CAPÍTULO TERCEIRO
A RATOMACACOHUMANOLOGIA – Segunda parte
Bem vistas as coisas, o Leão também não se comportava com a devida circunspeção ou com a ortodoxia que seria de esperar. Pois, uma acentuada e súbita defetividade mnemónica foi-lhe diagnosticada quando perguntou ao deputado que ladra, em qual carro tinha sido entregue pelo Vicente com destino ao Porto Santiago, esquecendo-se de que esse deputado lhe havia dito que não estava enxergando por causa de uns pensos que trazia espalmados nos dois olhos, em virtude de uma cirurgia a que fora submetido às cataratas. Quiçá, pela sobreposição do cansaço à vaidade, ou simplesmente por habitual descuido, notava-se que o semblante do rei leonino imprimia alguma debilidade, que nem Vicente quando lhe respondia às interpelações. Admitiu, porém, que era useiro e vezeiro em se intrometer nos assuntos alheios, que isso se devia à força do hábito, mau feitio ou atrevimento, característica peculiar das Moscas. Pediu desculpas ao deputado ladrador e, só não foi necessário o mesmo à atrevida Mosca porque esta se encontrava «ta djongo» [a sonambular]. Mandou, então, o deputado Cão continuar. E este, por sua vez, antes de pegar no fio da meada sobre a fatídica viagem de Hiace entre Praia Maria e Porto Santiago, agradeceu com aceno de cabeça e um muito obrigado, para depois prosseguir:
– Conforme estava a dizer, quando cheguei ao Porto Santiago, desci do carro na porta do Pelourinho, dei ao ocupante do banco ao lado do condutor, uma nota de mil escudos e fiquei à espera de troco. De rompante senti o carro arrancar acelerado e partir. E o meu troco lá se foi.
– Não apresentaste queixa à Polícia pelo crime de extorsão? – Interrogou Leão. – Não foste perguntar ao Vicente? Ou ele já não estava quando entraste no carro?
– Foi ele que me pôs dentro do carro e sentado no banco.
– Então… não lhe foste perguntar que carro era? Quem era o condutor ou o ajudante?
– Perguntei-lhe, mas ele disse-me que já não se lembrava.
– Já havia passado quanto tempo, quando lhe foste perguntar?
– Logo no dia seguinte.
– Em menos de 24 horas, ele já não se lembrava?!
Admirou-se Leão, esquecendo-se de que há bocado, ele também se tinha esquecido de que o deputado Cão lhe dissera que tinha as lâmpadas fundidas. E entretanto, muito desajeitado, do fundo da sala Vicente deu umas esfarrapadas explicações:
– Não me lembrava e ainda não me lembro. Já tinha passado mais do que um dia! Acham que eu ia saber se era Hiace, Dina ou Hilux? Se o condutor era Lino de Tomás Preta, Pã de Elísia ou Joãozinho Elétrico? Ou se o ajudante era Pepita, Rui de Achada Fazenda ou Solinha? Isto é que faltava!
– É por isso que, como não pude saber que carro foi e nem quem era o condutor ou ajudante, sempre que vejo um carro a passar, lembro-me, sinto raiva e corro atrás dele.
Banzo com a incompreensível e o injustificável padecimento do Vicente que, possesso com a moléstia legada pela Mnemosine, a titânide filha da Gea e do Urano, cumulativamente com a falta de humildade, da lealdade e do bom senso suficientes para assumir e auto responsabilizar-se, o Leão interpelou-o num tom um tanto desafiador:
– Não te lembras de uma coisa que se passou há menos de 24 horas, Vicente?
– Lembrar, eu lembro-me. Lembro-me de tê-lo posto num carro, acho que em Sucupira ou na Fazenda em frente à Caixa Económica. Mas qual era o carro… já não me recordo.
