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A (Re)construção do cânone literário caboverdiano pelo olhar das antologias - Primeira Parte
Cultura

A (Re)construção do cânone literário caboverdiano pelo olhar das antologias - Primeira Parte

A cissiparidade pátrida vivenciada e praticada pelos nativistas, tanto na sua pugna cívico-política como na sua escrita jornalística e literária, foi assim um marco da sua época colonial caboverdiana e uma marca da sua profícua e poderosa passagem por essa mesma época e do seu específico legado para as gerações vindouras e para as novas gerações das diásporas, todos os dias actualizado num tempo de cada vez maiores exigências e demandas de plena cidadania nas pátrias e terras natais de acolhimento de muitos caboverdiano-descendentes, esses verdadeiros e identitariamente híbridos homens-de-dois-mundos e homens-de-entre-dois-mundos, também, e por isso, nossos patrícios e compatriotas. Um tempo que é, também por isso, mas não só, igualmente um tempo de múltiplas pertenças identitárias e de almejada crioulização do mundo, como tão bem sustentado na conceptualização da cultura da relação, da literatura do Tout-Monde e do rizoma pelo antilhano crioulófono e francófono Edouard Glissant.

PRIMEIRA PARTE
I
OS PRIMÓRDIOS DA ESCRITA DE AUTORIA CABOVERDIANA

1.       A escrita de autoria caboverdiana tem já um longo historial. Ela remonta ao século XVI, ainda era Cabo Verde uma terra conhecida dos europeus e africanos há menos de dois séculos, e inicia-se pela lavra de André Álvares de Almada, um mestiço natural da cidade da Ribeira Grande de Santiago de Cabo Verde, feito filho da terra caboverdiana, ainda a crioulidade emitia os seus primeiros vagidos numa sociedade marcada pela estratificação social fundada na escravização dos negros africanos trazidos da Costa Africana vizinha e na omnipotência dos senhores brancos idos de Portugal e de outras terras europeias.

Impuro de sangue, porque também descendente de negros, mas perfilhado e adoptado pela família fidalga do pai branco, André Álvares de Almada empreendeu por sua iniciativa uma longa e aventurosa viagem à Costa de África vizinha, então chamada pelos Europeus Rios da Guiné do Cabo Verde e sobre a qual viria a escrever o Padre António Vieira como “correspondendo em Guiné ao Bispado de Santiago”.

Essa viagem, datada dos fins do século XVI, visava o estudo e o reconhecimento da flora, da fauna e da geografia dessas regiões, então pouco conhecidas ou totalmente desconhecidas dos portugueses e dos europeus em geral e para eles certamente inóspitas e hostis, mas também o contacto bem  como o melhor conhecimento dos povos africanos que os habitavam. Os objectivos eram claros: a conquista, o comércio, a missionação, a colonização a partir de Santiago, mas sob a bandeira portuguesa, ou melhor, sob a bandeira dos Reis de Portugal e Espanha, enfim, o saque colonial sob o alto patrocínio da aliança entre a cruz e a espada. Dessas viagens resultou o livro Tratado Breve dos Rios da Guiné de Cabo Verde, desde o rio de Sanagá até os baixos de Santana; de todas as Nações de Negros que há na dita Costa e de seus costumes, trajes, juramento e guerra, que, segundo o historiador João Manuel Nobre de Oliveira, só viria a ser publicado no século XVIII, em 1733, isto é, quase dois séculos depois da sua escrita, mas que trouxe no imediato imensas regalias ao seu autor, armado Cavaleiro da Ordem de Cristo, não obstante as muitas resistências de alguns círculos do poder vigente em razão da sua alegada impureza de sangue.

Quase um século depois, André Dornelha, igualmente um mestiço natural da cidade da Ribeira Grande de Santiago, escreve um livro também resultante das suas viagens à vizinha Costa de África, ainda nos fins do século XVI e inícios do século XVII, a que deu o título Descrição da Serra Leoa e dos Rios da Guiné do Cabo Verde.

