Mundo que o Mulato Criou” como “uma nação que, à sua revelia, se constituiu como um tiro que saiu pela culatra do colonialismo” . Expressão, diga-se, feliz e, na altura do seu achado por ocasião da realização dos Colóquios Cabo-Verdianos pela Junta de Investigação do Ultramar, assaz corajosa, senão temerária, e cabalmente pertinente para caracterizar a comunidade crioula caboverdiana e obviamente impertinente para as autoridades colonial-fascistas portuguesas e, por isso mesmo, censurada e expurgada da versão  na altura publicada da comunicação do destemido ensaísta caboverdiano nova-largadista Gabriel Mariano.  

Paradoxo tanto maior quando se tem em conta que ao abandono, à incúria e ao desinteresse coloniais, patente na existência, especialmente no período pós-escravocrata, de um colonialismo sem colonos, na feliz expressão de Onésimo Silveira, se ajuntava a espoliação colonial-escravocrata dos escassos recursos disponíveis, a sobre-exploração colonial-mercantil da mão-de-obra escrava, servil ou assalariada e um geral bloqueamento reinol/metropolitano a todas as vias e iniciativas que pudessem sustentar a emancipação económica e socio-política do arquipélago, como, aliás, e tal como foi apontado por Cabral, é característico e típico das situações coloniais.

iii) Os constrangimentos paralisantes, provenientes tanto da emergência nas ilhas de uma cultura crioula, peri-ocidental e peri-africana (na pertinente terminologia do sociólogo e historiador António Leão Correia e Silva) e consolidada em toda a extensão arquipelágica da colónia/província ultramarina na diversidade das suas manifestações materiais e espirituais, como também da ascensão económica e social e da aristocratizarão intelectual de negros e de mulatos caboverdianos, para utilizar expressões muito caras à doutrina culturalista instituída por Baltasar Lopes da Silva e retomada por outros ensaístas caboverdianos de feições claridosas e neo-claridosas para significar a precoce emergência de elites económicas, sociais e culturais nativas no quadro colonial caboverdiano, isto é, daquilo que Iva Cabral e outros estudiosos integrantes da Equipa para a Elaboração da História Geral de Cabo Verde denominam pretos brancos ou brancos pretos. A emergência das elites económicas, sociais e culturais caboverdianas é muito marcada por especificidades resultantes tanto do processo de povoamento do arquipélago como da pobreza franciscana, na precisa expressão de Gabriel Mariano, que desde sempre (ou, desde há muito) caracterizaram as ilhas de Cabo Verde, as quais desembocaram numa ampla mestiçagem cultural, numa muito significativa miscigenação biológica e na precoce constituição da nação crioula caboverdiana.

