A problemática do financiamento e a sua abordagem estão intimamente ligadas à visão e aos objetivos que se tem para com o ensino superior no país. Exigir que os alunos e as famílias suportem o funcionamento de uma Universidade pública, em quase 70%, por via de propinas no valor mensal de 9.000$00 (ainda que o Estado assegura umas bolsas que, em média, não cobrem mais do que 20% do total dos alunos no ensino superior público e privado) é uma questão que deve ser refletida e encontrada alternativa. Para já, o valor de 9.000$00 mensal para as propinas é elevado, tendo em conta o rendimento (ou falta dele) de muitas famílias, o que justifica as pesadas dívidas dos alunos. E esta não é uma questão apenas da Uni-CV, da sua eficiência ou ineficiência na gestão, mas é, sobretudo, uma questão do Estado.
A problemática do financiamento do ensino superior tem sido uma das maiores preocupações dos governos, um pouco por todo mundo, em virtude do forte aumento da sua procura, induzida, em grande medida, pela maior aposta no conhecimento (Johnstone, 2014)[i]. Basta ver que, apenas nos últimos 20 anos, a população estudantil no ensino superior no mundo passou de 100.160.198 alunos, no ano 2000, para 220.704.240, em 2017 (UNESCO, 2019)[ii], ou seja, mais que duplicou. Este quadro tem criado muito stress sobre as disponibilidades financeiras dos Estados, tanto nos países desenvolvidos como nos em desenvolvimento (Fielden, 2008)[iii] e Cabo Verde não foge a regra. No entanto, contrariamente a o que se passa no nosso país, o Estado continua a ser o principal financiador do ensino superior público, na maioria dos países do mundo, em defesa do fortalecimento da qualidade, da equidade e do acesso (Salmi, 2013)[iv].
A partilha do custo (cust sharing), num quadro misto de taxa de tributação e taxa de matrícula, tem tido algum espaço, mas quando não devidamente acautelada pode afetar, significativamente, o acesso ao ensino superior e com consequências graves para a qualidade, em decorrência do sufoco financeiro a que a Universidade fica sujeita. Como alternativa, para facilitar as famílias no acesso, tem sido promovido em diversos países o empréstimo bancário convencional (da iniciativa dos Bancos) e programas de empréstimos promovidos pelos Estados. No caso deste último, há dois tipos de programas: (i) o de empréstimo com garantias do Estado (uma modalidade já experimentada em Cabo Verde, mas que não teve continuidade); (ii) e o de empréstimo com amortização ligada ao rendimento futuro, conhecido como empréstimo deferido. Este tipo de empréstimo é uma inovação Australiana, apontado como sendo de sucesso, em termos de promoção do acesso ao ensino superior, desde a década de 80, nos países como Inglaterra, Nova Zelândia, Etiópia, Coreia do Sul, Países Baixos, Estado Unidos, China, etc.
A sua característica inovadora advém do facto de, ao invés de pagar as propinas anuais para complementar o financiamento direto do Estado, os estudantes beneficiários frequentam os seus estudos, sem ter que pagar propinas, e só quando começarem a trabalhar é que pagam, de forma faseada, o total do valor das propinas ao Estado. Isto é, pagam “propinas”, não à Universidade, mas sim ao Estado, quando começarem a ter rendimentos pelo trabalhado. Em caso de o salário inicial corresponder a um montante inferior ao valor básico determinado, o beneficiário não paga, enquanto estiver nessa condição e, quando começa a pagar, o valor anual é no máximo de 8%, dependendo do rendimento (convém observar que a modalidade de bolsa empréstimo que vigorou em Cabo Verde, até o ano de 2010, mas que não chegou a ser implementado o reembolso, se assemelha, em parte, a esta modalidade). Eventualmente, o modelo de empréstimo deferido pode ser uma das modalidades a experimentar em Cabo Verde, junto com outras modalidades, na perspetiva de se garantir a sustentabilidade no financiamento do ensino superior público, através de um fundo que se cria, por essa via, permitindo que os alunos frequentem os seus estudos com maior tranquilidade. No entanto, aos mais desfavorecidos, é preciso garantir bolsas, como apoio social, para as despesas estudantis, como fotocópias, aquisição de computador, vestuário, transporte, Internet, alimentação, despesas de deslocações, etc.