2.       Nos tempos seguintes, designadamente no século XIX, outros autores aventuram-se em idênticos empreendimentos, mas desta feita porque obrigados à fuga e ao exílio em razão das desavenças com o poder político-económico instalado nas ilhas. Tais foram os casos de João José António Frederico, antigo Procurador Régio no processo criminal instaurado contra Gervásio, Narciso e Domingos, líderes dos escravos prestes a sublevar-se em Monte-Agarro, nos arredores da Vila da Praia, capital de Cabo Verde,  tendo como objectivo a instauração na grande ilha de Santiago de um Haiti caboverdiano, isto é, de uma ilha libertada da escravocracia e de senhores brancos ou, até, expurgada de todos os brancos, antecipando por assim dizer a célebre profecia de Nho Naxo: “Ali ben tenpu, ali ben dia ki orina di branku nen pa remedi ka ta atxadu” (“Haverá um tempo, dias chegarão em que nem para remédio se achará a urina do branco”), todavia não concretizada na sua acepção puramente racialista, nem tão pouco efectivada quando se entende branco na sua acepção ressemantizada pelas vicissitudes da mestiçagem e da crioulização caboverdiana de categoria puramente racial para categoria eminentemente social sinónima de rico e antónimo e oposto e/ou complementar de pobre e remediado. A equiparação e a sinonimação das categorias raça  e classe social viria  a atingir o seu paroxismo e expressão máxima na ilha de Fogo,  até aos  meados do século XX, segundo o ensaísta, médico e ficcionista foguense Henrique Teixeira de Sousa,  em razão da confusão semântica historicamente engendrada entre os termos de categorização racial (branco, mestiço/mulato e negro), e de  categorização/estratificação social (rico, remediado e pobre) com a equiparação/sinonímia entre rico/branco, remediado/mulato e mestiço,  pobre/negro e preto-negro e a sua metafórica localização espacial e sociológica respectivamente no sobrado, na loja e no funco.

Segundo ainda o saudoso historiador João Manuel Nobre de Oliveira, exilado nos Estados Unidos da América e na África Ocidental, João José António Frederico viria a escrever a obra Notícias e Informações sobre Alguns Países da América do Norte, sobre Gorée, Gâmbia, Serra Leoa,  Rio-Nuno, visitados por J.J. A. Frederico, para além de Reflexões sobre Bissau e a Vida de João José António Frederico contada por ele mesmo.

O seu familiar muito próximo, Luís Barros Frederico (designado também por Luís Frederico Barros), intrépido representante da nascente imprensa caboverdiana, viria a seguir-lhe as pisadas tanto nos caminhos do exílio como na escrita de um livro de viagens tendo por cenário a Costa de África vizinha e intitulado Senegâmbia Portuguesa ou Notícia Descripitiva das Diferentes Tribos que Habitam a Senegâmbia meridional, Contendo um Quadro de Usos e Costumes dos Povos que a Ocupam, Topografia, Religião, Governo, Línguas, Comércio, Indústria, Vestuário, Alimentação, Solo, Clima e Produções, e seguida da Geografia Physica daquela Parte das Costas Occidentais da África (1878). Além disso, foi jornalista e director do jornal A Imprensa, além de colaborador assíduo do (Novo) Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro, tal como alguns outros autores caboverdianos dele contemporâneos e das gerações seguintes, com destaque para Luis Loff de Vasconcelos, com o livro Echos d´Aldeia, João  Augusto Martins com o  livro Madeira, Cabo Verde e Guiné e o considerado o primeiro historiador caboverdiano Cristiano José da Sena Barcelos com os quatro volumes dos seus Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné.

Deste modo, pode-se deduzir que a escrita de autoria caboverdiana nasceu e foi crescendo e amadurecendo sempre navegando e palmilhando os mundos então conhecidos e em processo  de (re)conhecimento, isto é, como uma escrita com o mundo dentro.

II

OS ESCRITORES NATIVISTAS E A SUA  BIFACIAL  VISÃO DO MUNDO DO SEU TEMPO

1. Esse mundo tanto podia ser o mundo distante das terras do comércio e do exílio como o mundo próximo das ilhas vizinhas, como a ilha da Madeira, como também o similar mundo de ilhas próximas da grande ilha de Santiago  feitas lugares de labor profissional e de desterro, como no caso paradigmático do Doutor Francisco Frederico Hopffer (licenciado em Medicina pela Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa e Doutorado em Medicina pela Universidade de Louvaina), que, conduzido sob prisão para a ilha do Maio e aí desterrado, em razão da sua oposição a um dos governadores de Cabo Verde, escreveu uma obra sobre diferentes aspectos da mesma ilha, daí resultado o primeiro livro escrito por um caboverdiano de temática caboverdiana, impresso em Cabo Verde e intitulado Apontamentos para a Topographia Médica da Ilha do Maio- Coligidos no Anno de 1869 pelo Doutor Francisco Frederico Hopffer (Praia, Imprensa Nacional, 1871).

