Insustentáveis pescarias extrativistas
Ponto de Vista

Insustentáveis pescarias extrativistas

Podem ter mudado os perfis e os títulos nobiliárquicos, pode até o discurso ser mais delicodoce e a ação mais polida, mas, na essência o pretérito paradigma das relações entre estados e territórios colonizados, por razões diversas, não se alterou. E não terá sido por falta de alternativas, não, bem pelo contrário, a manutenção do “status”, que promove um miserável “quo vadis”, tem sido essencial para a manutenção da pobreza e dependência económica, que estão na origem de tratados ruinosos, como é exemplo o malogrado acordo de pescas. Cuja severidade da pena, que inflige à nação cabo-verdiana, vai muito além dos míseros trocados a que é vendido o peixe subtraído ao seu oceano. A cultura extrativista da UE não sucede apenas em mar cabo-verdiano, não, infelizmente, essa prática invasiva está disseminada por todo o território. A extração de população dos cantos e recantos das ilhas, para acudir a aflição demográfica dos estados europeus da união, é, neste momento, um dos alvos prioritários!

Bote, à vista de todos [ Santo Antão, art project not supported by EU ]

Por estes dias, a sociedade civil cabo-verdiana tem-se debatido com o drama da renovação do polémico acordo de pescas, que continua a conceder à União Europeia (UE) a pesca do atum e espécies afins por uns míseros 13 escudos o quilograma de pescado.

De facto, não faltam razões para se questionar a oportunidade de um tratado que, há mais de três décadas, acima de tudo e todos, tem viabilizado as agressivas práticas extrativistas da UE, em mares outrora esventrados por navios negreiros.

O custo de vida cada vez mais insuportável, a precariedade do sector pesqueiro, a ausência de infraestruturas para conservar o pescado, o eterno adiamento de obras e melhorias em praças e mercados de peixe, as dificuldades imensas que as famílias enfrentam para conseguirem sobreviver à passagem dos dias…

E o rendimento médio que desce de dia para dia, e o salário estagnado da função pública, e a instabilidade do setor privado, e as remunerações suspensas dos professores deslocados, e as viagens entre ilhas que continuam a provocar náuseas e compromissos quebrados, e… o êxodo da população que foge das ilhas, para encontrar sustento noutro chão!

Sim, de facto, face à carestia que se agiganta, não faltam argumentos para se questionar a extensão de um acordo extrativista que, desde 1990, de forma clara e objetiva, tem contribuído para validar a pilhagem e a rapina do mar territorial de Cabo Verde (CV), subtraindo rendimento e esperança de vida à generalidade da sua população.

Lamentavelmente, as pessoas que vivem exclusivamente da sua força de trabalho, parecem condenadas a viver entre o limiar da pobreza e uma minguante subsistência, em virtude dos sucessivos golpes financeiros e dos constantes atentados capitalistas, de que têm sido alvo. E, quando esta estranha forma de vida calha de ocorrer sobre o insular chão de um território (outrora) colonizado, a pena é ainda mais difícil de suportar!

E não, a insuportabilidade não é mera obra do acaso geográfico, tão pouco delírio de alguma entidade divina. Não, bem pelo contrário, a severidade e a escassez de rendimentos, que afetam, no presente, o povo das ilhas, são, acima de tudo, resultado das imprudentes opções estratégicas nacionais e da subordinação dos governantes, e das suas desastrosas políticas públicas, à lógica global de acumulação do capital, que impera desde tempos coloniais.

A perversidade, subjacente ao negócio de concessão da exploração piscatória à UE, por meia dúzia de trocados, tem tudo para provocar um colossal sobressalto cívico, com energia e força bastantes para fazer recuar de vergonha os manhosos diplomatas, que desviam o atum da “mesa” dos cabo-verdianos.

Face às evidências do abuso, exigir-se-ia aos cidadãos europeus uma atitude de maior escrutínio, envolvimento e responsabilidade, relativamente às consequências e prejuízos que estas incursões extrativistas infligem à vida dos cabo-verdianos e à sustentabilidade dos oceanos.