Por outro lado, a existência de um colonialismo sem colonos condicionará, e sobremaneira, o papel da pequena burguesia caboverdiana no quadro do sistema colonial. A ausência, ou, melhor dizendo, a insignificância numérica de colonos brancos facilitará e, até certo ponto, acelerará as dantes referidas ascensão económica e social do caboverdiano, mulato e negro na sua esmagadora maioria, e a sua aristocratizarão intelectual, como assertivamente defendem os ensaístas Baltasar Lopes da Silva, designadamente nos ensaios “Notas sobre a Linguagem das Ilhas” e  “Uma Experiência  Românica nos Trópicos” (ambos  publicados na revista Claridade), Félix Monteiro nos ensaios “A Tabanca da Ilha de Santiago” e “As Festas das Bandeiras da Ilha do Fogo” (todos igualmente publicados na revista Claridade), Henrique Teixeira de Sousa, designadamente nos ensaios “A Estrutura Social da Ilha do Fogo” e “Lojas, Sobrados e Funcos” (todos também publicados na revista Claridade) e na obra Cabo Verde e as Suas Gentes (publicada, em 1954, como separata ao Boletim Cabo Verde), o já referido Gabriel Mariano, designadamente no ensaio “Do Funco ao Sobrado ou o Mundo que o Mulato Criou” (publicado pela Junta de Investigação do Ultramar no volume intitulado Colóquios Cabo-Verdianos como Actas do evento homónimo por ela organizado, em 1958, em Lisboa) e no ensaio “A Mestiçagem: o seu Papel na Formação da Sociedade Cabo-Verdiana” (constante do número único do Suplemento Cultural do Boletim Cabo Verde) e Manuel Ferreira, designadamente no livro A Aventura Crioula (publicado em 1967 com prefácio de Baltasar Lopes da Silva e reeditado em 1977 e em 1985, com os ajustes advenientes da independência política das antigas colónias africanas de Portugal, a princípio chamadas Países de Expressão Portuguesa, mais tarde denominados PALOP-Países Africanoos de Língua Oficial Portuguesa). Posteriormente,  as historiadoras Iva Cabral (por exemplo no estudo “António de Barros Bezerra, o “Régulo da Ilha de Santiago” e no livro As Elites Coloniais de Santiago de Cabo Verde) e Zelinda Cohen (por exemplo, no estudo “A Carta de 1546 no Percurso da Integração dos Baços e dos Pretos da Ilha de Santiago” e no livro Os Filhos da Folha) reforçariam a sustentação dos fenómenos sociológicos e histórico-antropológicos acima referenciados, comprovando-os com dados historicamente documentados. Deste modo e como, aliás, constataram Baltasar Lopes no ensaio “Uma Experiência Românica nos Trópicos” e Gabriel Mariano no ensaio “Nome de Casa e Nome de Igreja”, essas elites nativas transformar-se-ão no principal intermediário na veiculação no chão de Cabo Verde dos valores coloniais e de importantes componentes da cultura colonial lusitana vigente em Cabo Verde, incluindo da língua portuguesa, ao mesmo tempo que potenciarão a nobilitação da cultura caboverdiana, quer investindo na sua matriz euro-ocidental, muito sobrevalorizada, quer operacionalizando a sua disseminação, incluindo do idioma materno crioulo, pelas esferas consideradas mais nobres e pelos espaços mais elitistas da sociedade colonial implantada nas ilhas, e, assim, condicionando e, de certo modo, restringindo os processos de assimilação colonial. Elites formadas por seres-de-dois-mundos, compartilhados entre as mundividências incutidas pela cultura escolar de matriz colonial portuguesa e as vivências transmitidas pela cultura popular caboverdiana, em cujo resgate a pretensão da sua especificidade cultural e a legitimidade do seu papel de intermediação colonial encontrava sustento e era sustentáculo, a sua alienação colonial, irrefutável, apesar de traços muito próprios provenientes de vivências pessoalmente experienciadas como autênticas, não pôde obliterar o sentimento de marginalidade, típica dessa alienação e patente quer na defesa do ideário de igualdade e de cidadania plena de todos os portugueses de lei (na sagaz terminologia dos nativistas, em especial de Pedro Cardoso), independentemente de serem metropolitanos (ou reinóis, na designação mais arcaica e antiga) ou coloniais (ou ultramarinos, na denominação mais recente), quer nos propósitos cívico-políticos e identitários  luso-adjacentistas e luso-regionalistas claridosos. Muito ciosas da sua autonomia de iniciativa no solo das ilhas, autonomia essa historicamente conquistada e adubada em raízes de suor, sangue e persistência, mas assoladas pelas suas vulnerabilidades intrínsecas e pelas fragilidades das “pobres ilhas que as viram nascer” (expressão muito recorrente entre os letrados caboverdianos do período colonial), as elites culturais, económicas, burocrático-administrativas e sociais caboverdianas eram também muito dependentes da tutela colonial para a manutenção do seu estatuto de pequena burguesia de serviços e de pequena burguesia comercial, industrial e fundiária, isto é, das suas funções de intermediário social, económico e cultural entre o poder colonial e as populações, não só no chão das ilhas como também no quadro do império colonial português. Essas funções de intermediário social e político-intelectual (para utilizar um conceito operatório recorrente nos livros Intelectuais, Literatura e Poder, de José Carlos Gomes dos Anjos, e A Diluição de África (...), de Gabriel Fernandes)) surgiam, aliás, em plena congruência com o papel de plataforma transatlântica e entreposto inter-continental no tráfego e no comércio internacionais  que Cabo Verde desde muito cedo desempenhou, tanto no contexto, primeiramente, do tráfico negreiro e do comércio triangular transatlântico com base na cidade da Ribeira Grande e na vila da Praia, na ilha de Santiago, e na vila de São Filipe, na ilha do Fogo,  e, depois,  no contexto de reabastecimento dos navios a vapor como lugar optimamente localizado a meio-caminho entre as duas margens do Atlântico e com ancoragem no celebrizado Porto Grande da recém-nascida, mas muito dinâmica cidade do Mindelo, na ilha de São Vicente, bem assim como lugar sediado na ilha da Boavista na Vila do Porto Inglês (mais tarde denominada Vila de Sal-Rei) de vigilância e controlo britânicos dos agora interditados tráfico negreiro transatlântico e comércio triangular de escravos e plataforma de reabastecimento dos navios baleeiros americanos localizada nas ilhas da Boavista, do Maio e do Sal (nestes dois últimos casos, sobretudo para o comércio do sal).

A acima referida função de  intermediário social e político-intelectual exacerba-se  paroxística e especialmente no quadro ultramarino do império colonial português pós-Acordo de Berlim de 1886 e as suas famigeradas  deliberações de conquista e ocupação efectiva dos territórios africanos  eventualmente reivindicados como única fonte de legitimação da posse colonial desses  mesmos territórios com a reivindicação pelas elites caboverdianas de uma legitimidade luso-crioula que assentava no seu secular colaboracionismo com a mãe-pátria lusitana, como, aliás,  defende José Carlos Gomes dos Anjos na obra Intelectuais, Literatura e Poder, mesmo se, por vezes, expressando-se como um colaboracionismo rebelde, como tempestivamente complementa Gabriel Fernandes na obra da sua lavra acima referenciada. 

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