De escrava contratada a "Rainha di Batuku". Esta é uma intoxicante odisseia sobre a vida e o legado triunfante de uma das relíquias da nossa identidade cultural, Nha Minininha.
Tic Tac, tic tac no Compasso do Pêndulo
Ela foi uma escrava contratada, que, para obter a sua liberdade, derrotou o colonialismo. Falar com ela é "kosar" e abrir as cicatrizes do tempo. A sua vida é uma jornada dura e penosa, que provoca o crash entre o visível e o invisível. Todavia, o pulsar do Batuco, e o compasso vibrante do Finason servem de antídoto para Nha Minininha, uma das referências da nossa cultura.
"Ku korpu maguadu rabentadu, ku sulada ta lolongui, lenso bedju na kabesa", empresto esta estrofe de Orlando Pantera, para expressar que foi assim, de pijamas, acompanhada pelo marido José Landim, a filha Txika e quatro netos que Santiago Magazine encontrou, na sua casa em 30 Kenwood Street, em Providence, Rhode Island, nos Estados Unidos da América (EUA), Florença Mendes Barros Andrade Landim, ou Nha Minininha para o terêro (palco) e o mundo.
À primeira vista, são notórias as cicatrizes do tempo. O corpo está desgastado e a alma quase quebrada, "dja kaduka sima pedra na ladera", e por isso, falar com ela é como virar e sentir o peso das páginas deplorabílis da História que moldou a nossa sociedade. É debruçar-se sobre um episódio hediondo da nossa vida. Nha Minininha é aquele pedaço do passado que brota no presente a esperança no amanhã.
Esta reportagem ziguezagueia no corredor da memória na era pré e pós Covid-19, e provoca emoções díspares sobre a vida de Nha Minininha, um monumento nacional, poetisa ou contadeira de estórias, kurandera, música, rabidanti e matriarca dos terêros. Durante esta odisseia algumas questões pertinentes surgirão e sem querer elas nos seduzem a tentar desamarrar o cordão umbilical que marcou tanto a sua vida. A questão racial e o racismo foram determinantes na sua jornada, e isso evoca-nos num instante uma reflexão breve, tentando entender o que é em si o conceito "civilização".
Nha Mininiha nasceu no periodo pós-emancipação e no lugar onde não existiam relógios, hospitais, telefone, electricidade, e muito menos registos civis. Nasceu no tempo das senzalas, das plantações e roças de cacau, no tempo do "Sim, Senhor Patrão, ou Sim Senhor Capataz Clarimundo, ou Capataz Vitu, (ambos caboverdianos) ou ainda nho Forro! Fui criada na roça de plantação de cacau em Ponta Negra em São Tomé e Príncipe! O dono da roça era o Senhor Rosa Fontes. Era um homem de poucas palavras que tinha a mania de vestir-se todo de branco", conta a própria, de olhar morto para o túnel do silêncio.
Enche o pulmão com força e num tom memos azedo, mas com uma profunda trauma emocional acrescenta: " vivi até aos 7 anos de idade como escrava", revela.
O túnel fica mais escuro com outro silêncio!
"Dja passa kuza txêu nés mundu", assegura. Há uma lágrima no canto do olho que corre e desce devagarzinho. O ar fica pesado. Para baixar a temperatura ela recorre ao seu fiel E&J Brandy sob a justificativa que 'é ta djudan ku romatismu", e dá um gole enquanto pisca um olho tentando ganhar a minha simpatia.
A sombra da dor flutua livremente, é indiferente ao tempo, épocas ou gerações. Esse pesadelo e os seus traumas vão-se metaforizando de uma geração à outra arrastando com ela a corrente dos efeitos colaterais do maior crime cometido pelo "Ser Humano" até então. A escravatura!
