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A imortalidade em tempos de pandemia. Apontamentos avulsos de um confinado por mor da vigente situação de calamidade pública sanitária
Cultura

A imortalidade em tempos de pandemia. Apontamentos avulsos de um confinado por mor da vigente situação de calamidade pública sanitária

SÉTIMAS E PRÉ-DERRADEIRAS ANOTAÇÕES SOBRE A DIFERENCIADA POSTURA LINGUÍSTICA E IDIOMÁTICA DE UM CERTO, DETERMINADO E POTENTE TRIUNVIRATO POLÍTICO PÓS-COLONIAL E DA COGITADA HIPÓTESE DE O PRÉMIO CAMÕES 2018, O CABOVERDIANO GERMANO ALMEIDA, SE TORNAR FINALMENTE UM ESCRITOR BILINGUE, EM LÍNGUA PORTUGUESA E EM IDIOMA CABOVERDIANO, ENTREMEADAS DE ALGUNS DECISIVOS MONÓLOGOS INTERIORES E DE ESPORÁDICOS E TALVEZ (IN)CONVENIENTES, MAS MUITO CONVINCENTES EXCURSOS À ESQUECIDA, IGNORADA E MUITO MAL-CONTADA HISTÓRIA DAS NOSSAS ILHAS SAHELIANAS, OUTRORA ISOLADAS, ESQUECIDAS E ABANDONADAS NO ATLÂNTICO MÉDIO E ACOMPANHADAS DE ALGUNS EXCURSOS EVOCATIVOS E MEMORIALÍSTICOS ÀS VIDAS QUASE DESVENDADAS DE ARISTIDES MARIA PEREIRA, PORFÍRIO TAVARES PEREIRA, ABÍLIO MONTEIRO DUARTE, DULCE ALMADA DUARTE, MANUEL MONTEIRO DA VEIGA, PEDRO VERONA RODRIGUES PIRES, ARNALDO CARLOS DE VASCONCELLOS FRANÇA, HENRIQUE TEIXEIRA DE SOUSA, ALGUM JOSÉ ANDRÉ LEITÃO DA GRAÇA E DO PRÓPRIO PRÉMIO CAMÕES 2018, GERMANO ALMEIDA

 

SECÇÃO QUARTA

ALONGADO E COMOVENTE ELOGIO

DO PORTUGUÊS LITERÁRIO CABOVERDIANO E DOS SEUS INVENTORES, OU DE COMO O PRÉMIO CAMÕES 2018, GERMANO ALMEIDA, SE EMOCIONA E DECIDE AFINAL APOSTAR NA TRADUÇÃO PARA O IDIOMA CRIOULO DE CABO VERDE DAS SUAS OBRAS ORIGINALMENTE ESCRITAS EM PORTUGUÊS

1. DO PORTUGUÊS LITERÁRIO CABOVERDIANO E DOS SEUS MUITO ILUSTRES E RESPEITÁVEIS INVENTORES CLARIDOSOS E RECRIADORES NEO-CLARIDOSOS

     De todos os modos, o melhor seria apostar no seguro.

     E o seguro é o nosso velho português literário caboverdiano, com provas dadas e francamente fiável, para além de comprovadamente viável, e a todos os títulos.

   Se não, vejamos: em que outra língua se encontram palavras e expressões tão doces, amoráveis e audazes como dinheiro ganho de riba de água de mar, criada em feliz síntese de toda a história trágico-marítima dos marinheiros caboverdianos embarcados nos baleeiros americanos e dos emigrantes que se lhes seguiram nas fábricas e nas colheitas de morangos e a abrir a obra Chiquinho, o primeiro romance moderno caboverdiano, da autoria de Baltasar Lopes, recordando, como quem ouve uma melodia muito triste, a casinha do Caleijão na ilha de São Nicolau mandada construir pelo pai de Chiquinho, de há muito embarcado nos Estados Unidos da América?

       E o que se pode dizer da palavra/expressão as-secas, inventada pelo impagável Onésimo Silveira e posta a circular no seu primeiro e, até agora, único romance intitulado As Sagas das As-Secas e das Graças de Nossenhor? Será possível criar um melhor lenitivo vocabular para se sentir confortado no tremendo confronto com a falta de chuvas, para se fazer face à absoluta ausência das as-águas?

     E ainda da expressão eles foram todos o seu caminho (do crioulo dja es kaba bai ses kaminhu e que em português convencional significa eles foram-se todos embora), da lavra de génese santiaguense de Virgílio Pires, considerado por Baltasar Lopes da Silva um mestre do conto curto, e que também marcou o português literário caboverdiano, não só pela inserção de termos crioulistas, mas também pela utilização de expressões morfossintácticas tipicamente crioulas, na frase construída em português, como bem ilustra a expressão acima citada.

       E não é porque estava na presença da sua pessoa (diga-se, aliás, que muito ilustre), que Baltasar Lopes se sentia como o indutor de um verdadeiro milagre na linguagem literária em Cabo Verde, e esse milagre consistiu em criar uma síntese literária altamente criativa entre o crioulo corrente nas ilhas e o português aprendido nas escolas e somente usual em forma coloquial nas conversas dos letrados e entre os funcionários das repartições públicas e dos serviços equiparados durante as suas horas de expediente. Para inventar o português literário caboverdiano, ínsito no romance Chiquinho, de Baltasar Lopes, teve o insigne e criativo escritor de recorrer aos conhecimentos científicos do filólogo das línguas românicas e do abalizado conhecedor de diferentes variantes do idioma crioulo das ilhas que foi o grande ensaísta Baltasar Lopes da Silva para, a partir da literatura, criar um modo próprio, certamente imaginado e artificioso, de o caboverdiano comum se expressar em português, fazendo uso de um código de expressão totalmente novo e autónomo, tornando-se e consolidando-se, ademais, também deste modo sui generis, como um ente crioulo sumamente singular e a todos os títulos.

     Ao contrário das formas de escrita criadas ou recriadas por outros autores lusógrafos, como, por exemplo, Machado de Assis, no Brasil, Luandino Vieira, em Angola, os escritores neo-realistas de diferentes países que tendem a reproduzir e a reconstruir a oralidade popular das classes laboriosas mais humildes, humilhadas, marginalizadas e exploradas, ou, mais recentemente, Mia Couto, em Moçambique, e José Eduardo Agualusa, em Angola, todos tendo como base, fundamento e ponto de partida da sua escrita uma oralidade ou um português coloquial pré-existente e realmente actuante no quotidiano como língua de comunicação oral de pessoas reais, denotando diferentes níveis de competência e performance linguísticas em português dos seus locutores, o português literário caboverdiano tende a preceder o futuro português coloquial da vindoura e generalizada oralidade informal caboverdiana de um futuro, efectivo e generalizado bilinguismo caboverdiano no chão fértil e descomplexado das ilhas e diásporas doravante verdadeiramente lusófonas, para além, é claro, de autenticamente crioulófonas.  

     Relembre-se neste contexto que, pelo menos, um dos articulistas caboverdianos da segunda metade dos anos oitenta do século passado do único semanário então existente, o célebre e infatigável jornal Voz di Povo, e participantes numa célebre polémica linguística que, em 1986, teve esse jornal como palco central, apontou um português distintamente caboverdiano, provavelmente fundado no português literário caboverdiano de invenção claridosa e, à semelhança do português brasileiro ou do emergente português angolano, como sendo o instrumento linguístico que viria finalmente resolver o problema da suposta irreconciliável e dicotómica opção entre o português e o idioma crioulo na cultura e na literatura caboverdianas. Curiosamente, esse articulista, defensor apaixonado de um português vernáculo de feição caboverdiana, era também originário da ilha fantástica de Germano Almeida, que pode ver assim resolvido, ainda por cima com o importante contributo de um patrício islenho, o seu possível, mas nunca seriamente encarado dilema de escritor bilingue em português e em idioma crioulo.