Ficaram atónitos com a fraca memória do Vicente. Mas este não se inquietou e, no maior relaxe, quiçá, desmazelo ou simples abandalhação, deixou escapulir um arroto seguido de um barulho flatuloso expelido pelo orifício localizado imediatamente debaixo do rabo, cujo som Brrrru penetrou nos ouvidos e se incrustou e ficou retido na massa cinzenta dos auditores que, pelas narinas foram obrigados a inalar o fétido gás provindo dos intestinos vicentinos.
– Isso! Brrrrru é o que tu és – disse deputado Cão, furibundo. – O Vicente não é assim só de hoje. O meu avô tinha um igual. Era estúpido e muito porcalhão.
Antes de interiorizar qual a semântica da palavra porcalhão, o Leão ficou apreensivo e bastante indignado com a ousadia do animal que ladra e que às vezes imita o Lobo, uivando. Pois, ele nem Porca tinha… nunca teve nenhuma. Então interrogou-o:
– A minha Porca?! Mas porque é que disseste Porca do Leão?!
Muito mais ainda sem jeito, num tumulto de confusão e chacota, o deputado Cão, que não só titubeava como também tiritava perante a tamanha e aviltante afronta, meteu o rabo entre as pernas, baixou as orelhas e justificou sob o olhar repreensivo do temível Leão.
– Não… senhor. Des… culpe. Queria dizer patife. Vicente do meu avô era muito patife.
Pela gaguez, embora mal ensaiada desta família de mamíferos digitígrados, da ordem dos carnívoros como Lobo, Coiote, Chacal, Mabeco [Cão-selvagem-africano ou cão-caçador-africano] e Raposa, o Leão acabou por perceber qual a razão da confusão que rodopiava na mente do animal tido como o mais amigo dos Homens-Bichos. E concluiu qual era a sua intenção. Condoeu-se e concedeu-lhe mais uma atenuante:
– Já percebi qual é a tua confusão, Cachorrão.
– Muito obrigado, mais uma vez – agradeceu de novo o filho da Cachorra.
– E o que foi que aconteceu com o Vicente do teu avô?
– Foi há uns anos atrás. A chuva não caía e o pasto escasseava. Os animais começaram a sofrer e os criadores ficaram desesperados. Muitos venderam os seus Bichos ao desbarato para não os verem perecer à fome. O Governo tinha um amigo, quiçá, família, que importava rações do estrangeiro e vendia aos criadores, tanto industriais como domésticos. Mas esses últimos não tinham condições para adquirirem rações necessárias. O Governo instituiu um crédito e disponibilizou, por cada saco de ração que um criador adquirisse nessa loja, um vale/cheque no valor de 300$00. Mas um saco de ração custava 1.500$00, pelo que, o criador que quisesse adquiri-lo teria que disponibilizar da sua parte, 1.200$00 por cada saco. O meu avô não tinha condições. Alimentava os seus animais com papéis e punhados de capim secos que apanhava nas ribanceiras. Normalmente, quando ele chegava ao pé dos Bichos, coitados já estavam muito esfomeados. Certo dia, ao aproximar-se do curral onde havia um Carneiro, este, num tom extremamente magoado, expressou: – Beeeh, Domingos! Só agooooora? – O meu avô chamava-se Domingos. Ele dirigiu-se depois para o curral onde o Vicente se encontrava e atirou-lhe um bocado de erva seca. Mas este embirrou e não quis comer. O meu avô, de uma forma muito subtil, colocou-lhe nos olhos um par de óculos com vidros verdes, o cabrão do Vicente devorou a erva com o apetite de um Lobo esfaimado.
