O Mito de Anteu em Princezito
Cultura

O Mito de Anteu em Princezito

Apontamentos para o estudo da obra de Carlos Alberto Sousa Mendes

1 O Regresso do Príncipe

Tão cedo foi autorizado pelas autoridades cabo-verdianas, Princezito voltou aos palcos neste mês de dezembro, e conseguiu a proeza de um grande sucesso, com salas cheias, bilhetes antecipadamente esgotados, público ao rubro em diferentes concertos, nas ilhas de Santiago e Maio; e ainda trouxe consigo o livro de finason Manual di Mudjer.

Editado com a chancela de Ragaladu Editora, Manual di Mudjer é um livro de finason, poesia cantada de Cabo Verde, texto em versos, cuja língua veicular é a língua cabo-verdiana. Tem uma temática diversificada, dialogante com a poesia clássica cabo-verdiana, e totalmente centrada no feminino. Alguns temas como o Mar, a Terra, o Amor, a Mulher e a vivência do quotidiano, autossuperação, a Cultura da Paz, Metaliteratura… estão disseminados pelos quatro capítulos ou cadernos. Texto de género fluido, que soma poesia em versos com categorias da narrativa (da prosa).

É um livro inovador. Um terno gesto de homenagem à mulher, um especial olhar a partir da nova masculinidade.

O Mito de Anteu e a força vinda do Pé

Neste pequeno ensaio, pretendemos fazer uma nova leitura à obra de Carlos Alberto Sousa Mendes, Princezito, através da figura de Anteu, e propor uma outra abordagem que conjuga a mitologia clássica com a contemporaneidade emanada a partir do sul global. Em análise está a literatura oral, através da música, em poesia cantada. Usaremos imagens da terra e do mar, em três níveis de análise, que fazem jus à obra de Princezito, considerando que ele não separa a terra do mar, o que permite evidenciar a marca do ilhéu como referência intrinsecamente genuína e natural no autor. Lançaremos mão das metáforas de mergulho, para simbolizar as diferentes análises e as de ramos para simbolizar a diversidade artística do tarrafalense.

O que as diferentes lendas de Anteu têm em comum estão à volta da sua força vinda do pé e do húmus que alimenta o gigante, filho de Gea e Poseidon, que simbolizam a Terra e o Mar, respectivamente.

O essencial do Mito de Anteu

Anteu nasceu numa pequena cidade onde ele era o único varão. Perdeu sua mãe muito cedo e o seu pai, que também se foi, deixou-o órfão. Anteu então se transformou num possante gigante e procurou manter contato eterno com Gea, que na mitologia era a Terra, sua mãe morta, de onde lhe vinha, entretanto, toda a força, enquanto estivesse com os pés assentes no chão. Com tal força, não só vencia os estrangeiros e invasores, como conservava seus cadáveres e utilizava-os para ornar o templo dedicado ao deus do mar, seu pai: Poseidon.

Com recurso à mitologia, estima-se que Anteu vivia na região de Marrocos. Era invencível e desafiava todos os recém-chegados para a luta até à morte. Diz ainda a lenda que Hércules, de passagem pela Líbia, entrou em combate contra Anteu e, descobrindo o segredo da sua invencibilidade, conseguiu esmagá-lo, mantendo-o no ar.

Portanto, o segredo da vitória do Gigante é o mesmo que ajuda a revitalizar a terra: os pés no chão garantem a vitalidade terrena e a força invencível de Anteu, ao mesmo tempo que mantém todas as possibilidades de a terra permanecer eternamente viva, enquanto os seus se mantiverem a ela ligados.

À primeira vista, já transparecem em comum alguns aspectos biográficos de Anteu e a figura artística de Princezito, quais sejam: a condição de órfão, a estreita relação com o mar e com o torrão natal, para além da posição anticolonialista e de resistência cultural de Carlos Sousa. O húmus que alimenta a sua força, lembrando sempre que a grandeza é soberana se for alimentada pela humildade, que vem do chão; e, por último, o sacrifício que é feito, em nome e homenagem aos ancestrais, haja vista o fato de os cadáveres derrotados passarem a ter a utilidade de ornar o templo do deus do mar.

2 Pressupostos teóricos e metodológicos

Num primeiro mergulho, ainda em jeito de apresentação, faremos uma abordagem à etimologia de Anteu, complementada com a análise semântica do próprio nome. Ao mesmo tempo, faremos uma explicação panorâmica de algumas teorias aplicáveis à leitura em questão.

Etimologia

Numa leitura etimológica, é possível cruzar diferentes fontes que, considerando naturalmente o campo mitológico, trazem nuances que aqui resumimos.

A origem do nome Anteu é do Grego. Antaios ou Anthéus, significa aquele que está na vanguarda, aquele que é florido, aquele a quem se nota. Gigante mitológico filho de Netuno e da Terra é uma nuance que outros relatos míticos possuem, em vez de Poseidon. Ambos são deuses dos mares e dos oceanos e têm muitos poderes em comum, de tal forma que, para alguns povos, eles são a mesma figura mitológica. Sabe-se, porém, que um pertence à mitologia grega e outro à mitologia romana, pelo que possuem diferenças entre si.