       Interessantes com os inventores-fundadores claridosos do português literário caboverdiano são as suas reiteradas tentativas de fixação de uma escrita do idioma crioulo. Tais tentativas foram encetadas não por via directa, por exemplo, através de propostas concretas no âmbito de um colóquio, seminário ou congresso linguístico, de âmbito nacional ou internacional, como ocorreu, por exemplo, com o chamado Colóquio do Mindelo, de 1979, ou de um grupo multidisciplinar de trabalho, como aconteceu com o Grupo de Padronização constituído em 1993 e que, depois de aturados estudos, propôs a adopção do Alfabeto Unificado para a Escrita do Caboverdiano (desde então, relembre-se, vulgarizado e/ou popularizado como ALUPEC), nem sequer através de artigos científicos publicados em revistas culturais generalistas ou especializadas.

     Tais tentativas efectivaram-se mediante a transcrição de letras de canções populares caboverdianas no corpo dos textos ficcionais e a sua incorporação nas falas das personagens e nos enredos ficcionais. É o que se nota, por exemplo, em Chiquinho, de Baltasar Lopes, em que é marcante a omnipresença de Frank B. Léza (Francisco Xavier da Cruz, assim nomeado simultaneamente pelo seu nominho e pelo seu nome artístico e que também respondia pelo nome de casa Frank de Nha Rosa), um dos mais prestigiados músicos e compositores da morna, e não só, de todos os tempos caboverdianos. É o que se nota igualmente com os romances e contos de Manuel Lopes, Henrique Teixeira de Sousa, Manuel Ferreira ou Gabriel Mariano. Em todos eles, verifica-se um esforço de utilização do alfabeto português para escrever o idioma caboverdiano, adaptando esse alfabeto às sonoridades específicas do nosso idioma nacional. Em alguns desses escritores, com destaque para Henrique Teixeira de Sousa (precedido por Pedro Cardoso) é notória a tentativa de se fundar a escrita do idioma crioulo numa base coerentemente etimológica. É, assim, por exemplo, que em vez de escrever “cretcheu”, como habitualmente, e até pelo muito informado Baltasar Lopes do romance Chiquinho, Teixeira de Sousa prefere escrever “qu´rê cheu”.

       Deste modo, e também por esta via original, podem esses ficcionistas ser legitimamente considerados escritores caboverdianos bilingues literários na língua portuguesa e em idioma crioulo, independentemente da extensão da obra literária no nosso idioma crioulo que possam ter produzido, como ocorreu com Jorge Barbosa e Manuel Lopes, autores de raros e esparsos poemas em idioma crioulo, mas sobretudo com Henrique Teixeira de Sousa, autor, desde os tempos da folha liceal Juventude, fundada em Dezembro de 1936, na cidade do Mindelo, e continuada em outras publicações periódicas dos seus tempos de estudante universitário em Lisboa, de uma importante recolha do cancioneiro poético da sua ilha natal do Fogo, assinada com o pseudónimo Bilocas.

   Notável é a sistemacidade posta nessa escrita e que, de outro modo, é bem visível na transcrição dessas mesmas letras de canções caboverdianas e, ainda mais, em Noti, o livro de poemas na variante santiaguense do nosso idioma crioulo, de Kaoberdiano Dambará, de feição basilectal e de nítido recorte afro-crioulista e negritudinista.

     Sorrindo, do alto da sua elevada estatura sempre bem-humorada e devidamente trajada de branco, cogitou notoriamente enfastiado o celebrado romancista contador de estóreas: um escritor que se preze verdadeiramente deve ter uma única e exclusiva língua de labor literário que, com o tempo e com o seu domínio cada vez maior e mais proficiente, se torna, cada vez mais, a sua verdadeira língua materna literária (ou língua literária materna, o que parece vir a dar ao mesmo).

   Se se quiser vazar uma obra (literária ou não) numa outra língua, contacte-se, contrate-se, convença-se ou alicie-se alguém que domine as duas línguas, a da criação original e a da versão traduzida, e lhes conheça, ademais, todos os segredos e mistérios. É para isso que servem os tradutores, que, aliás, bem precisam de trabalho, com o desemprego e o subemprego a chegar rapidamente aos licenciados, mestres e demais diplomados universitários, e a tornar-se cada vez mais premente nestes tempos da pandemia do novo coronavírus (sars-cov-2) e da covid-19 que, com a abrupta deserção dos turistas, também deixou sem ocupação remunerada os guias turísticos que os tradutores e intérpretes por vezes também eram.

2. O MOROSO E COMPLEXO PROCESSO DA ESCOLHA DE UM TRADUTOR PARA O IDIOMA CRIOULO DAS OBRAS LUSÓGRAFAS DE GERMANO ALMEIDA E DAS MUITAS RAZÕES SUBJACENTES A UMA OPÇÃO PREFERENCIAL, O ANTIGO PADRE E ESCRITOR BILINGUE EUTRÓPIO LIMA DA CRUZ (PARTE UM), COM UM BREVE PARÊNTESE EM QUE SE DEMONSTRA COM ARGUMENTOS HISTORICAMENTE FUNDAMENTADOS PORQUE É QUE CABO VERDE NÃO É DE FORMA NENHUMA EQUIPARÁVEL A CUBA DO PONTO DE VISTA LINGUÍSTICO E SÓCIO-LINGUÍSTICO

     Eu, por mim, já escolhi o tradutor para o nosso idioma crioulo das minhas obras evidentemente lusógrafas. Essa pessoa tem de conhecer bem o percurso não só do sul, mas de toda a vasta e amarela extensão da ilha fantástica em toda a sua dourada grandeza e na integridade da sua arenosa e desértica inteireza, salpicada de oásis de palmeirais e coqueirais e enxameada de burros, cabras, violões, violinos e cavaquinhos, acompanhado dos requeridos gemidos e das plangentes choradinhas, como compete a legítimos herdeiros de Luís Rendall, e das vozes dolentes das sucessoras de Salibana e Maria Barba. Tem de ser falante nativo da variante do idioma crioulo da minha infância islenha e conhecedor abalizado das variantes do idioma crioulo das ilhas histórica e culturalmente mais importantes de Cabo Verde, ou, pelo menos, que tenho por mais marcantes para o meu percurso de vida e para a minha formação como ser humano. Tem de dominar o português e as línguas que lhe estão subjacentes como línguas de cultura, como o latim e o grego (mas não necessariamente o árabe), tal como um padre e/ou equiparado logra conseguir. Melhor ainda se falar fluentemente e escrever correctamente o alemão, o francês, o inglês, o italiano e o castelhano/espanhol.

     Parece que não me resta outra escolha se não o meu patrício, ademais também portador do apelido da Cruz, que sendo também autor do primeiro e do segundo romances, escritos na variante da Boavista do nosso idioma crioulo, relembre-se e sublinhe-se que já devidamente dotados das tempestivas e oportunas versões/traduções em português, embora ainda inéditas, oferece todas as garantias requeridas para casos semelhantes, incluindo as literárias e as eruditas.