O deputado Lobo, que na verdade estava com muita fome, tanta fome que nem forças para abrir a boca e bocejar lhe restava, fingiu-se zangado ao ouvir o seu nome pronunciado pela boca do afoito delegado dos Cães. E anunciou, como protesto, organizar uma manifestação pacífica e levar a cabo uma greve de farto durante uma semana. Ato contínuo, ouviu o zunir de um inseto e, sem olhar para o lado, deu-lhe zapo. Era um Luís Lopes [Inseto parecido com a abelha, de cor preta] que lhe voava bem pertinho da cara. Apanhou-o, levou-o à boca e, antes de o trincar, uma valente picada ferrou-o na língua. Mas ele não o cuspiu. Engoliu-o, limpou a garganta e uivou:
– Pouco, mas forte! Está bem temperado!
Durante semanas a fio, o Lobo não parava de comer. Comia tudo quanto lhe aparecia pela frente… tudo quanto lhe surgia ao lado… às vezes até, tudo quanto lhe despontava por trás. Não se importou com a qualidade, nem com a higiene ou o estado de conservação do que comia. O que mais lhe interessava era a quantidade e manter a pança sempre esticada. Mas às vezes ignorava a quantidade. O que ele mesmo queria era comer e estar sempre a comer. Comia doce ou amargo, insosso ou salgado, quente ou frio, cru ou cozido, fresco ou azedo, assado ou cozinhado, fritado, guisado ou refogado, dele ou dos outros. Conforme disse, o que lhe interessava era a quantidade e muita quantidade. Para ele, o maior prazer do mundo era sentir o estômago pejado, quase a rebentar pelas costas. E quando suspendeu a greve, por imperativo do tempo que chegara ao fim, estava demasiado gordo. Diria mesmo que estava obeso. E um dia sentiu-se mal. Ficou a mijar excessivamente e com maior frequência do que antes. A boca ficava-lhe ressequida e deixava-lhe com a sensação de que dela saíam chamas escaldantes ou ardentes labaredas. Bebia bastante água, de forma constante, às vezes até que o estômago lhe ficasse dorido. Acabou, um dia, por desfalecer e entrar em coma profunda. Levaram-no de imediato às urgências do Hospital e foi-lhe diagnosticado diabetes mellitus tipo 1. O médico recomendou-lhe uma dieta rigorosa, onde a quantidade ingerida de proteínas deveria ser diminuída. Para não comer muito nem todo o tipo de comida. Para evitar coisas fritas, gordurosas ou muito doces. E disse-lhe para não comer demasiado e nem constantemente. Ele respondeu e disse que não era comilão. Que só comia quando estava com fome ou quando a comida aparecesse. Que das coisas fritas que comia apenas constavam: Ovos, moreia e torresmo, sem muito exagero. Apenas sete vezes por semana. E das coisas doces comia apenas gemada feita de 2 ovos com um quarto de açúcar, isto é, só no fim de cada tarde, antes do jantar. E prometeu agradar ao clínico, acatando os seus conselhos. E elaborou um plano dietético à semelhança de um solteirão preterido recentemente pela esposa. Sempre que comia lambia o prato e deixava-o totalmente limpo; tomava o pequeno-almoço sempre depois das 10:00h para que lhe servisse como almoço ao mesmo tempo; bebia um garrafão de 5 litros de vinho de uma só assentada para evitar beber várias vezes ao dia; não podia comer carne de Porco, só comprava nos talhos a carne da Porca; não podia comer carne da galinha na parte do peito, pedia para lhe vender o peito do galo.
Certo dia, ele passou por uma fornalha e deram-lhe uma garrafa de grogue, depois de estar já nos limites da bebedeira. Pelo caminho, ele despenhou-se numa ladeira e foi parar ao fundo da ribeira. Tentou segurar a garrafa, mas, sem conseguir explicar, a garrafa de aguardente divorciou-se do seu aconchego por alguns instantes. Notou-se que uma das suas coxas estava molhada. Passou a mão por cima e retirou-a toda atolada de sangue. Assustado, arregalou bem os olhos, reparou na sua mão e disse:
– Graças a Deus! Felizmente é sangue!
Olhou para trás e viu a garrafa intacta, jazendo à escassa distância dele.
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