Ora, a Uni-CV, enquanto Universidade pública de Cabo Verde, nasceu já subfinanciada, isto é, já no início, o financiamento público direto foi inferior a 50% (Banco Mundial, 2012), o que não é compreensível, tratando-se de uma universidade pública. Nos últimos anos, a contribuição direta do Estado para o funcionamento dessa instituição tem-se situado à volta de 32% a 34%. Importa realçar, no entanto, que esta diminuição da contribuição do Estado não é em termos absoluto, mas sim relativo, pois em alguns anos até tem havido pequenos aumentos, mas muito inferior ao aumento do custo de funcionamento da Uni-CV, como se ilustra no quadro seguinte.
Se, em 2009, a percentagem da contribuição do Estado aumentou-se ligeiramente, de 48% para 49%, desde então, esta tem-se diminuído, por não acompanhar o aumento do número de alunos matriculados e, consequentemente, o aumento de despesas. Basta ver que, se em 2009, o orçamento de funcionamento da Uni-CV foi de 494.409.753$00 e, em 2015, passa a ser de 795.354.952$00, isto é, quase o dobro, a contribuição direta do Estado, nesse mesmo período de tempo, passa de 242.260.800$0 para apenas 254.088.852$00 (Relatórios de Atividades da Uni-CV-2009 e 2015).
Nos últimos anos, a situação, praticamente, mantem-se, quanto à contribuição direta do Estado, e, com a crise provocada pela pandemia, o quadro financeiro da Uni-CV, por dificuldades na cobrança das propinas, tornou-se deveras preocupante. Recorda-se que, em 2018, antes da pandemia, a Reitora, numa entrevista à Inforpress, falava de uma dívida dos alunos que rondava os 150.000.000$00 (cento e cinquenta milhões de escudos). Conhecer a situação financeira atual da Uni-CV e abrir uma discussão pública, quanto ao papel do Estado sobre o Ensino Superior, no geral, e particularmente o seu compromisso para com a Uni-CV, se afigura como premente.
A problemática do financiamento e a sua abordagem estão intimamente ligadas à visão e aos objetivos que se tem para com o ensino superior no país. Exigir que os alunos e as famílias suportem o funcionamento de uma Universidade pública, em quase 70%, por via de propinas no valor mensal de 9.000$00 (ainda que o Estado assegura umas bolsas que, em média, não cobrem mais do que 20% do total dos alunos no ensino superior público e privado) é uma questão que deve ser refletida e encontrada alternativa. Para já, o valor de 9.000$00 mensal para as propinas é elevado, tendo em conta o rendimento (ou falta dele) de muitas famílias, o que justifica as pesadas dívidas dos alunos. E esta não é uma questão apenas da Uni-CV, da sua eficiência ou ineficiência na gestão, mas é, sobretudo, uma questão do Estado.
É verdade que não é aconselhável que o Estado assegure 100% de recursos financeiros de que uma Universidade pública precisa para o seu financiamento, tendo em conta a sua natureza autónoma, a sua capacidade produtiva do conhecimento e a sua capacidade de disseminá-lo, através da docência e de transferência para empresas e sociedade, como prestação de serviços, constituindo-se em potenciais fontes de receitas. No entanto, é preciso ter-se em conta que a criação dessas capacidades exige, na fase inicial, um forte investimento por parte do Estado, designadamente, a nível do corpo docente e de condições para a investigação, como laboratórios, bibliotecas, estímulos diversos, como por exemplo a aposta na mobilidade dos docentes para conhecerem outras universidades, como elas se organizam e funcionam, estabelecer redes e, por essas vias, promover a cultura académica na instituição (tudo isso tem um custo, mas é o investimento necessário). Por outro lado, é preciso ter-se em conta que, para além das condições de base para o funcionamento, é importante que se tenha em conta as necessidades e os desafios do desenvolvimento da Universidade.
A prática internacional é para que o Estado estabeleça dois níveis de financiamento das suas instituições do ensino superior – o financiamento para o funcionamento e financiamento para o desenvolvimento institucional. Este último, em regra, é estabelecido por via de um contrato, designado de contrato de desenvolvimento, ou contrato de desempenho, baseado em programas concretos, em função das fragilidades identificadas, e mediante objetivos bem definidos e acordados entre o Governo e a Universidade. Importa observar que o Banco Mundial dispõe de um programa para apoiar os países nesta matéria e vários países têm-no recorrido, na perspetiva de investimento, com ganhos extraordinários no desenvolvimento das suas instituições do Ensino Superior. O Chile é um dos países paradigmáticos.