       Com esse teimoso e hiper-activo do Abraão Vicente como Ministro da Cultura e das Indústrias Criativas e o Presidente da República a salpicar as dramáticas e coronadas frases lusógrafas do Decreto de Declaração do Estado de Emergência Sanitária com longas orações e convenientes e virulentas tiradas e ênfases alternadas na variante-matriz de Santiago e na variante de São Vicente do idioma caboverdiano, nesse particular quase seguindo o exemplo do antigo Primeiro-Ministro José Maria Neves que ousou fazer um discurso inteiro e completo na variante-matriz de Santiago perante uma, primeiramente, estupefacta e, depois, embevecida Assembleia-Geral da ONU, fica claro que, como, aliás, defendi numa recente entrevista a um conceituado jornal online português, se vai mesmo oficializar o idioma crioulo de Cabo Verde e introduzi-lo nos curricula escolares, e, segundo se deduz dos anunciados planos do dinâmico e, bastas vezes, prolixo Ministro da Cultura e das Indústrias Criativas, com o idioma crioulo introduzido oficialmente nas escolas, serão também introduzidas as obras literárias lavradas nesse mesmo idioma crioulo, nosso, do povo das ilhas e diásporas (como gosta de enfatizar o nosso alupecador), pouco interessando se em primeira ou em segunda mão, se por via original ou por via traduzida, se em variante de Barlavento ou de Sotavento, se com sotaque e entoação de Santo Antão, da Brava, do Fogo, do Maio, da Boavista, de São Nicolau, do Sal, de São Vicente ou de Santiago, ponto é que seja de uma das ilhas habitadas de Cabo Verde e esteja nela devidamente impregnada consoante a variante falada pelos seus habitantes. Caso não haja obras literárias escritas ou traduzidas nas variantes ou na variante do idioma crioulo de todas e de cada uma das nossas ilhas, poder-se-ia socorrer dos nossos numerosos letristas, felizmente abundantes em todas as ilhas e para todos os gostos e géneros musicais, sem discriminação de espécie alguma, a não ser a qualidade dos textos e a sua adequação ao fim didáctico/pedagógico pretendido, nunca se excluindo de antemão a possibilidade de tradução de um texto de uma variante do nosso idioma crioulo para outra variante do mesmo idioma crioulo, afinal, a nossa língua nacional única, singular e inconfundível.

       Não me parece que a actual Ministra da Educação e do Ensino Superior possa resistir por muito mais tempo às investidas co-oficializadoras da língua materna caboverdiana por parte do jovem e ambicioso Ministro Abraão Vicente. Tanto mais que, e, neste ponto, retomo em modo ipsis verbis a extensa, apaixonada e fundamentada argumentação de um dos nossos alupecadores mais informados e proeminentes por ter integrado o Grupo de Padronização do Alfabeto Unificado para a Escrita do Cabo-Verdiano (ALUPEC), coordenado por Manuel Veiga e constituído por Alice Matos, Dulce Almada Duarte, Eduardo Cardoso, Inês Brito, José Luís Hopffer Almada, Tomé Varela da Silva e, ainda, por Moacyr Rodrigues e Mário Fonseca, que, todavia, nunca compareceram às reuniões de trabalho, tendo contudo este último (que, na altura, desempenhava as funções de Presidente do Instituto Nacional da Cultura (INAC) apresentado um ensaio final sobre a língua caboverdiana publicado na revista K(C)ultura, do Ministério da Cultura de Cabo Verde. Finalizados os trabalhos, o Grupo de Padronização, acima referido, propôs ao Governo a aprovação, a título experimental pelo período de cinco anos, do sempre e ainda, até aos dias de hoje, controverso alupec, o qual, passados mais de dez anos depois da conclusão dos trabalhos do acima referenciado Grupo de Padronização e na sequência da realização do Fórum da Praia para a Avaliação da Aplicação do acima referido Alupec, viria a ser definitivamente adoptado e finalmente oficializado, e sem mudança da sua denominação histórica, como o Alfabeto Cabo-Verdiano, não sem ter havido sérias divergências entre as recomendações feitas pelos participantes do mesmo Fórum (por exemplo, e em coerência com o basilar princípio fonético-fonológico da correspondência biunívoca um fonema-um grafema (isto é, um som-uma letra), no sentido da substituição da conjunção copulativa y por i e o constante do Decreto-Lei do Governo, sufragado pelo inevitável e indispensável Doutor Manuel Veiga, que optou por manter o y como conjunção copulativa, continuando assim a haver duas letras para representar o mesmo som i, isto tudo, sem prejuízo das preferências pessoais de muitos cultores do alupec que parecem pender nitidamente para a esgarçada e esbelta beleza que inequivocamente se reconhece à letra y.

       Vejamos pois a argumentação do nosso conhecido, arguto e, bastas vezes, prolixo alupecador contra o que ele desqualifica como dúbio, quezilento e retrógrado posicionamento da Ministra da Educação e do Ensino Superior de Cabo Verde em relação ao idioma caboverdiano.

     Assinale-se que, de há uns tempos para cá, o nosso normalmente calmo, sereno e apaziguado alupecador diz sentir-se sumamente zangado, dir-se-ia quase em estado de choque e de fúria, e com os cabelos todos da sua espessa e lanosa cabeleira crespa em pé, por, depois de muitas manigâncias e tergiversações, a mesma Ministra ter dado por findo o projecto de ensino bilingue português-caboverdiano, apresentado e coordenado pela professora Ana Josefa Cardoso e que estava a ser implementado a título de projecto-piloto, diga-se que com muito sucesso, em algumas escolas do ensino básico das ilhas de Santiago e de São Vicente, depois de ter alcançado um estrondoso êxito numa escola do Vale da Amoreira, na Margem Sul da Região da Grande Lisboa, em Portugal, tendo esse êxito sido publicamente reconhecido e enaltecido por instituições oficiais do Ministério da Educação de Portugal bem como por pais e encarregados de educação dos alunos portugueses e dos alunos de origem caboverdiana das turmas abrangidas pelo mesmo projecto de ensino bilingue.  

       Na verdade, ela não vai poder politicamente sobreviver como Ministra da Educação às investidas cada vez mais assíduas, persistentes e acutilantes do actual Ministro da Cultura e das Indústrias Criativas porque ela parece não compreender de todo e nem sequer parece conseguir apreender em toda a sua real dimensão o caso do bilinguismo caboverdiano, parecendo estar completamente a leste do telúrico apego dos caboverdianos à língua materna e nacional do seu país. É por isso mesmo que dizemos ministra cubana quando nos referimos a essa mesma governante. Utilizamos explicitamente esse qualificativo não por um qualquer eventual sentimento de xenofobia contra cidadãos caboverdianos de origem estrangeira naturalizados (uma absoluta e inultrapassável impossibilidade em nós, mesmo que remotamente, podem crer), mas porque ela parece mesmo confundir completamente o caso linguístico e sócio-linguístico caboverdiano com o caso linguístico e sócio-linguístico do seu país de origem, que, aliás, muito prezo, respeito e, até, admiro (ou, pelo menos, admirei quando era menos evidente o duplo bloqueio-simultaneamente externo e interno-que o vem estrangulando).

     Em Cuba, os crioulos eventualmente existentes no século XIX desapareceram paulatinamente, tanto por efeito da obtenção da independência política sob hegemonia das populações e classes dominantes brancas nativizadas e que tinham o espanhol (castelhano) como língua materna, como também como consequência de uma grande e maciça imigração de europeus e asiáticos, depois nativizados em língua castelhana/espanhola na cultura mestiça afro-latina da ilha caribenha. Em alternativa, assistiu-se, à semelhança, aliás, de outros países latino-americanos tornados independentes no século XIX, a uma crescente nacionalização/nativização da língua castelhana/ espanhola, tendo daí surgido uma sua variante tipicamente cubana, à semelhança do que ocorreu, por exemplo, no Brasil com o surgimento da variante brasileira (ou das variantes brasileiras) e do padrão brasileiro da língua portuguesa.

     Constituíram excepções a essa situação i. o caso do Haiti, país onde os negros escravizados acederam à independência política e proclamaram a primeira Republica negra do mundo, assim também contribuindo para a definitiva salvação da extinção da sua língua materna, o crioulo haitiano, ii. os casos de outros países islenhos das Caraíbas (tais a Jamaica, as Antilhas francesas, as Antilhas holandesas), do Atlântico (como Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e, de certo modo, a Guiné-Bissau) e do Oceano Índico (como as Seycheles, a ilha da Reunião e a ilhas Maurícias), que somente puderam aceder à independência política a partir dos anos sessenta do século XX, em plena sintonia, aliás, com os tempos históricos da emancipação política da imensa maioria dos países africanos e de países de outros espaços geoestratégicos ainda sujeitos à dominação colonial e à opressão político-cultural e socioeconómica estrangeira em pleno século XX, permanecendo ainda alguns desses países até aos dias de hoje como colónias/províncias/departamentos e territórios ultramarinos de países ocidentais, como são os casos das Antilhas francesas, da ilha da Reunião e, de modo muito relativo, de uma parte das Antilhas holandesas.