Embora a escravatura tenha sido abolida nos país em 1875, a prática da Plantation System( roças) persistiu e com ela o cultivo da cana-de-açúcar, do café, e a seguir o do cacau. São Tomé e Príncipe foi o primeiro pais africano a produzir cacau. As grandes roças não eram apenas explorações agrícolas, mas comunidades autónomas com senzalas, creches, igreja e postos sanitários. As maiores roças, como Água-Izé, Monte Café, Santa Margarida e Rio do Ouro, tinham entre 2 mil e 500 a 4 mil serviçais. Ainda muito antes da Primeira Guerra Mundial, São Tomé e Príncipe tornou-se no maior produtor mundial de cacau. Mas, afinal, de onde vem a mão-de-obra? Quem trabalha? E em que condições produzem?
O Mote ou o Âmago
Segundo o Dr Peter Karibe Mendy, Professor dos Estudos Africanos (Africana Studies), em Rhode Island Colege, nos EUA, em conversa telefónica, "a fim de engrossar receita, os roceiros recrutaram a mão de obra barata dos imigrantes do Gabão, em Adra (Daomé), na Costa do Ouro e na Libéria, e 1879 exclusivamente em Angola. O recrutamento dos 'contratados' de Cabo Verde começou em 1903".
Nessa lógica, muitos historiadores como Nazaré Ceita, numa entrevista ao Publico de 06/09/2016, defendem que o sistema manteve o seu status quo intacto, e que, no papel a escravatura era proibido, no entanto, a realidade no terreno era outra. "Aliciava-se mão-de-obra das outras colónias, sobretudo de Cabo Verde, onde havia grandes secas e fomes, e de Angola, Moçambique, Golfo da Guiné e Serra Leoa para trabalharem como serviçais. Embora oficialmente esse regime de trabalho forçado tenha sido abolido em 1962, na prática vigorou até ao final da colonização".
A historiadora aponta pelo facto de “as ilhas tornam-se entreposto obrigatório”, e por isso, “era um local de transacção importante para o comércio colonial”. Lembra ainda que, depois de Cabo Verde, São Tomé e Príncipe foi o segundo território onde europeus e africanos conviveram permanentemente.
O Cla$h entre o visível e o invisível
Depois de dois "penáltis" Nha Minininha recupera o fôlego e revela que os castigos corporais, as violações sexuais, e o uso de palmatória ou chicote eram frequentes. "Olha o que estás a fazer. Vais ver!! Sima spanta santxu, nu ta viveba spantadu. Trabalhávamos diariamente nove horas, menos aos domingos, quando trabalhávamos até às cinco horas. Capina!!! Capina cem metros de largura, cem metros de cumprimento por dia. Capina, quando não é isso, quebrávamos coco ou cacau. Das 21h às 5h30, ficávamos trancados nas senzalas. O regime laboral era rígido e desumano e só nos era permitido sair da roça aos domingos para ir-mos à igreja", recorda, engolindo o seu terceiro E&J, e com quarto caindo lentamente no copo.
De cara no vazio declara ainda que a metade do seu salário era depositado num fundo de repatriamento e apenas desembolsado quando regressassem à sua terra. "Eles nos davam farinha de soja só bitxu para a gente comer, e às vezes peixe salgado. Duas vezes por ano, recebiamos roupa e, uma vez, um cobertor de algodão", recorda.
Numa era "pós-escravatura" a lei da roça era um "strumu forti" para a política fascista que promovia a divisão racial, o racismo, a exploração socioeconómico que eram as ferramentas de terrorismo nas mãos dos colonialista e os proprietários brancos donos das roças de plantação. "Com a vinda do Estado Novo, em 1933, o colonialismo português em São Tomé tornou-se mais duro, empurrando os forros para a marginalidade económica e social. Contudo, a política colonial continuou até os anos de 1960, quando Portugal reorientou a sua política devido ao início da guerra de libertação em Angola e a pressões internacionais a favor da descolonização", lembra Nazaré Ceita.
