Estado da Nação e a urgência do "impeachment" na legislação caboverdeana
Colunista

Estado da Nação e a urgência do "impeachment" na legislação caboverdeana

 
 
Nota: "impeachment" é o poder de acusar o governo do país por crime de responsabilidade.
 
1. Depois de assistir ao estado inimaginável a que chegou o ataque à liberdade de expressão, comunicação e informação em Cabo Verde, só há um único pensamento que me ocorre a partir desta constatação. É sobre a necessidade de que deveria haver uma forma prevista na lei para suspender o mandato de um governo, no caso de se verificar uma situação de ataque a um dos pilares fundamentais da democracia como o é a liberdade de expressão, comunicação e informação, tal como se está a viver agora, nestes últimos tempos,  em Cabo Verde;
 
2. Dito de outro modo, para mim, a maior lição deste último Estado da Nação é que deveria-se aproveitar a próxima revisão da Constituição da República para se introduzir a figura de "impeachment", mas para o governo, embora com inspiração na prática presidencial, designadamente, dos Estados Unidos da América e Brasil,  em que para o caso de ocorrerem factos graves no decorrer do mandato, há a possibilidade de se abrir um caminho que pode levar à demissão do presidente da república, enquanto chefe de governo nesses dois países. Esta medida teria efeitos extraordinários, pondo fim àquela ideia trocista de "agora somos nós, vocês que aguentem até daqui a quatro anos". Assim, face à existência dessa possibilidade, o governo ficaria sobre a pressão permanente do risco de perder o mandato face a desvios graves - como estamos a viver!
 
3. O ataque à liberdade de expressão, comunicação e informação atingiu níveis extremamente graves: i) Duas censuras na televisão do Estado, uma a jornalista e outra por recusa de cobertura a iniciativa de juventude de partido político; ii) Sonegação de informação governamental sobre negócios aéreos públicos nos casos de TACV e Binter; iii) Informação governamental falsa sobre questões internacionais; e iv) Ataque à liberdade de expressão sindical com reforma compulsiva de líder de sindicato por ter liderado uma greve garantida pela própria Constituição da República;
 
4. Este ataque à liberdade de expressão que se efetiva nestas quatro afrontas de profunda gravidade poderiam, perfeitamente, ser consideradas razão suficiente para se solicitar o fim de mandato. Vejamo-los um pouco mais em detalhe. Em primeiro lugar, a ameaça direta da liberdade de imprensa, com o ataque à comunicação social que vai desde a censura na Televisão de Cabo Verde, com os casos do jornalista Rui Santos e de não cobertura à JotaPAI, ambas situações que levam à condenação da TCV pela Autoridade Reguladora para a Comunicação Social (ARC) e até a uma multa no caso da censura ao texto do jornalista; ameaça que passa pela ofensiva para o silenciamento de jornalistas da rádio e televisão públicas com a tentativa de imposição de um código de ética amordaçador, liminarmente rechaçado pelos visados; indo até ao fracasso no redesenho da agência noticiosa do Estado, a Inforpress, onde o Governo falhou a aposta no jornalista Carlos Santos e a nova diretora contratada, por concurso, bateu com a porta ao sentir intromissões expressas no seu trabalho de liberdade;
 
5. O segundo ataque grave que sustenta esta necessidade de "impeachment" é revelada na total falta de transparência que tomou conta dos negócios do Estado, com a sonegação de toda e qualquer informação. Como é possível que um governo tenha a "cara de lata" para esconder do povo os contratos que assina em nome desse mesmo povo? A Icelandair já veio e já se foi embora e até se diz que está para vir outra vez, mas não há um único contrato que seja do conhecimento público, mas já há propostas de compra de percentagens dos TACV. O mesmo vazio de informação acontece em relação à Binter, à qual foi oferecida o monopólio dos vôos internos com a prévia concertada extinção das operações entre ilhas pelos TACV;
 
6. O terceiro facto grave: o desvario e motivo de chacota em que Cabo Verde se tornou na arena internacional devido a comunicações sem nexo que levaram a desmentidos ao país, primeiro por uma ministra, a de educação de Angola, a dizer que nenhum professor vai sair de Cabo Verde para ir para lá, pois tinham capacidade interna suficiente para responder às necessidades do seu país. Depois, é uma embaixada, agora da Suíça, a afirmar que não há livre circulação em horizonte nenhum. Apenas as mesmas facilitações de sempre, para os mesmos de sempre. A estes falhanços na comunicação na arena internacional, junta-se a vexatória intervenção de Cabo Verde no "Horasis Global Meeting", através do seu primeiro-ministro, naquele inglês, e a onda de troça que inundou as redes sociais nos dias seguintes;
 
7. Por fim, o quarto facto de grande gravidade foi o ataque vil ao sindicalismo caboverdeano. Entre as várias tomadas de posição públicas, há a do presidente da Confederação Caboverdiana dos Sindicatos Livres (CCSL), onde está filiada o sindicato dos agentes policiais. Para José Manuel Vaz, Cabo Verde "cai de 'banda' e perde cotação em matéria do Índice do Desenvolvimento da Liberdade e Democracia Sindical Nacional". Como é possível num estado de direito democrático ser negado o direito à livre expressão da vontade de trabalhadores para se reunirem e organizarem greves e outras formas de luta previstas na lei?
 
8. Julgamos que com estes factos reveladores de um ataque, sem precedentes, à liberdade de expressão, comunicação e informação, ficamos ainda mais seguros da necessidade de introdução de uma forma legal de, face a erros graves na gestão dos interesses de Cabo Verde, o governo seja demitido para que não continue a afundar o país cada vez mais até que, no final do mandato, tenha já atingido um ponto de não retorno!

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SOBRE O AUTOR

Francisco Carvalho

Político, sociólogo, pesquisador em migrações, colunista de Santiago Magazine

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