Mas, infelizmente, o debate, que a pescaria europeia fez eclodir no seio da sociedade civil em Cabo Verde, não ecoa em Portugal. Pois, e apesar de ser um dos países autorizados, pelo acordo, a participar na pilhagem de 35 000 toneladas de atum e tubarão (espécie em vias de extinção) nos próximos 5 anos, a matéria não cabe nas agendas mediáticas nem comove a generalidade dos cidadãos. Desgraçadamente, a maioria dos consumidores portugueses ignora a façanha extrativista que ocorre lá longe, em território marítimo cabo-verdiano. Acresce, a este malfadado descaso, a falaciosa concepção, engendrada pelas poderosas e caríssimas operações de marketing político, de que o território crioulo é todo ele um imenso resort, onde impera a Morabeza e o No Stress, para onde é facílimo voar.

 

o abismo da desilusão, ancorado na praia de Salamansa [ São Vicente, art project not supported by EU ]

Contudo, como nem todos embarcam em atuneiros, nem se deixam arrastar por palangreiros, contribuir para a reflexão e o debate, em nome da oposição aos consensos autoritários, é demanda cívica que, à margem de subsídios ou financiamentos europeus, urge continuar a praticar!

Apesar de ser cidadã nascida e criada num estado membro da união europeia, foi em Cabo Verde que, em 2019, tive oportunidade de, pela primeira vez, participar na celebração oficial do Dia da Europa!

Com pompa, circunstância e arrogância bastantes, os convivas de fato e gravata, com a chancela da União Europeia ao peito, ocuparam, lá no Alto da Morabeza, as instalações do recinto arrendado pelo Camões - Centro Cultural Português, Polo do Mindelo (CCP) à Academia Livre de Artes Integradas do Mindelo (ALAIM). Nesse insólito palco, decorreu a sobranceira intervenção da então Embaixadora da UE em CV, Dra. Sofia Moreira de Sousa, que liderava um amplo corso de figuras de Estado de CV e Portugal.

E, de facto, quem viu e ouviu a Sra. Embaixadora, a declamar o seu discurso, ficou esclarecido quanto ao miserável estado em que se encontra a relação bilateral.

A narrativa, num registo de “somos os donos disto tudo”, discorreu entre a filantropia, a cooperação abnegada e os obséquios concedidos pela UE ao povo crioulo. Pelo meio, enquanto enumerava as graças, oferendas e vantagens da parceria especial, a Sra. Embaixadora, referindo-se ao acordo de pescas, teve a audácia de dizer que a UE fazia um enorme favor a CV, pois as embarcações europeias apenas pescavam em alto-mar aquilo que os frágeis barquitos crioulos eram incapazes de alcançar!

A intervenção de Sofia, proclamada sem cerimónias frente ao, então, Ministro do Mar, e demais figuras responsáveis pelas políticas públicas do sector das pescas de CV, para além de configurar um grave e grosseiro desrespeito diplomático, colocou em evidência o pedantismo e a arrogância que caracterizam a demoníaca e hegemónica cultura do extrativismo europeu, praticada sem vergonha por esse mundo afora.

Lamentavelmente, a sobranceria da UE não cessou com o término da Comissão de Sofia, pois de imediato surgiu outra senhora para assumir o ofício da embaixada e dar continuidade ao uso e abuso da narrativa da inexistência de uma frota crioula, capaz de aproveitar os recursos piscatórios da sua própria zona económica exclusiva.

Recém-chegada ao arquipélago, a Sra. Embaixadora subiu ao palco do auditório do Centro Cultural de Mindelo e, no âmbito de uma conferência sobre oceanos e economia azul (abril 2022), repetiu a deselegância. Frente a uma audiência maioritariamente estrangeira, voltou a brindar o Ministro de mar com uma alocução arrogante, dando claros e inequívocas sinais de que a equidade da relação, gerada no seio de uma especial parceria, não terá passado de uma oficiosa quimera!

Infelizmente, esse irresponsável e sobranceiro exercício de escárnio e mal-dizer, tónica dominante da ação dos representantes da UE em territórios “especiais”, sucede sem uma cabal resistência. Resultado, o implacável poderio dos euros e a hegemonia das redes de influência, dos grandes capitais internacionais, vão fazendo vergar a soberania e independência dos estados, bloqueando a autodeterminação e emancipação dos povos e, para desgraça da sua população, a República de Cabo Verde não tem sido excepção.