Ainda sobre isso, Ceita referiu que "de 1875 a 1974, os trabalhadores passavam pela rua amarrados, em fila, uns atrás dos outros, para serem inscritos ou confirmados como trabalhadores e depois distribuídos pelas diferentes roças. Quando se levantavam de manhã, tinham de se posicionar em fila para lhes serem distribuídas as tarefas, para serem controlados. Era a altura de receberem reprimendas mediante determinadas queixas — essas reprimendas podiam ser prisões na própria roça ou fora das roças. Há relatos de chicotadas, de toda a espécie de humilhação. Isso durou até 1974".
O Mito (Fake News) vs A História
A mesma opinião tem o académico Peter K. Mendy que defende e lembra que o tráfico não era “uma tarefa meramente europeia”, mas também de alguns são-tomenses. “No século XVI, temos uma portaria do rei a dizer que filhos de portugueses com escravas já eram, pela sua miscigenação, portugueses. Mais tarde são essas pessoas que serão traficantes de escravos. São os crioulos! Os chamados "os Segundo Europeus", os mulatos, os mestiços, são estes cabo-verdianos que vendiam escravos para as plantações do mundo. Cabo Verde foi o primeiro país onde os Portugueses tentaram implementar o sistema de plantação (roças) e só não sucedeu por causa das condições climatéricas. Cabo Verde não chove como São Tomé.(...) Ainda nos anos 40 e 50, os cabo-verdianos vendiam a sua própria gente para irem trabalhar em São Tomé e Príncipe", frisou.
Define-se como escravo aquele cujo status quo "é proibido de deixar o seu serviço e é tratado como propriedade". Estima-se que cerca de 15 milhões de pessoas foram capturadas e vendidas como escravos entre os séculos XV e XIX.
Hoje, os dados Organização Internacional do Trabalho (OIT) da ONU e pela Fundação Walk Free indicam que 40,3 milhões de pessoas - mais do que o triplo do comércio transatlântico de escravos - vivem sob alguma forma de escravatura ou, como se diz, escravatura moderna. As mulheres e as raparigas constituem 71% de todas as vítimas da escravatura moderna. As crianças compõem 25% e representam 10 milhões de todos os escravos em todo o mundo.
Sobre isso, o Professor Mendy faz questão de mencionar que a escravatura não terminou com a sua abolição nos EUA em 1808 como se faz acreditar. "Isso é um mito. É pura distorção da História. Aliás, (o Atlantic Slave Trade) intensificou por mais cem anos. Nesse período, o preço dos escravos triplicou. De 1808 a 1866, cerca de 3.873.600 africanos foram capturados, vendidos ou trocados por ouro, armas, entre outras mercadorias europeia ou americana. O navio Clotilde - Barracoom - livro de Zora Neale Hurston - ancorou em Mobile Bay, in autumn em West Virgínia, a 9 de Julho de 1860, com 160 escravos, isso foi cinquenta anos depois da abolição", lembrou.
O docente pontua: "não sei quando é que Nha Minininha nasceu mas, se ela nasceu de pais que são "contratados", nesse caso o estatuto social dela seria igual a de um escravo-contratado".
Relembrou ainda que a Dinamarca, e, 1803, e a Suécia, e,m 1807, foram os primeiros países europeus a abolir a escravatura. "Haiti foi em 1804, em África, King Ghezo de Daomé, aboliu em 1857, Cabo Verde foi em 1878, Angola 1911, Marrocos foi 1922, Etíopia 1930, Arábia Saudita 1962, e na Mauritânia a abolição aconteceu oficialmente em 9 de Novembro de 1981, e passou a ser considerada um crime apenas em 2007. Formado por mouros e negros muçulmanos, o país escravizou africanos capturados por árabes'.
Estima-se que hoje cerca de 21 a 46 milhões de pessoas são escravo.