Da parte da Uni-CV, não obstante as fragilidades iniciais que, também, diga-se de passagem, são próprias de um país com dificuldades como Cabo Verde, ela não pode esperar ad eternum que o Estado crie todas as condições de que precisa e nem é recomendado. Afinal, é a instituição cabo-verdiana com a maior concentração de académicos, pessoas altamente qualificadas nos mais variados domínios, que podem participar ativamente na governança da instituição e, por conseguinte, na busca de soluções para fazer face ao défice no seu financiamento público. É claro que esse ativismo só se resulta de um ambiente de governança compartilhada, ou distribuidora, causado por uma arquitetura institucional fomentadora de uma forte interação estratégica entre os atores (internos e externos) para fazer a Uni-CV funcionar, efetivamente, como uma Universidade, com programas diversos de pesquisas, de docência com qualidade, e de transferência de conhecimentos para empresas, instituições e sociedade, em geral, e, por via de essas ações, mobilizar recursos de que precisa e afirmar a sua relevância na sociedade, cumprindo a sua missão.
A Escola de Negócios e Governação, a ENG, poderia ter um papel de destaque em todo esse processo. O nome sugere uma imagem de marca forte e a sua abrangência, em termos do que pode ser o seu core business, atinge, praticamente, toda a máquina pública (Estado e Municípios) e o setor empresarial. Mas, numa visão de se fazer da Universidade o lugar onde está o futuro (Nóvoa, 2010), todas as unidades orgânicas podem desempenhar um papel extraordinário na mobilização de recursos, num quadro de gestão económica e de interação estratégicas com as empresas e toda a sociedade. Como aspeto fundamental, nesse processo de gestão económica para mobilizar recursos, a participação e a descentralização constituem tecnologias vitais para se garantir um maior envolvimento dos atores universitários, sendo certo que o foco deve ser na pessoa do coordenador dos cursos que, além de funções de gestor académico, deve desempenhar o papel de responsável pelos resultados económicos do seu curso, mediante estratégias adequadas e de interação com a sociedade.
O Regime Jurídico das Instituições do Ensino Superior, publicado em 2012, prevê, no seu artigo 14º, nº 1, que as instituições de ensino superior públicas podem criar entidades como fundações ou sociedades destinadas a coadjuvá-las no desempenho dos seus fins. Estranha-se que passados todos esses anos e, em face da terrível situação financeira, não tem havido a coragem de se promover iniciativas como a criação de uma fundação para apoiar a Uni-CV na mobilização de recursos financeiros, mas também na gestão de todos os seus recursos, designadamente, patrimoniais, e que constituem um ativo muito forte, agora, com o novo campus. Em face de alguma inércia por parte da Administração da Uni-CV, associada ao acréscimo de despesas de manutenção das novas instalações, e se o défice no financiamento público se mantiver, já com reflexos nos atrasos sucessivos nos pagamentos dos salários e com bloqueios nas reclassificações e desenvolvimento das carreiras dos docentes e funcionários, a situação poderá tornar-se explosiva, com graves consequências para a qualidade das formações e para o normal funcionamento da instituição.
Referências
[1] Arnaldo Brito – Professor e investigador na Universidade de Cabo Verde e Vice-Presidente da FORGES (Fórum de Gestão do Ensino Superior nos Países e Regiões de Língua Portuguesa) - https://www.aforges.org. Doutorado em Educação, na especialidade de Administração e Política Educacional - vertente Governança Universitária; Mestrado em Organização e Administração da Educação; Licenciado em História e habilitado com o Curso de Magistério Primário. Contacto: arnaldo.brito@docente.unicv.edu.cv / arnaldo.brito@sapo.cv
[i] Johnstone, D. B. (2014). Financing higher education: worldwide perspectives and policy optio. Retirado de: thf-papers_financing-higher-education.pdf (headfoundation.org).
[ii] UNESCO. (2019). Institue for Statistics: enrolment intertary education, all programes, both sexes (number). Estatísticas da UIS (unesco.org).
[iii] Fielden, J. (2008). Global trends in university governance. Education. Working papers series. Nº 9. Banco Mundial.
[iv] Salmi, J. (2013). Defining a sustainable financing strategy for tertiary education in developing countries. Policy note prepared for AusAID. Retirado de: http://www.auserf.com.au/wp-content/files_mf/1373503003Policynote6_DefiningaSustainableFinancingStrategy_FINAL_26062013.pdf
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