O mesmo conceituado e prestigiado médico (tal como, aliás,  também o  Doutor Júlio José Dias, doutorado pela Universidade de Paris e cuja dissertação científica para a obtenção desse elevadíssimo grau académico foi póstuma e recentemente publicada) publicou, nas imprensas caboverdiana e portuguesa do seu tempo, inúmeros artigos  na área da sua especialidade científica e na área do seu labor profissional, outros textos sobre relevantes aspectos da realidade física e humana de Cabo Verde e respeitantes ao seu comprometimento na luta contra as epidemias e as endemias. Ademais, são também inúmeros os seus escritos sobre os locais onde exerceu a sua actividade profissional,  como a ilha de Santiago  (onde nasceu, em 1829, na então vila da Praia) e as ilhas do Maio,  de Santo Antão e de  São Vicente bem como sobre a flora e a fauna caboverdianas, tendo sido pioneiro na inventariação e na classificação de algumas aves endémicas dos nossos ilhéus.  

2. Por essa altura, a imprensa tinha-se já firmemente ancorado em Cabo Verde com o surgimento de vários jornais independentes/privados,  desde a introdução do prelo em 1842, inicialmente na ilha da Boavista, transferido logo depois para  a  cidade da Praia (capital de Cabo Verde no tempo seco), sendo que o primeiro jornal privado denominado O Independente foi fundado na cidade da Praia,em 1877; Escolas régias de instrução primária iam disseminando-se pelas ilhas, tendo a primeira sido fundada na então Vila da Praia, em 1812; instituições de formação secundária iam aparecendo e desaparecendo, absorvidas por outras de mais feliz sorte, como foram os casos da Escola Principal da Instrução Primária, fundada na ilha Brava, em 1846, e transferida para a cidade da Praia,  em 1850, bem como do Lyceo Nacional de Cabo Verde, criado na cidade da Praia, em 1860, e extinto, em 1862, alegadamente por falta de verbas para pagar o vencimento dos seus professores, vindo ambos os estabelecimentos de ensino a ser absorvidos depois pelo Seminário-Liceu de São Nicolau, fundado em 1866 e oficialmente extinto em 1917, transformando-se num mero colégio e dando lugar ao Liceu Infante Dom Henrique, temporariamente extinto em 1937 para supostamente ceder lugar a uma escola de formação em artes e ofícios, mas logo depois reaberto com a denominação de Liceu Gil Eanes, por mor da grande  indignação e da forte pressão provenientes das camadas populares e das elites caboverdianas e das suas ramificações na Metrópole colonial.

E, assim, iam-se  sedimentando e firmando as condições sociológicas e técnicas para o surgimento de uma escrita que se não contentasse somente com a descrição da fauna, da flora, dos costumes e das tradições das populações das regiões africanas vizinhas e das nossas ilhas sujeitas à curiosidade do olhar desse observador do mundo ilhéu e circunvizinho que era o coetâneo letrado caboverdiano.

Um letrado, sublinhe-se, em formação e em busca da definição de si próprio e do mundo-matéria da sua observação e da sua indagação.

Um mundo, o mundo colonial-escravocrata, por essa altura em ruínas, em demanda de um outro mundo banhado das luzes da instrução e nesses tempos assaz conturbados, da plena cidadania para todos os  ilhéus caboverdianos, para todos os chamados filhos da terra e de efectiva igualdade com os reinóis radicados entre eles.

Um mundo vasto e díspare que extravasava as ilhas para se estender por todo o império colonial português, na altura em processo de reconstrução, em especial para a Costa vizinha continental africana, bem como para as terras norte-americanas já conhecidas dos primeiros emigrantes livres oriundos das nossas ilhas meso-atlânticas e peri-africanas.

Um mundo feito de culturas justapostas, sobrepostas e interpostas e de cissiparidades pátridas propícias à eclosão de tipos vários de homens-de-dois-mundos (segundo a terminologia usada por Manuel Ferreira) marcados pela hibridez identitária e em que a afirmação do torrão natal crioulo  implicava quase necessariamente a passagem pela prova dos nove do vasto domínio da cultura escolar e da língua reinol e imperial na qual era veiculada.

3. E,  deste modo,  germina a cultura literária de autoria islenha caboverdiana na sua bifacialidade marcada pela vontade de imitar os mestres situados num lugar outro, reinol, considerado ideal e superior, e de igualar e até superar os seus émulos de outras paragens e cultores da mesma língua erudita pátria, mas também pela vontade de exteriorizar a sensibilidade característica da crioulidade em processo de acelerada consolidação e confirmação/consagração literária e os aspectos mais peculiares da realidade geográfica e telúrica e da ambiência sócio-económica das quais emerge e nas quais se molda a mesma sensibilidade.