Kontratadus e As Metamorphosis da Escravatura
"Nha guenti forti trabadja pa alguêm, nha rabu dja kria frida, ka ta kria tudu alguêm," Os Tubarões
Desamarrar o Cordão Umbilical
A narrativa de nha Minininha ensina-nos que com força somos capazes de ultrapassar todas as dificuldades e suceder apesar das adversidades. Ela é Mudjer ti kaba na Nada -"Nhaku Mudjer"-, poderososa, é símbolo para aqueles que sabem como adaptar as novas e difíceis situações. O seu corpo e a sua alma sofreram bastante até o ponto mais baixo possivel. "Mosinho, djan passa mal tamanho!! Djan kumé pon ki diabu fazi! Djan kai seti(7) bés, djan labanta novi(9) bés", revela a razão pela qual ela continua forte, rebelde, presente, dotada, cheio de amor e compreensão.
Aos 7 anos, "ganhei a minha alforria (liberdade) e os meus pais decidiram voltar a Cabo Verde, em Flamengos, Calheta de São Miguel, ilha de Santiago".
De regresso às suas raízes começa a cantar Batuco e Finason e teve a ousadia de desafiar a então duo Rainha do terrêro Rita&Rosa. Aos 12 anos, a sua poderosa e melódica voz ecoava de "Santa Cruz (Santiago), Saltus, Flamengu, Rinkon, Piku Son Salvador di Mundu, ou Jalalu Ramu, Robelu di Seredju, Tudu kau ki tinha festa un ta baba, i undi ten festa, ten músika", recordou.
Em 1959, aos 16 anos, as ilhas de Cabo Verde sofreram uma severa seca e a maldição da fome atingiu as ilhas com uma crise económica que forçou muitos cabo-verdianos a assinarem "contratos" para irem trabalhar nas roças em São Tomé e Príncipe. Nha Minininha era uma delas. "Ana Mafalda ben pa lebanu pa San Tomé. São Tomé, outra vez!”, proferiu em desânimo. Porém, segundo ela, "esta era a única forma de sobreviver".
Antes disso, em 1875, devido às pressões abolicionistas internacionais, sobretudo vindas de Inglaterra, criou-se a categoria de contratados ou serviçais, que vieram a constituir a maior parte da população em São Tomé e Príncipe apartir da segunda metade do século XIX. Chamavam o contratado depreciativamente “gabão”, uma alusão à origem dos escravos no século XVII.
Os contratos eram de cinco anos renováveis e, no fim, os serviçais tinham de ser repatriados. Contudo, inicialmente essas disposições não foram cumpridas. Os contratos foram prorrogados tacitamente sem o consenso dos serviçais, cujas condições de vida e trabalho era igual à escravatura.
"A única diferença entre um escravo e um contratado é que o contratado tinha por lei o direito de levar ao tribunal o seu empresário (dono) e o escravo não o tinha. Entretanto, isso quase nunca acontecia porque a maioria das vezes os contratados tinham pouco ou nada de educação escolar para reclamar os seus direitos", esclarece o Professor Peter Mendy.
Etnicidade
Perante o problema da falta da mão-de-obra em 1947, Portugal concedeu aos cabo-verdianos a plena cidadania e no início de 1953, o regime colonial em São Tomé ponderou aplicar o estatuto dos indígenas aos nativos das ilhas para obrigá-los a trabalhar nas roças. Em Fevereiro desse ano, ameaçados de perder seu estatuto intermédio, houve uma manifestação espontânea de forros contra tais intenções da sua indigenização. O então governador Carlos Gorgulho (1945 –1953) respondeu ao protesto com uma onda de violência excessiva contra os forros, em que morreram centenas de pessoas inocentes durante um mês. O massacre deu numa canção revolucionária "Mi un ka ta bai, Pa undi? Pa São Tomé, Pamodi? Pamodi Gorgulho ta intera, bibu na bala (..)" ,-"Nho Forro" , do álbum "Hora dja Tchiga", de Frank Mimita.