     Nestes últimos casos, o tempo de duração do colonialismo directo demonstrou-se, assim, de especial e essencial significação, propiciando e facilitando, por um lado, a germinação e a formação das línguas crioulas, e permitindo, por outro lado, que esses países pudessem, a partir dos séculos XVIII e XIX, pugnar pela preservação dos respectivos idiomas crioulos, atribuindo-lhes a função identitária de línguas de expressão de culturas nacionais subjugadas por poderes opressores estrangeiros e pelas respectivas expressões linguísticas oficiais e/ou imperiais. No caso das ilhas ABC (Aruba, Bonaire e Curaçao) das Antilhas Holandesas, logrou-se atingir ultimamente para algumas delas um estatuto político de país altamente autónomo associado ao Reino dos Países Baixos, permitindo assim a efectiva co-oficialização da sua língua crioula, o papiamento, estatuto co-oficial que também foi alcançado pela língua crioula das Seycheles, uma república arquipelágica independente e soberana do Oceano Índico, localizada ao largo da costa oriental africana, tornando, por isso, sumamente estranho, esquisito, anacrónico e, até, hilariante o estatuto de que (não) vem podendo usufruir efectivamente a língua crioula de Cabo Verde, arredado e quase expulso que se encontra do sistema nacional de ensino enquanto língua primeira dos caboverdianos, com destaque para os residentes nas nossas ilhas afro-atlânticas.

       À semelhança desses países islenhos, verdadeira e realmente colonizados por potências europeias por um tempo real de quase ou mais de cinco séculos, o não acesso do arquipélago de Cabo Verde à independência política ainda no século XIX, por razões, aliás, muito bem explicadas por Amílcar Cabral na Reunião de Dakar, de Julho de 1963, dos Responsáveis do PAIGC sobre a Situação da Luta em Cabo Verde, e a sua manutenção como colónia/província ultramarina portuguesa até 1974/1975 fizeram com que o seu idioma crioulo se afirmasse e se consolidasse cada vez mais como a língua da identidade nacional dos caboverdianos, mesmo que em coexistência com o português, língua da dominação colonial estrangeira portuguesa, mas também língua de acesso aos diferentes níveis de escolaridade, língua de acesso ao conhecimento científico e técnico e à cultura universal e língua de ascensão económica, social e cultural (de aristocratização intelectual, na expressiva terminologia dos claridosos).

     Em resultado dessa coexistência, amiúde conflituosa e não necessariamente consagrando-se como um pacífico terçar de armas, como queriam alguns letrados claridosos, com destaque para Baltasar Lopes da Silva, ou como um amigável ombro-a-ombro, na expressão de Gabriel Mariano, apesar das aparências e dos paradoxos que podem emanar de certos intelectuais nossos, nativos da nossa língua, que, no seu labor literário e ensaístico, maneja(va)m as duas línguas de Cabo Verde com idêntica competência, persiste até aos dias de hoje uma situação de diglossia em que i. o português é ainda a única língua plenamente oficial, gozando de todas as prerrogativas desse estatuto privilegiado enquanto língua do exercício do poder, de entre as quais a de ser língua de ensino de todas as disciplinas curriculares em todo o sistema do ensino caboverdiano; ii. o crioulo goza, por um lado, do estatuto de língua nacional omnipresente em todos os espaços informais de comunicação e de língua veicular da cultura popular de todas as categorias, camadas e classes sociais em todas as ilhas e, por outro lado, padece de um estatuto esvaziado e meramente semântico de língua em lentíssimo processo material de co-oficialização. O estatuto subalterno da língua caboverdiana expressa-se ademais na gravíssima e totalmente incompreensível circunstância de ela estar, do ponto de vista formal, completamente arredada do sistema do ensino caboverdiano, primando pela escassez e pela raridade as obras, nelas incluindo os instrumentos legais, traduzidas da língua plenamente oficial que é o português para a língua caboverdiana, sendo a Constituição da República de Cabo Verde, a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU e a Declaração Universal dos Direitos Linguísticos da UNESCO, exemplos dessas raras obras vertidas no nosso idioma nacional crioulo, diferente e contrariamente ao que ocorre, por exemplo, em Timor-Leste, em que tanto a Constituição, como diversos Códigos de Lei (Código Civil, Código Penal, etc.) foram já traduzidos para o tétum que, gozando do estatuto de língua co-oficial ao lado do português (língua oficial plena) e do inglês (língua de trabalho), vem usufruindo de forma efectiva no plano linguístico e didáctico-pedagógico desse elevado estatuto constitucional e jurídico-legal.

     Diz amiúde o alupecador (esse mesmo que agora se expressa e de quem agora se fala e se deixa falar) que a presente situação de diglossia se tornou completamente insustentável, na medida em que são incomensuráveis e detectáveis a olho nu os danos que vem causando tanto à língua caboverdiana como à língua portuguesa, podendo-se afirmar sem quaisquer pejos ou reservas que se encontram ambas as línguas em situação assaz calamitosa, diríamos até, não fossem os inevitáveis mal-entendidos, também em situação de calamidade pública (embora de teor eminentemente cultural e educacional).

     Por isso, sugere o nosso alupecador, que, aliás, também é jurista, ensaísta (devidamente desdobrado em pseudónimo), cronista literário e escritor (igualmente desdobrado em pseudónimo) e poeta com quatro nomes literários (ou pseudo-heterónimos, como o próprio prefere), que se deveria aproveitar a actual situação de calamidade pública sanitária e de calamidade pública no plano da reinante e persistente diglossia sócio-linguística, numa preocupante ambiência geral de profunda recessão económico-social, agora marcada por um progressivo e cauteloso desconfinamento e, oxalá para os tempos vindouros, por um gradual regresso à nova normalidade pós-pico-e-planalto-pandémicos-e-pós-lockdown da vida económica, social e cultural, todavia de consequências sanitárias, económico-sociais e identitário-culturais ainda incertas e imprevisíveis, para introduzir os ajustes necessários à Constituição da República de Cabo Verde no que se refere i. à declaração do estado de emergência sanitário e à sua intrínseca e exclusiva conexão com a situação de calamidade pública sanitária quando se tenha em mente a suspensão de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos e de outros direitos fundamentais análogos, ii. à clarificação, de uma vez por todas, da redacção do artº 9º da mesma Constituição da República, no sentido da co-oficialização plena da língua caboverdiana em paridade com a língua portuguesa, ainda que inicialmente de uma forma somente político-simbólica e mantendo a natureza programática da norma sobre a progressiva parificação do estatuto da língua caboverdiana em relação ao estatuto da língua portuguesa, tendo-se sempre em conta a tendência de ambas as línguas, embora em sentido oposto, para ocupar, respectivamente, os espaços formais e os espaços informais de comunicação e de interacção social. A clarificação da redacção do artº 9º da Constituição da República deve incluir, segundo a fervorosa opinião do nosso alupecador, a obrigação do Estado de tomar medidas mais assertivas, sob pena de inconstitucionalidade por omissão, para a concretização do estatuto de co-oficialidade da língua caboverdiana, como, por exemplo, a sua introdução progressiva e segura no sistema de ensino enquanto língua materna e língua primeira dos caboverdianos, com concomitante manutenção do português no seu estatuto de língua plenamente oficial da República de Cabo Verde e do seu ensino como língua segunda e potencial segunda língua de todos os caboverdianos radicados nas ilhas.