Contrariando o propósito inicial da parceria especial, o relacionamento entre a UE e CV está cada vez mais tradicional. A falaciosa retórica discursiva, assente na concepção do doador / beneficiário, que deveria ter sido progressivamente ultrapassada, está presente e em força sempre que os interlocutores europeus anunciam os patrocínios, apoios, fundos e subsídios concedidos aos “parceiros”. Porém, que benefícios retira a UE dessas doações, é matéria que, pese embora esteja à vista de todos, continua a escapar à vanglória desses anúncios!

Contudo, por mais que tentem dissimular, as inúmeras evidências da desgraça, operada por essa forma de açambarcar o mundo, falam por si. Pelo que a fábula da benemérita ação da UE é cada vez mais difícil de sustentar.

Não há cidadão honrado que, após se ter deparado com as “oferendas” europeias, não tenha uma estória sinistra para narrar, ora os subsídios que se diluem no ar antes de chegarem ao destino, ora os workshops e formações financiadas, que não passam de performáticas recolhas de assinaturas de formandos fictícios, ora as mil e uma placas descerradas para assinalar a conquista de território, ora o patrocínio de projetos pro(to)culturais, que visam silenciar vozes discordantes e amansar criativos desalinhados, ora a discricionária distribuição de fundos aos “amigos”, ora a ingerência na gestão político-partidária dos assuntos internos, ora a aculturação mascarada de auxílio, ora um infindável rol de estórias sórdidas, com as quais nos habituamos a conviver sem questionar.

Lamentavelmente, por mais evidentes que sejam as falácias e as retóricas discursivas, a supremacia da UE não vacila e continua a ditar as regras do sórdido jogo, ao qual as elites políticas e as cortes intelectuais, dos países “beneficiários”, se adaptaram sem pestanejar!

Mas apesar de todos os ataques e improbabilidades, a inviabilidade da nação cabo-verdiana, vaticinada por muitos, ao amanhecer da sua independência, não se confirmou! Tal superação, na perspetiva dos tecnocratas e especialistas estrangeiros, ficou a dever-se, quase em exclusivo, à benemérita proteção da UE. Porém, esses pareceres oficiais estão feridos do pecado (do) Capital, pois ousam existir remetendo para as margens e notas de rodapé a perspetiva dos cidadãos alegadamente protegidos. Houvera coragem e lisura intelectual, para integrar nesses folhetins propagandísticos, a estoicidade do povo, que na sua labuta diária resiste à lestada dos ventos capitalistas e enfrenta a secura da bruma neoliberal, e a história sobre quem garante a viabilidade da nação crioula seria outra!

Na realidade, quem experimenta a lonjura que separa as narrativas oficiais da vida-crioula-de-todos-os-dias, jamais poderá considerar razoável a teoria de que a República de Cabo Verde, sem os apoios da UE, seria apenas uma amálgama de gente pobre, perdida no Atlântico!

Efetivamente, ao contrário do que anunciam os comunicados, escritos em linguagem supremacista, perdida está a credibilidade do projeto europeu. Pois, de tanto extrair e explorar recursos naturais e humanos, em benefício das grandes fortunas e acumulação de capitais, devassou a esperança e empobreceu a generalidade dos cidadãos! Mas, o que poderíamos esperar de uma União de estados com vasta e comprovada experiência na selvática colonização de territórios alheios?

Podem ter mudado os perfis e os títulos nobiliárquicos, pode até o discurso ser mais delicodoce e a ação mais polida, mas, na essência o pretérito paradigma das relações entre estados e territórios colonizados, por razões diversas, não se alterou. E não terá sido por falta de alternativas, não, bem pelo contrário, a manutenção do “status”, que promove um miserável “quo vadis”, tem sido essencial para a manutenção da pobreza e dependência económica, que estão na origem de tratados ruinosos, como é exemplo o malogrado acordo de pescas. Cuja severidade da pena, que inflige à nação cabo-verdiana, vai muito além dos míseros trocados a que é vendido o peixe subtraído ao  seu oceano. A cultura extrativista da UE não sucede apenas em mar cabo-verdiano, não, infelizmente, essa prática invasiva está disseminada por todo o território. A extração de população dos cantos e recantos das ilhas, para acudir a aflição demográfica dos estados europeus da união, é, neste momento, um dos alvos prioritários!

E, pelos Vistos (cuja facilitação da emissão permanece, desde 2008, por aprovar) tudo leva a crer que a cultura extrativista está para durar! Pois, enquanto houver atum e jovens para arrastar os armadores europeus hão-de continuar a pilhar terra e mar!

A Europa Sábi!

 

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