A aposta por parte dos ilhéus forros em se demarcarem face aos serviçais, relaciona-se precisamente com a reivindicação de um estatuto superior ao do “escravo” e ao do “contratado”, e alinha com a recusa em trabalhar nas roças do colono, num contexto político que abraçava a raciologia e o racismo enquanto ideologia. Assim, a demarcação simbólica dos serviçais seria tanto mais “urgente quanto a tendencial diminuição de diferenças socioeconómicas (...) a que acrescia a “similitude racial” entre ambos os grupos por oposição aos europeus”, expressa Mendy.
O professor refere que o facto de os cabo-verdianos serem por vezes mais letrados e mesmo considerados mais próximos dos europeus provocaria “mais incómodo nos ilhéus”. Do mesmo modo, os cabo-verdianos tentavam distanciar-se dos outros serviçais, tentando sair das roças e juntar-se às comunidades de “ilhéus e fugidos”
Mendy deixa claro que, paradoxalmente, os forros evocam simultaneamente quer um passado de resistência ao trabalho escravo e à luta pela independência, quer um passado de crioulização sociocultural, que os situaria, próximos da “europeidade civilizadora” que seriam os legítimos donos das terras onde idealmente trabalhariam os cabo-verdianos e outros antigos contratados.
A divisão racial por etnicidade foi e continua a ser o brinquedo preferido dos imperialistas colonos no seu jogo de dividir para conquistar. “Os africanos do continente” eram considerados seres inferiores, “indígenas”, enquanto os forros e os angolares foram inseridos na categoria de cidadãos. Os cabo-verdianos foram considerados cidadãos pelo regime colonial, porém e devido aos trabalhos que executavam nas roças, quer enquanto capatazes, quer enquanto trabalhadores comuns, em condições semelhantes às dos “continentais”, eram vistos pelos são-tomenses enquanto “outros”.
Nha Minininha tropeça nesse cliché e herda também um dos mais letais side-efect da miscigenação. Questionada como se definia expressou categoricamente "Ami é Tonga! Nha país é cabo-verdianos mas, ami é Tonga, São Tomé e Príncipe é o meu pais", apontou. Acrescentou, "em 2017, eu e o meu marido fomos visitar a ilha. Foi muito diferente, São Tomé e Príncipe é um pais bonito e rico em recursos naturais. Entretanto, foi muito triste ver o pais todo acabado". Como assim? "You know!, .. os pretos não querem trabalhar. É uma pena que eles destruíram o país todo. E com isso acrescenta-se o cancer da corrupção", justificou.
Consciente ou não do peso que a resposta carrega, isso, de um certa forma ilustra o como ela continua presa na isca do colonialismo. Recorda-se que a criação de distanciação e mesmo de rivalidade entre pessoas e “grupos” foi uma das armas usadas no e pelo próprio regime colonial. O convívio interétnico entre nativos e contratados era punido, sendo que eram os capatazes (moçambicanos, angolanos, cabo-verdianos) que estavam incumbidos de vigiar essas aproximações.
"Nhos Txoman Angola Baxu"
Aos 18 anos, num piscar de olhos o seu destino deu uma cambalhota e tudo mudou na sua vida para sempre."Fui transferida para o norte de Angola, Cabinda. Fui trabalhar nos campos de café e algodão". Porém, é aí que em 1961, numa manifestação pacífica dos trabalhadores da fazenda Primavera, em São Salvador, fiz incendiar uma das mais extensas guerras que África já viveu. A guerra da Angola".
"Quando a guerra começou estávamos a trabalhar e de repente veio cinco camiões com gentes da Movimento Para a Libertação da Angola (MPLA) e começam arrombar as portas das senzalas e distribuíram armas para os contratados se revoltarem contra os colonialistas portugueses. Muitos colegas fugiram para o mato. Outros morreram, mas eu estava pronta, exultante. Entrei na Companhia de Corpo Voluntário das tropas do MPLA, em Cabinda onde servi por dois anos", revela.