Nem por isso (ou talvez melhor dito, exactamente por isso) deixaram esses letrados de ser autênticos no seu labor literário e cívico. Cientes da especificidade geográfico-política das suas ilhas, já então denominadas ou tidas por arquipélago da fome votado ao abandono pelas autidades coloniais (como comprovam à saciedade as muitas e percucientes denúncias do insigne historiador, cronista e oficial da Armada Portuguesa Christiano da Senna Barcellos e pelo advogado e periodista Luís Loff de Vasconcelos), bem como da singularidade cultural e da especificidade  identitária do seu povo; fenecidas as expectativas de um alinhamento político outro, como a Confederação Brasílica, pensada para unir contra o domínio colonial português, um Brasil recentemente independente, as ilhas de Cabo Verde (e de que a Guiné dita portuguesa constituía um mero distrito militar) e uma Angola ainda fornecedora de mão-de-obra escrava ao Brasil e às Américas; matadas no ovo ou matizadas nos seus efeitos as várias revoltas protagonizadas por escravos, como a revolta de Monte-Agarro de 1835,  e por camponeses, como as revoltas dos Engenhos, de 1822/1823, e de Achada Falcão,de 1842;  soçobradas as esperanças de uma independência política à semelhança de outros povos resultantes da colonial-escravocracia e nela secularmente forjados, como, por exemplo, Cuba, só restava a esses letrados, segundo a sua mais profunda e sincera convicção, manter-se cultural e identitariamente caboverdianos ao mesmo tempo que levavam ao seu máximo limite as suas demandas de cidadania plena, nos termos virulentamente expressos por Eugénio Tavares: “Portugueses irmãos, sim!  Portugueses escravos nunca!”. Eugénio Tavares, esse vate e jornalista de grande envergadura que, sob a produtiva palavra de ordem A África aos  Africanos!, põe em letra de forma as suas reivindicações de autonomia política no jornal Alvorada, por ele fundado e dinamizado nos Estados Unidos da América para onde tinha sido obrigado a exilar-se por mor da inventona de um “fabuloso alcance” pelas autoridades coloniais da altura.

Situando-se assim num mundo muito mais vasto do que o seu pequeno arquipélago, sempre ancorados na sua língua crioula que perfazia e sintetizava a singularidade identitária do seu povo, e nos quais também sustentaram a sua praxis cívico-política, eles, os nativistas, procuraram situar-se e situaram-se efectivamente no seu tempo e no mundo ocidental e peri-ocidental de então que era também o seu mundo.

Por isso, e à semelhança das suas demandas cívicas e políticas, a sua escrita tinha que carregar sobre os seus ombros e no sangue/tinta  da sua pena o mundo da literatura e a literatura-mundo que então contava, não podendo eximir-se à contaminação das suas muitas exigências e dos seus maiores valores canónicos.

E eram euro-ocidentais esses valores, os quais lhes foram veiculados por duas vias e formas fundamentais:

i. Por um lado, pela cultura  escolar, embebida de cultura erudita portuguesa  de teor colonial-assimilacionista e das suas matrizes greco-latinas e judaico-cristãs, que lhes foi injectada pelos aparelhos ideológicos do sistema  dominante e deles  fez os prestigiados letrados que eram;

ii. Por outro lado, pela cultura  popular com a qual conviviam e na qual bebiam a sua inspiração, em razão das co-matrizes europeias  inoculadas na identidade crioula que era própria e congénita ao povo a que pertenciam  e que sustentava   essa mesma  cultura popular.  

Ainda assim, permaneceram os  nativistas autênticos na sua inventividade e inventivos na sua autenticidade de letrados crioulos marcados a um tempo pelas instigações do meio-ambiente e da cultura popular islenha envolventes e pelas quase insuperáveis pressões das políticas assimilacionistas veiculadas pelos poderes coloniais dominantes.

Neste contexto e bebendo na antiguidade greco-latina, José Lopes e Pedro Cardoso lograram criar, em poemas grandiloquentes construídos ao modo camoniano, uma pátria original como alternativa complementar à super-pátria colonial (na pertinente expressão de Manuel Ferreira) ou pátria monumental portuguesa (na feliz expressão de Gabriel Fernandes), e figurada como localizada num suposto jardim das hespérides ou nas afortunadas ilhas hesperitanas, também chamadas ilhas arsinárias, situadas num tempo greco-latino concebido, pensado e  imaginado  como sendo anterior à chegada dos portugueses às ilhas caboverdianas, no século XV.