     Aliás, um país capaz de gerir com algum mérito e aceitável competência, aliás, reconhecidos e elogiados em vários quadrantes nacionais, estrangeiros e internacionais, questões tão complexas como, em tempos mais recuados, a progressiva viabilização do próprio país como nação crioula independente e soberana e entidade economicamente cada vez mais sustentável e confiante nas suas próprias capacidades de desenvolvimento, e, nos tempos mais recentes, as de natureza sanitária, económico-social e outras relacionadas com a pandemia do novo coronavírus (sars-cov-2) e com a covid-19, também certamente que saberá gerir as mais corriqueiras questões de fingidas e veras morabezas bem como de falsas e verdadeiras xenofobias, tratando de forma verdadeiramente adequada i. as problemáticas de simples gestão de eventos culturais, afinal meros festivais literários e feiras do livro, e nas quais os caboverdianos já deram provas mais do que suficientes e, até, altamente convincentes na sua passada costuração, como se viu de forma inequívoca, primeiramente, com as Feiras do Livro em Português, e, depois, com as Feiras da Palavra, devidamente apoiadas por instituições públicas e privadas portuguesas, mas inteiramente concebidas e organizadas por instituições públicas caboverdianas ligadas às problemáticas do livro e da edição; ii. as problemáticas linguísticas especialíssimas do bilinguismo caboverdiano, as quais devem ser enfrentadas com a urgência requerida e a dose de coragem e ousadia necessárias e sempre com genuíno espírito de missão também no robusto e indefectível exercício da nossa soberania cultural e identitária.

     No que se refere às questões e problemáticas das feiras do livro e dos festivais literários realizados em Cabo Verde, em especial as de natureza institucional pública, sufragamos a opinião do Prémio Camões 2018, o nosso Germano Almeida, expendida no decurso de uma das mais recentes edições do Festival Morabeza-Festa do Livro no sentido de as entidades públicas responsáveis pela sua concretização poderem angariar e contar com apoios de consultadoria, nacional e/ou estrangeira, de quem já deu provas que entende do ofício e detém experiência e conexões pessoais e institucionais na área para possibilitar aos leitores caboverdianos radicados nas ilhas do meio do mundo o contacto regular não só com os grandes escritores nacionais e com os demais autores consagrados do seu país, como também com grandes escritores, intelectuais e pensadores do mundo e da civilização do universal, sendo também certo que, como é de todos (con)sabido, o reconhecimento internacional da literatura caboverdiana se deve processar fundamentalmente mediante a representação dessa mesma literatura, das suas várias estirpes e gerações e dos seus diversos modos estéticos e estético-ideológicos de expressão, em eventos internacionais de alguma envergadura e expectável impacto público pelos melhores dos seus legítimos representantes que são certamente (e, já agora, deveriam ser unicamente) os escritores, neles incluindo os poetas, os autores de romances e outras obras narrativas de ficção, os dramaturgos e os escritores de ideias. Mas, mais do que a presença física dos autores, o reconhecimento internacional da literatura e da escrita caboverdianas requer sobremaneira a presença das obras dos autores caboverdianos junto dos seus potenciais leitores estrangeiros, pressupondo essa mesma presença a operacionalização de outros conhecidos e comprovados mecanismos de comunhão com os leitores, que são as traduções, as edições, as co-edições, etc., todas elas certamente necessitadas de apoios institucionais e de patrocínios de mecenas públicos e privados, para além, é claro, dos festivais literários internacionais e das feiras internacionais do livro, de que a Feira do Livro de Lisboa é inequivocamente um exemplo paradigmático e da qual já se colheram muitos, visíveis, apetitosos e nutritivos frutos.

     Depois de mais de quarenta e cinco anos passados sobre a conquista da independência e da soberania políticas do nosso arquipélago afro-atlântico e da afincada e paciente aprendizagem de uma gestão prudente, criteriosa e corajosa dos vários sectores de vida nacional do país, incluindo dos culturais, sempre pensando com as nossas próprias cabeças, não faz sentido nenhum desperdiçar recursos escassos e/ou finitos delegando poderes de gestão dos nossos grandes e pequenos eventos culturais em entidades estrangeiras pagas a peso de ouro, ademais com meios angariados e mobilizados no nosso próprio país, como, por vezes, se supõe, se pretende, se alega e se defende, numa interpretação exagerada e extremada da nossa tradicional abertura ao mundo, como sendo e representando prova, expressão e testemunho cabais, que se querem ademais irrefutáveis e avessos a quaisquer críticas, da nossa enraizada e idiossincrática amorabilidade/hospitalidade/cordialidade de todos conhecida pela única, imperdível, insubstituível, infungível e muito crioula palavra morabeza, que todavia, em caso algum, deveria significar ou ser equiparada a subserviência em relação a interesses alienígenas, como vazado nos conhecidos versos do malogrado poeta bilingue Henrique de Oliveira Barros, publicados, em 1991 e em reimpressão de 1998, na colectânea poética Mirabilis-De Veias ao Sol (Antologia Panorâmica dos Novíssimos Poetas Cabo-Verdianos), organizada e apresentada por José Luís Hopffer Almada.

     E, com essa espécie de patriótico desabafo, que de há muito vinha ardendo-lhe na alma, o nosso convicto alupecador deu assim por concluída a sua profusa e apaixonada, mas, segundo creio sinceramente, assaz convincente explanação, considerando-a afinal nada hostil em relação à Ministra da Educação e do Ensino Superior que todavia continuou a apelidar de ministra cubana da educação caboverdiana, mesmo se contudo admitindo que ela pudesse continuar a exercer as funções ministeriais de Ministra da Família, da Igualdade do Género e da Integração Social, tão necessárias e, até, indispensáveis nestes tempos disruptivos de profunda crise económico-social provocada pela pandemia do novo coronavírus (sars-cov-2) e da covid-19, e de cuja desincumbência, segundo consta, parece ter dado, até agora, boa conta do recado. De todo o modo, e não obstante esta última e relevante concessão, nitidamente xenófila, a favor da construção e da consolidação de uma comunidade política nacional integrada por todos os seus cidadãos, originários e naturalizados, não deixa o nosso alupecador de assim persistir em sério risco de ser mal-entendido, invectivado, difamado, caluniado e, até, injuriado e achincalhado por alegada xenofobia contra cidadãos caboverdianos naturalizados, ademais do género feminino e, embora caribenha, de estirpe crioula, tal como nós, os caboverdianos de gema e de nascença.      