Finalmente havia uma luz no final do túnel. A possibilidade de conseguir a tão desejada liberdade era muito mais do que um sonho, era sim uma necessidade, um direito! "O direito de um Ser Humano. A vez do Africano em ser livre", assegurou com a febre do Pan-Africanismo ardendo na sua veia. Aliás, ela continua na luta pelos direitos civis, e acredita na resistência e não na violência. Tanto que na era pós George Floyd, tem na entrada da sua sua casa um cartaz que diz "Black Live Matter". “A brutalidade policial deve desaparecer”, protesta num férreo apelo à justiça social. “Caramba pá!! Estamos em 2021, continuamos a lutar por dignidade, respeito e justiça’, afirma.
Nha Minininha recorda que "quando as bombas rebentavam, as rajadas das balas zarpavam de perto, quando ouvia os gritos de medo, os olhares de pânico dos soldados, ou quando outras calamidades da guerra apareciam à noite para espantar tudo eu cantava, cantava em voz alta para espantar o medo, a raiva, os traumas da vida. A música foi a minha salvação. Sem a música eu perderia a minha força. Batuku é nha oxigénio", enfatizou.
Após a guerra veio a liberdade e com ela a ilusão da democracia e de uma vida melhor. No entanto, tudo acabou por cair por terra. Assim, farta, sem esperança, e com a filha Francisca (Tkika) adoentada, emigra-se primeiro em 1987 para Portugal e Dakar (Senegal) "como rabidanti! Eu não tenho patrão! Já não queria trabalhar mais para gente branca", aponta. "Estava independente". Finalmente, em 1988 veio para os Estados Unidos da América.
"Ami é Rabidanti,
Rainha di Batuku ... e
Desde cedo ela percebeu que tinha um dom extraordinário para cantar músicas, sobretudo o Batuco, com uma voz poderosa e comovente. Mas, nunca tinha entrado num estúdio. Aos 52 anos, fez uma parceria com o músico Norberto Tavares, entre outros artistas, sob a produção de Many Rodrigues e surpreenderam Cabo Verde com uma Magnus Opus (obra-prima), o álbum "Rainha di Batuku". "Tinha já algumas canções, decidi então ir falar com Norberto Tavares no seu estúdio. Logo após ele ter ouvido a primeira canção decidiu que queria gravar um disco comigo. Foi assim que tudo começou", recorda.
Oito meses depois o disco (CD) sai com oito canções entre Batuco, Funaná e Finason, a fusão destes géneros musicais com forte presença e batidas africanas. A música é marcada pelos ritmos africanos e experiências colectivas mas também como os conflitos entre eles, no interior da família, (Maria ou Tito) nas suas comunidades e até de gerações.
A batida da música tornou-se mais vibrante, mais forte, e mais enérgica. Elevou o Batuco para o diálogo global sobre a injustiça, a resistência, o amor e a nossa humanidade. "São canções de desespero”, declarou ela sobre o finason. São músicas que retratavam especificamente a vida de dores da escravidão e a busca pela liberdade.
A canção "Rainha di Batuku' é puro êxtase, uma fusão entre finason e funaná, um hino ao soul (alma) onde ela comoventemente eleva os seus amantes ao ecstasy. A sua modesta contribuição musical ajudou a moldar o Batuco, o Funaná, e o finason.
Conhecida pela sua voz rica, potente e melódica, cativou as rádios e fãs das Ilhas de Cabo Verde no início de 2000, com grandes êxitos como Maria. "Quando aquela música foi lançada nas rádios de Cabo Verde, todos diziam que se tratava de uma canção da Nha Nacia Gomi ", lembra esboçando aquele sorriso enigmático da Gioconda.
Outra grande canção, Alfândega di Praia, é um ataque contra o Sistema de impostos alfandegários. "Sim senhor Sr. Presidente e a Alfândega" e que por si só elevou sua música ao nível político e catapultou o legado de Nha Minininha a outra esfera. Deu-a o status quo e honra de rebelde.