Pedro Cardoso, o  Afro dos poemas  “Ao Egipto” e  “Ode a África” enveredou igualmente pela identificação com as glórias passadas de uma África mediterrânica, esfíngica e faraónica, a um tempo berço e  antagonista da civilização europeia ocidental, para legitimar o embate final contra o jugo estrangeiro, depois de passada a cheia colonial e a adubação do terreno para a germinação de uma épica nossa lavrada por novos varões, também nossos, africanos.

Com os estros de António da Paula Brito (autor da primeira gramática bilingue do crioulo e do primeiro alfabeto  de base fonético-fonológica para a escrita da mesma língua, na sua variante de Santiago, publicada em 1887, no Boletim da Sociedade de Geografia, de Lisboa), do Cónego Manuel da Costa Teixeira (fundador de revista Esperança, a primeira  publicação periódica literária caboverdiana, editor/redactor/director dos dois volumes (de 1894 e 1899) do Almanaque Luso-Africano e autor da primeira cartilha do idioma crioulo caboverdiano), de Eugénio Tavares, de Pedro Cardoso, João José Nunes e de José Bernardo Alfama, os nativistas dignificaram ao máximo a língua caboverdiana, nobilitando-a mediante a defesa da sua filiação novilatina e elevando-a a altos patamares literários, como ficou ilustrado, e de forma insofismável, nas célebres mornas de Eugénio Tavares; rebelaram-se na sua contundente prosa lusógrafa  e de alto gabarito literário contra todas as mazelas da terra deles e do povo caboverdiano sujeita ao domínio colonial, como comprovado na virulência das penas de Luís Loff de Vasconcelos e Eugénio Tavares; cantaram com fervor o velho Portugal para melhor enfatizarem as suas opções republicanas e as esperanças todas (depois frustradas) de cidadania plena e de autonomia política nelas depositadas e para melhor exprimirem o seu desencanto com os indícios e a efectiva emergência no real tempo histórico da Ditadura Militar e do subsequente Estado Novo salazarista colonial-fascista e a sua funesta política repressiva das liberdades democráticas de expressão do pensamento, de imprensa, de associação e de constituição de partidos políticos, todavia não tendo podido alguns deles (com destaque para José Lopes da Silva, o letrado islenho que pela primeira vez sonhou com um Cabo Verde independente, tal como as pequenas Andorra e Lichtenstein o eram, explicitando tal desiderato no jornal mindelense  Revista de Cabo Verde, e Juvenal da Costa Cabral, um incondicional defensor de Portugal como nação colonizadora, mas também um convicto apóstolo da disseminação do saber escolar entre as crianças das ilhas e de todas as colónias/províncias ultramarinas portuguesas) de deixar sucumbir-se ao fogo fátuo das promessas  e dos apelos armadilhados da pátria imperial portuguesa, mesmo se mantendo alguns traços colaboracionistas rebeldes (na mais uma vez feliz expressão de Gabriel Fernandes) da sua antiga postura crítica contra as crónicas mazelas da sua terra caboverdiana e das suas gentes abandonadas à sua sorte de vítimas das secas cíclicas e das mortandades pela fome. Intentando continuar a conjugar de forma hábil, mas cada vez mais precária e intermitente, as componentes todas da sua cissiparidade pátrida, fizeram-se, enfim, cabouqueiros e os primeiros inventores da literatura caboverdiana de todos os géneros, ao mesmo tempo que pairavam sobre tudo o que depois veio tocar as suas aparentes intocabilidade e intangibilidade, permanecendo no espírito dos caboverdianos  como digníssimos antepassados, antecessores e precursores de tudo o que se lhes seguiu, mesmo quando temporariamente ocultados, estigmatizados e ostracizados, e momentaneamente esquecidos.

A cissiparidade pátrida vivenciada e praticada pelos nativistas, tanto na sua pugna cívico-política como na sua escrita jornalística e literária, foi assim um marco da sua época colonial caboverdiana e uma marca  da sua profícua e poderosa passagem por essa mesma época e do seu específico legado para as gerações vindouras e para as novas gerações das diásporas, todos os dias actualizado num tempo de cada vez maiores exigências e demandas de plena cidadania nas pátrias e terras natais de acolhimento de muitos caboverdiano-descendentes, esses verdadeiros e identitariamente híbridos homens-de-dois-mundos e homens-de-entre-dois-mundos,  também, e por isso, nossos patrícios e compatriotas. Um tempo que é, também por isso, mas não  só, igualmente um  tempo de múltiplas pertenças identitárias e de almejada crioulização do mundo, como tão bem sustentado na conceptualização da cultura da relação, da literatura do Tout-Monde e do rizoma pelo  antilhano crioulófono e francófono Edouard Glissant.

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