   Parece-me todavia um pouco duvidoso, um tanto utópico e por demais excessivo pensar-se sequer, pelo menos a médio prazo, numa qualquer possibilidade de paridade do nosso idioma crioulo com o português, uma língua literária com provas dadas e sujeita durante séculos a um longo processo de ductilização por penas de qualidade superior, por vezes geniais, como as de Luiz Vaz de Camões (considerado o vate maior do idioma luso, o nosso comum idioma), do Padre António Vieira (justamente apelidado e cognominado de imperador da língua portuguesa), de Barbosa du Bocage, Almeida Garret, Camilo Castelo Branco, Eça de Queiroz, Ramalho Ortigão, Fernando Pessoa (qualificando-se ele próprio, sem modéstia nenhuma, como o Super-Camões), Machado de Assis, Graciliano Ramos, Vergílio Ferreira … sem obviamente esquecer os nossos letrados indígenas das ilhas, tais Guilherme da Cunha Dantas, Luís Loff de Vanconcellos, Eugénio da Paula Tavares, José Lopes da Silva, Pedro Monteiro Cardoso, Augusto Miranda, não sendo de todo despiciendo o grande contributo dado pelos nossos claridosos e neo-claridosos para a refundação de uma literatura nossa moderna com os pés assentes na terra, em perfeita simbiose e em plena comunhão com os anseios e as preocupações do povo das ilhas, amiúde flagelado pelas as-secas e pelo vento leste, pelo suão e pelo harmatão, todos ventos sinónimos de muito infortúnio e indizível desgraça, e que, ao inventarem o nosso português literário caboverdiano, deram-nos uma voz reconhecidamente nossa, singular e poderosa entre todas as vozes lusógrafas de todo o mundo falante do português. Sejam, pois, para sempre enaltecidos, honrados e glorificados os nomes dos grandes filhos e das eméritas filhas do povo das ilhas e diásporas que são Jorge Barbosa, Baltasar Lopes, Osvaldo Alcântara, Manuel Lopes, António Aurélio Gonçalves, António Nunes, Henrique Teixeira de Sousa, Maria Helena Spencer, Iolanda Morazzo, Virgílio Pires, Orlanda Amarílis e, modéstia à parte, e não é por estar na minha presença, como diria Baltasar Lopes da Silva, com a muita e fina ironia que lhe era característica, a minha própria humilde, conquanto assaz consagrada pessoa, agora definitivamente agigantada, do plano meramente físico para o plano simbólico-cultural, e comigo, o português literário caboverdiano de feição urbana e pequeno-burguesa, com a merecidíssima atribuição do Prémio Camões, o mais prestigiado da língua portuguesa e, last but not the least, o mais bem dotado dos sempre indispensáveis e tão bem-acolhidos meios monetário-financeiros...    

     Todavia, sem nunca, mas mesmo nunca esquecer os nossos predecessores, antecessores e precursores, não só os nativistas, aliás, já profusamente nomeados enquanto moradores permanentes do coração e da alma do povo das ilhas e diásporas, mas também os pré-nativistas, como, por exemplo, os mais antigos cronistas quinhentistas/seiscentistas André Álvares de Almada e André Dornelha, e os potenciais nativistas, alguns infelizmente fenecidos prematuramente no ovo, como a poetisa e jornalista Antónia Pusich (uma bem identificada pré-nativista e/ou nativista precocemente sucumbida no ovo da integral assimilação cultural reinol, natural de Cabo Verde é certo, mas depois totalmente desenraizada das vivências das ilhas porque levada ainda criança para Portugal, onde foi educada e fez toda a sua rica e aventureira vida de jornalista e de escritora portuguesa, de feição e tendência afirmativamente feministas), para além dos mais recentes relatores, cronistas de viagens e historiadores nativistas João José António Frederico, João Frederico de Barros, Francisco Frederico Hopffer e José Christiano de Senna Barcellos, e das poetisas nativistas Maria Spencer Freitas, Gertrudes Ferreira Lima (chamada A Humilde Camponesa) e Maria Luísa de Senna Barcellos (chamada A Africana), entre outras criaturas nossas, das ilhas hesperitanas, pioneiras na invenção de uma escrita nossa, das gentes das ilhas.

     Não podendo eu, de modo nenhum e em nenhuma circunstância, assumir para mim próprio o que considero que seria o esquizofrénico papel de escritor bilingue em língua portuguesa e em idioma crioulo, será, pois, ele, o meu patrício tradutor, o meu mais fiel duplo, o meu mais fidedigno sósia, a sombra mais apegada à minha elevada figura e o meu verdadeiro avatar, transfigurados no meu doce e arenoso crioulo de ilhéu fantástico.

   E ele, o meu islenho patrício tradutor, será livre de escolher o alupec ou outro alfabeto qualquer que lhe aprouver e lhe der na veneta e na sua real gana - tradicional, etimológico, de outro modo fonético-fonológico ou misturado -, desde que a tradução para o idioma crioulo dos meus romances escritos originalmente em português não os despojem do saboroso português literário caboverdiano inventado por Baltasar Lopes e, depois, recriado, consolidado e sedimentado na poesia e na prosa literária do nosso arquipélago meso-atlântico pelos demais escritores claridosos e neo-claridosos, tais Manuel Lopes, António Aurélio Gonçalves, Henrique Teixeira de Sousa, Virgílio Pires, Pedro Duarte, Maria Helena Spencer, Onésimo Silveira, Orlanda Amarílis, Ivone Ramos, entre muitos outros, e mantido, prosseguido e aperfeiçoado, em vista sobretudo da necessidade de adaptação das personagens a um mundo em constante mudança em meios urbanos pequeno-burgueses, cosmopolitas, abertos, repletos de mulheres esbeltas, livres e emancipadas, por mim, Germano da Cruz Almeida, natural da ilha fantástica da Boavista, advogado com escritório montado na bela e muito acolhedora cidade do Mindelo, contador de estóreas inspiradoras de guionistas de filmes de ficção falados em português com sotaque brasileiro, alfacinha, tripeiro e, por vezes, com bem ensaiada e grandiloquente entoação caboverdiana, mas quase nunca em português literário caboverdiano e, nunca por nunca, em nenhuma das variantes do idioma crioulo das nossas ilhas, mais conhecido como o escritor Germano Almeida, Prémio Camões 2018, o segundo atribuído a um caboverdiano, e o primeiro outorgado a um romancista contador de estóreas durante toda a já longa História da Humanidade, da Língua Portuguesa, do Império Colonial Português, também chamado, e, amiúde, louvado como o Mundo que o Português Criou, e da sua legítima sucessora, a Lusofonia e, já agora, igualmente a Lusografia, e, em particular, desse prestigiado Prémio, o mais importante da nossa língua comum, primeiramente no âmbito combativo, anti-colonialista e afro-lusófono dos Cinco PALOP e, agora, em tempos mais cooperativos e plenamente democráticos para todos os nossos povos e países, do mais lato, vasto, diverso e cosmopolita universo dos países da CPLP.

3. O MOROSO E COMPLEXO PROCESSO DA ESCOLHA DE UM TRADUTOR PARA O IDIOMA CRIOULO DAS OBRAS LUSÓGRAFAS DE GERMANO ALMEIDA E DAS MUITAS RAZÕES SUBJACENTES A UMA OPÇÃO VIRTUALMENTE DEFINITIVA E CONCLUSIVA, EMBORA TENDO SIDO UMA SEGUNDA OPÇÃO, POR ISSO MESMO AINDA EM PROCESSO DE CONSUMAÇÃO (PARTE DOIS)

Caso, contudo, não se mostrar disponível o meu patrício e confrade escritor (embora escritor comprovado, reconhecido e consagrado ainda somente no nosso idioma materno crioulo), alegando, por exemplo, que se encontra assaz assoberbado com a criação e a escrita das suas próprias obras originais em idioma crioulo e intuo que, muito provavelmente, também em português, ou que é de todo impossível preservar o português literário caboverdiano do autor original que sou eu numa tradução para o idioma crioulo (curiosamente sempre designado pelo meu confrade patrício islenho como língua caboverdiana), seja em que variante for, mesmo naquela variante fantástica da ilha da Boavista, sempre poderei contar com a boa vontade e os sempre sorridentes méritos do Professor Doutor Manuel Brito-Semedo, um conhecedor profundo e reconhecido da literatura caboverdiana, sobretudo a de matriz ideológico-identitária claridosa com as suas múltiplas variações neo-claridosas, coloniais e pós-coloniais, todas diluentes da África na cultura crioula caboverdiana, e nas quais se integra na perfeição e com todo o mérito a minha já extensa obra, sendo ele ademais um confesso admirador do português literário caboverdiano inventado e criado de raiz por Baltasar Lopes no extraordinário romance que é, para todo o sempre, Chiquinho e, sobretudo, um assumido neo-barlaventista, muito crítico da denominada República de Santiago, como demonstrou sobejamente enquanto Vice-Reitor do Polo do Mindelo da Universidade Pública de Cabo Verde na veemência com que protestou contra a suposta transferência para a cidade da Praia do campus universitário, doado pelos chineses para alegadamente ser instalado com a máxima prioridade na ilha de São Vicente, se bem que, segundo consta, esse mesmo protesto tenha merecido pronta, inequívoca e frontal refutação do Ministro do Ensino Superior de Cabo Verde, António Leão Correia e Silva, e um afável desmentido da própria Embaixada da República Popular da China em Cabo Verde. Tudo chegaria entretanto a bom porto e justiça seria cabalmente feita ao Barlavento caboverdiano e, em especial, à ilha de São Vicente, consabidamente a principal referência cultural e educacional moderna de Cabo Verde (pelo menos, e indubitavelmente, durante grande parte do período tardo-colonial), com o desmembramento e a desvinculação, por iniciativa do novo Governo saído das eleições legislativas de Março de 2016, do Polo de São Vicente da Universidade Pública de Cabo Verde e a sua transformação em Universidade do Atlântico de Engenharias, Artes e Ciências Agrárias, com sede na cidade do Mindelo e com jurisdição sobre todas as ilhas do Norte do país num total de seis, perfazendo assim todo o Barlavento caboverdiano e não somente as ilhas do chamado Noroeste caboverdiano (Santo Antão, São Vicente, Santa Luzia e São Nicolau), zona geográfica na qual se pretende estabelecer, com a máxima urgência possível, o ZEEM (Zona Económica Especial da Economia Marítima), de que a mesma Universidade do Atlântico é elemento integrante e componente fulcral.  