Quanto ao significado do nome Anteu[i], sua personalidade, ambição, formas de expressão… entre outras características intrínsecas, entende-se que “a pessoa com o nome Anteu costuma ser filosófica para lidar com as situações do cotidiano. Pensadora e introvertida, é individualista e silenciosa nos relacionamentos pessoais. É um homem que acredita que o amor possibilita o caminho da felicidade e as causas maiores.

Na sua forma de expressão, acredita-se que, tendencialmente, Anteu consegue enxergar com sensibilidade através das coisas, o que lhe possibilita adaptar-se facilmente a coisas espirituais ou do quotidiano do mundo. Costuma escolher com cuidado as pessoas que o circulam, sem exigir que sejam perfeitas.

Os pontos positivos de quem se chama Anteu é ser espiritualizado, instrospectivo, profundo, perfeccionista, enquanto que os aspectos negativos de quem se chama Anteu são ser solitário, exigente, crítico, recluso.

Ramos teóricos

Do ponto de vista teórico, propomos utilizar um recurso de análise que conjuga a mitologia clássica com a de teorias ligadas a estudos culturais, presentes nas epistemologias do sul, aplicadas à literatura contemporânea produzida em chão pós-colonial.

Sempre que nos referimos ao chão pós-colonial, referimo-nos ao fazer literário que é concebido e publicado após a independência, no caso de Cabo Verde, após a hora zero da nação, que vem à luz no dia 05/07/1975.

Não significa, todavia, que o chão pós-colonial seja um chão isento de colonialidade. Sabe-se que a violência infligida aos escravizados tinha como uma das vertentes poderosas a violência simbólica, que visava à subjugação da sua cultura e invalidação de qualquer performatização ou reinterpretação do substrato cultural que tivesse origem ancestral. Esclarecemos, portanto, que o chão pós-colonial é um marco simbólico de valor cronológico, já que a independência não põe fim à colonialidade.

Assim sendo, a obra em referência é entendida como um produto que, não obstante herdar uma historicidade natural dos autores que lhe antecederam, deve ser compreendida como uma obra de resistência, devido à postura política clara e ostensivamente assumida por Princezito, em todas as suas atuações artísticas.

Batuku e finason, bem como outros textos, serão analisados à luz da tradição que devolve ao clássico aquilo que lhe é peculiar _ a oralidade de onde ele outrora nasceu; ao mesmo tempo que devolve o tradicional, simples e sofisticado, ao lugar que lhe é devido: a inscrição no Cânone. No caso de Princezito, a poesia está também na própria materialidade da língua, escrita, completada ainda na declamação e nas enunciações em palco.

Um marco potente a se compreender em Carlos Sousa é a postura de arte engajada. A bem da verdade, todas as artes são engajadas. Já se foi o tempo em que o ideal de poesia se cingia à arte pela arte. O que se sabe é que o instrumento de força, que é a poesia, dependerá certamente do engajamento de cada um. Mesmo os autores que se dedicavam à poesia parnasiana, um tanto ridicularizada em ”Os Sapos” (por Manuel Bandeira, em A Semana de Arte Moderna, Brasil, ano de 1922), assumiram um ideal de arte que supostamente teria o único compromisso de esculpir ao extremo e endeusar a forma. De tal maneira perseguiram o ideal poético, que o poema se transforma num exaustivo labor de escrita. Esta atitude acabou por fazer, ela também, uma arte engajada, ainda que seja em sentido contrário: no de tornar o gesto parnasiano de escrever numa retórica de ortopedia que, paradoxalmente, força o texto à fala do “sapo cururu da beira do rio” (Bandeira, 1922).

3 Finason, na música e na literatura

Princezito, entretanto, circula pelos diferentes meios de produção e formas de fazer artístico com a mesma postura de resistência. Especialmente nas sociedades que se formaram em contextos de escravatura, o fazer literário justifica-se como fenómeno de resistência cultural, espaço de enunciação, momento de denúncia. Em tempos de desigualdades sociais, de um processo de globalização tão violento como certas ondas de colonialidade, a força vinda do pé será sempre necessária, para que se alimente do húmus que revigora e se garanta a vitalidade perene da terra.

Desde Spiga, os textos de Bakandesa, Txoru Kantadu, Refujiadu di Gera, Stória di Amor em tempu di gera, são poesias de resistência, que nos reportam ao mito de Anteu e à vitória do Gigante. O sujeito poético de Princezito mantém também os pés fincados no chão, de onde lhe vem a força invencível. Consegue defender a terra que será eternamente viva, enquanto os seus se mantiverem a ela ligados. Manual di Mudjer vem completar o ciclo em que Gea e o feminino assumem a mulher persona, corporizada nos três primeiros cantos por diferentes personagens tipo.

E o trio se completa: de um lado o mar, do outro a terra, intermediados pelo Anteu, elo de ligação entre o passado e o presente, o estranho e o nacional, o clássico e o tradicional: a terceira via, que anula os antagonismos e a binaridade tipicamente coloniais e encontra um lugar afável entre o local e o global.

CONTINUA

Texto produzido no âmbito de "Artes do Norte"/Projeto de Grandes Letras, Boa Música e Belas Artes, autorizada por "Aplausos", em 21/12/2020.

[i] Significado do nome Anteu (https://www.significadodonome.com/anteu/)

Consulta o7/10/2020

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