Vinte e dois anos depois o fogo que ela incendiou continua a arder e o seu impacto na música cabo-verdiana ficará ancorado nas páginas doiradas do Batuco, Finason e Funaná. Nha Minininha ganhou prémios e aplausos ao longo de setenta e oito anos de vida. Em 2018, foi homenageada pela Rhode Island Cape Verdeam Heritage Sub-Comitté, com o "Prémio Carreira" , e no 44° Annual Festival de Independência de Cabo Verde a 5 de Julho, em Fox Point, Providence -Rhode Island, fez uma fuson com "Herderus di Kodé", keita Rei di Tabanka, e o master percussionista senegalês Sidy Majiga, entre outros artistas, cantou e encantou com géneros como Funaná, Batuco, Finason e Tabanka. E deixou um recado. "Vou gravar mais um disco (CD). Será uma BOMBA!
di Ladainha Também!"
A ladainha dos santos (Litaniae Sanctorum), uma fusão entre o religioso e o pagão, uma tradição religiosa (chant) e cultural que ela cai carregando e preservando "desde 1989, todos os anos a 29 de Julho que eu faço (dou uma missa em casa). Era uma tradição antiga que a minha mãe costumava fazer, por isso, faço-a em memória dela". Mas porque Ladainha? "Pa-m spanta xuxu e marmurinha (o diabo e a sua esposa). Só no ano passado e que não celebrei o meu santo padroeiro (São Lázaro) por causa do corona vírus. Mas, assim é a vida nem sempre fazemos o que nos apetece".
Na sua casa em todos os cantos há um altar, "temos que dar graças a Deus por tudo', suplica. Todos os anos centenas de fiéis aglomeram-se e celebram em sua casa a litúrgica memória de Lázaro e depois disso é "festa ti manxi". Nha Minininha não só está a preservar esta tradição religiosa, como ela vai mantendo viva outras tradições orais ou pagãs, se se quiser, que vivem interconectados com a Ladainha: A gastronomia. Que vai da matança do porco, do milho no pilão para "katxupada", o xerém, o kuzkuz, as linguiças, os pastéis de milho, os bolos, os pudins, as bebidas, a escolha do padrinho e da madrinha, os Don Juan na sua artemanha paquerando mulheres bonitas, os rusgas que aparecem do nada, a música alta e forte no terêro, os foguettes, os "polícia assosiadu" que vigiam a rua, etc, etc. "tudo é parti di tradison", sentenciou.
Deste modo atrevo a dizer, sem falsas modéstias, nem rol de epítetos ou superlativos: Nha Minininha é um monumento nacional, e será por lá que também se cumprirão as comemorações desta vida dedicada à música, às tradições orais, na preservação da língua e isso é, de certa forma, uma passagem de testemunho. "Antes de morrer gostaria de (ter) escrever um livro sobre a minha vida"... O título? "A Tristeza da Vida", indicou.
Nha Minininha, ainda que debilitada pela doença que lhe atraiçoou o estômago, procura vocábulos que permitam condensar uma vida extraordinária numa resposta curta sobre o que significa estar a cumprir oito décadas. Responde filosoficamente que "o tempo pode ser absoluto, não tendo começo, nem fim, não há entrada para o passado e nem saída para o futuro".
A sua contribuição para a música fez com que o Batuco se abrisse para o diálogo global sobre a injustiça, a resistência, o amor e a nossa humanidade. A batida do Finason tornou-se mais vibrante, mais forte, mais enérgica e por vezes de batida suave, mas espiritualmente forte. O objectivo dela é inspirar com a esperança. "Mostrar que depois de uma tempestade (Covid -19), vem a calma. A vida é difícil. São muitos anos de tormenta, muitas fases da minha vida, muito trabalho, muita luta; mas tenho mais felicidades do que tristezas”, E isso faz a diferença.
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