   Não é, por acaso, aliás, que o seu teórico, mentor e tribuno predilecto, além de colunista preferido nos jornais de todas as ilhas do arquipélago caboverdiano, incluindo a ilha da capital do país, é o Doutor Onésimo Silveira, sempre incisivo e acutilante nas suas constantes investidas contra os que ele considera os arautos e os fiéis da República de Santiago, ilha da qual é, aliás, originário o jurista e pensador solidamente nova-largadista e convictamente pan-africanista Manuel Duarte, a quem o acima referenciado Doutor Onésimo Silveira resolveu, em tempos mui recentes, magnanimamente conceder, através dele, Manuel Brito-Semedo, Doutor em Antropologia, a co-autoria e a escrita a quatro-mãos (as duas dele, Onésimo Silveira, que, para o efeito e segundo testemunho do próprio, prestaram uns confusos subsídios iniciais de estudante pós-laboral enredado nas teias da rebeldia política anticolonial e da polícia política colonial-fascista, prontamente assinaram em toda a largura da capa e, tal a velocidade do actual coronavírus (sars-cov-2), se disseminaram urbi et orbe pelo mundo, e as outras duas, as de Manuel Duarte, que realmente escreveram, argumentaram e registaram em texto, nítida e afincadamente nova-largadista, próximo, ainda que mais moderado no tom e na explícita nomeação do fenómeno colonial, dos escritos do seu escolhido pseudónimo e nome de guerra, A. Punói, a inconfundível e expressiva erudição de que era portador, mantendo-se todavia ele e as suas duas mãos na mais estrita clandestinidade, havendo por isso quem tivesse dito e continue a dizer que o nome Onésimo Silveira não tenha passado de um mero, se bem que sui generis pseudónimo (porque coincidente com o nome de igreja de um cidadão realmente existente e, já então, de grande notoriedade pública, porque assaz destemido e já muito marcado politicamente e, bastas vezes, enclausurado pela polícia política colonial-fascista), pseudónimo esse utilizado, ignora-se todavia se com o acordo prévio de ambas as partes e de todas as quatro mãos, de todos os modos com notórias vantagens políticas, pessoais, e não só, para a assinatura, a assunção pública e a mais ampla difusão dessa obra, isto é, e relembre-se mais uma vez) do mais célebre libelo acusatório anti-claridoso de todos os tempos, intitulado Consciencialização na Literatura Cabo-Verdiana, editado, em 1963, pela Casa dos Estudantes do Império, de Lisboa, e publicado, em 1967, em tradução para o francês, pelas Éditions Présence Africaine, de Paris, sempre no único e exclusivo nome de Onésimo Silveira, deste modo tornado mundialmente conhecido e reconhecido entre os escritores e intelectuais africanos e terceiro-mundistas como um dos principais teóricos da literatura nacionalista anticolonial e um dos mais relevantes analistas do barlaventismo e dos seus múltiplos malefícios alienantes e paralisantes da consciencialização político-literária caboverdiana num sentido clara e inequivocamente nacionalista e emancipatório do povo das ilhas.

   Com Brito-Semedo como tradutor para o idioma crioulo dos meus romances e das minhas outras obras não ficcionais, todos originalmente escritos em língua portuguesa, já se antevê que o dialecto do idioma crioulo preferido e privilegiado para essas traduções será o cantante e esfusiante crioulo de São Vicente, variante na qual, aliás, se comunica, na sua vida real, a maioria das pessoas verdadeiras nas quais me inspiro e vou buscar as personagens dos meus romances, salvo aqueles tantos cujos enredos têm o seu decurso ficcional em outras ilhas e em outras paragens do mundo, como a ilha fantástica da Boavista, a atribulada, destemida e valente ilha de Santiago, a ilha rebelde de Santo Antão, a festiva cidade de Lisboa, os segregacionistas e laboriosos Estados Unidos da América, a cidade colonial de Luanda, os receados matos e as emboscadas matas de Angola onde fiz a tropa portuguesa e a guerra colonial, sempre em regime de serviço militar obrigatório.

     Para os estritos efeitos da tradução das minhas obras para o idioma crioulo da nossa terra, não se deve pois descurar ou subestimar os crioulos das outras ilhas, bem assim as suas contaminações linguísticas nas muitas diásporas por onde se movem as minhas criaturas, tanto mais que, mesmo em São Vicente, como também na cidade da Praia, podemos deparar-nos com falantes de variantes de várias ilhas do idioma crioulo...

     A preferência pelo crioulo de São Vicente explica-se outrossim pela circunstância dessa mesma variante do nosso comum idioma crioulo funcionar quase como uma variante franca, na qual as pessoas de todo o Barlavento caboverdiano se comunicam entre si, pelo menos no que respeita aos nascidos em Santo Antão e crescidos em São Vicente, e as suas muitas variações islenhas, e aos integrantes das antigas elites das várias ilhas (incluindo das ilhas do Sotavento caboverdiano), que assim também podem fazer prova cabal da sua honrosa e dignificante frequência passada do prestigiado Liceu Nacional Gil Eanes, durante muitas décadas (até 1960, mais precisamente) a única escola secundária pública existente em todo o Cabo Verde…

     Sendo o meu tradutor para o idioma crioulo o Doutor Manuel Brito-Semedo, um falante nativo do dialecto crioulo de São Vicente, e dominando quase com perfeição os dialectos crioulos de várias ilhas, com destaque para o dialecto crioulo vadio da Praia, de onde, aliás, é natural o pai, tendo esse meu virtual e bem-humorado compadre, além de apaixonado leitor e dedicado estudioso da minha obra, passado grande parte da sua vida adulta nessa cidade e em outras vilas do interior da ilha de Santiago, como a vila da Assomada e a vila do Mangue do Tarrafal, as minhas personagens mais relevantes, amiúde críticas e contestatárias da que consideram inadmissível subalternização política, económica e cultural da cidade do Mindelo, da ilha de São Vicente e do conjunto do Barlavento caboverdiano, com a correlativa crescente hegemonia política, económica e cultural pós-colonial da cidade da Praia e da ilha de Santiago, terão a certeza de poderem contar com um fiel e perspicaz porta-voz e intérprete/tradutor.

   Essa mesma cidade da Praia que, pela voz do Presidente da sua Câmara Municipal, até já se diz e se afirma, com novo e inédito fulgor, como a capital cultural de Cabo Verde e uma das cidades mais cools e criativas de África. Mais recentemente, nestes tempos assaz trágicos de pleno e expansivo surto da pandemia do novo coronavírus (sars-cov-2) e da covid-19 e estando em indisfarçável marcha as campanhas para o próximo escrutínio popular dos eleitos autárquicos, por isso, consabida, necessária e inevitavelmente eleitoralistas, sobretudo para quem usufrui do privilégio de estar (e, obviamente, de querer manter-se a todo o custo) no poder, foi mais longe o edil praiense, exigindo, através do Governo da República e do grupo parlamentar do partido da actual maioria, isto é, da situação que é também a sua, um estatuto especial para a capital do país, aliás, desde a revisão constitucional de 1999, inequivocamente e em muito boa e fulminante hora consagrado na Constituição da República, a qual designou, de forma definitiva, peremptória e inequívoca, a cidade da Praia como essa mesma capital da nossa República de Cabo Verde, prevendo-a devidamente dotada de um regulamentado estatuto especial, querendo contudo o Governo e o grupo parlamentar do partido da situação significar com isso não um estatuto administrativo especial, como claramente definido e exigido na Constituição da República, mas um estatuto especial que parece querer fazer jus à indisfarçável megalomania do Presidente da Câmara Municipal da Praia e à alegada macrocefalia terceiro-mundista da cidade-capital.

   Considera o nosso alupecador (que, aliás, e sem desprimor da louvação poética de teor surrealista de Jorge Carlos Fonseca à sua amada e entranhada cidade adoptiva, também é o primeiro poeta caboverdiano que construiu um longo poemário épico-telúrico exclusivamente dedicado à cidade da Praia, e, por isso mesmo, pomposamente intitulado Praianas -Revisitações da Urbe e da Saudade), que o desiderato acima referenciado é, de todo em todo, inaceitável, não só para os conhecidos e vociferantes bairristas de serviço e os sonoros suspeitos de costume, quase todos de génese barlaventista, mas também para quem pretende verdadeiramente alcançar, em toda a sua histórica dimensão e magnitude, o sentido, a letra e a oportunidade da norma constitucional, tanto no que respeita às atribuições da capitalidade, com os seus correlativos custos e benefícios, como também no que tem a ver com a sua tempestividade e o seu fim último, nomeadamente para pôr cobro final e definitivo à sua passada itinerância e à exacerbada disputa pela partilha das suas vantagens comparativas numa infindável guerra entre várias vilas, cidades e ilhas de Cabo Verde, e agora, em tempos mais recentes, nitidamente centrada nas cidades rivais da Praia e do Mindelo. Inaceitáveis na proposta apresentada pelo Governo e sufragada pelo grupo parlamentar que o sustenta, em razão sobretudo do seu teor indisfarçadamente provocatório, parecem-lhe, ao nosso alupecador, ser, por exemplo, a equiparação do Presidente da Câmara Municipal capitalina a Ministro da República de Cabo Verde, a disponibilização de terrenos do Estado para a gestão privativa da mesma Câmara Municipal (sublinhe-se que num contexto político-social em que sobrelevam os escândalos da especulação e do favoritismo imobiliários na questão da distribuição de terrenos para construção e edificação urbanas por parte e em favor de poderosos grupos empresariais privados, paralelamente à também escandalosa e desumana demolição de bairros clandestinos de barracas, sem alternativa credível de acesso a habitação condigna para os seus desgraçados e precários moradores, notoriamente pobres, se não extremamente pobres e miseráveis, eles que são, sem dúvida nenhuma, as primeiras vítimas e os principais lesados do caos urbanístico reinante nas periferias dos propalados lugares beneficiários da capitalidade), bem assim a reivindicação do pagamento através do Orçamento Geral do Estado dos sempre controversos, se bem que reais e elevados custos humanos, sociais e (peri) urbanísticos da capitalidade de uma cidade que produz uma grande parte da riqueza nacional, contudo sem contrapartida equivalente visível a esse seu assinalável contributo (afinal, quem é que come no prato de quem?, interroga-se indignado e interruptivo de si próprio o nosso alupecador), e que, ademais e por isso, constitui o principal polo arquipelágico de atracção das populações das regiões interiores da ilha de Santiago e de outras regiões insulares menos bafejadas pela momentânea sorte propiciada pelos benfazejos e bonançosos acasos dos tempos históricos, como, a outro nível, também ilustram e demonstram à saciedade as ilhas do Sal e de São Vicente, e, em tempos mais recentes, de eufórico boom turístico, a minha outrora fantástica, e agora perdida e saudosa, ilha da Boavista.

   Prosseguindo, assevera o nosso alupecador que lhe parece que o momento mais propício para a discussão do constitucionalmente consagrado Estatuto Administrativo Especial da Praia-Capital deve ser aquele em que, assaz distante de períodos de pugnas eleitorais, sobretudo as de teor autárquico, tal como propugnara o Primeiro-Ministro e antigo edil do concelho da Praia, José Ulisses Correia e Silva, também fosse agendada a discussão de eventuais alterações do Estatuto dos Municípios e da Lei das Finanças Locais, pois que o município-capital não deixa de ser isso mesmo, um município integrado na Região de Santiago Sul ou, se se quiser, numa possível ressuscitação das velhas expressões Praia urbana e Praia rural com a sua grandiloquência hierarquizante devidamente actualizada, da Área Metropolitana da Praia, abrangente dos municípios de São Domingos e da Ribeira Grande de Santiago, num passado recente também partes integrantes do concelho da Praia. Parece-me que só é plausível e pertinente a inserção da discussão sobre o estatuto da cidade da Praia no debate sobre a controversa e fracturante questão da regionalização (não interessa se política ou meramente administrativa, se abrangente de várias ilhas, se coincidente com uma única ilha ou se integrante de parte da grande ilha que é consabidamente a ilha de Santiago) se e quando se quiser tecer considerações e aprofundar as temáticas e as problemáticas relativas à vindoura (e, em muitos aspectos, já existente) região de Santiago Sul, também por alguns almejada e sonhada como a Área Metropolitana da Praia.

   Imensamente satisfeito neste momento deve estar o meu amigo e putativo tradutor da minha obra literária lusógrafa para o idioma crioulo, Manuel Brito-Semedo, pois que esta é a semana que fica indelevelmente marcada nos anais da História caboverdiana e das quase inultrapassáveis, frívolas e doentias rivalidades bairristas entre a ilha de São Vicente e a cidade da Praia, por dois importantes acontecimentos, designadamente, i. a promulgação pelo Presidente da República de Cabo Verde da Lei, aprovada em Fevereiro de 2020, portanto em tempos caboverdianos pré-pandemia do novo coronavírus (sars-cov-2) e da covid-19, por unanimidade das três bancadas parlamentares da Assembleia Nacional (do MpD-Movimento para a Democracia, do PAICV-Partido Africano da Independência de Cabo Verde e da UCID-União Cabo-Verdiana Independente e Democrática), que institui em São Vicente e nas ilhas vizinhas/adjacentes do noroeste do nosso arquipélago crioulo, designadamente Santo Antão, São Nicolau e Santa Luzia, a Zona Económica Especial de Economia Marítima (ZEEEM), e ii. o chumbo, pelos mesmos dias, com votos a favor dos deputados da bancada parlamentar do MpD, com ausência da sala de sessões no momento da votação de quatro deputados do mesmo partido, e um voto dissonante/dissidente de uma deputada desse mesmo partido eleita pelo círculo eleitoral de São Vicente e, por isso, muito festejada pela associação cívica Sokols, que, por outro lado e numa atitude assumida, ostensiva e indisfarçavelmente bairrista e inquisitorial, elaborou e fez circular nas redes sociais uma pré-anunciada lista negra de deputados eleitos pelo círculo eleitoral de São Vicente que votaram a favor da proposta de Lei sobre o Estatuto Especial da desprezada/odiada cidade da Praia, cidade-c

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