A Escrita do Crioulo e o Eterno Bairrismo Cabo-Verdiano
Colunista

A Escrita do Crioulo e o Eterno Bairrismo Cabo-Verdiano

A questão não é se o crioulo deve ser oficializado…a resposta a isso é óbvia: SIM, DEVE! A questão é como o faremos. Se for à base da imposição de um modelo específico, estaremos apenas a reforçar o velho padrão do poder centralizado na Praia, que decide pelo resto. Talvez seja hora de abandonarmos a lógica do "vencedor leva tudo" e reconhecermos que Cabo Verde não é uma única voz, mas um coro de variações. Se o objetivo é unir, então que a escrita do crioulo reflita essa pluralidade, em vez de servir como mais um campo de batalha do bairrismo.

A discussão sobre a escrita do crioulo cabo-verdiano há muito deixou de ser um debate meramente linguístico. Tornou-se um reflexo das tensões sociopolíticas que atravessam o arquipélago, expondo feridas mal saradas entre Barlavento e Sotavento, entre a capital e as ilhas periféricas, entre o "oficial" e o "autêntico".

O Alfabeto Unificado para a Escrita do Caboverdiano (ALUPEC) surgiu como uma tentativa de padronizar a língua materna dos cabo-verdianos. Porém, desde a sua concepção, foi acusado de favorecer a variante de Santiago, em detrimento das outras variantes do arquipélago. A grande maioria acha que a escolha gráfica, ignora nuances fonológicas das variantes do Barlavento.

E é aqui que começa o problema. Muitos cabo-verdianos sentem que a imposição do ALUPEC não é apenas uma questão de escrita, mas uma tentativa de hegemonia cultural de Santiago sobre o resto do país. Como se a oficialização do crioulo fosse apenas um pretexto para consolidar a centralização de Praia, já vista como um "monstro" que engole os recursos, as decisões políticas e agora, até a forma de falar.

Um dos erros mais comuns nesta discussão é confundir o alfabeto cabo-verdiano com a língua cabo-verdiana. São duas coisas completamente diferentes, mas que, por conveniência ou ignorância, têm sido misturadas no debate.

A língua cabo-verdiana é um sistema vivo, falado em todas as ilhas, com as suas variantes naturais. Já o alfabeto cabo-verdiano é apenas um código criado para representar essa língua na escrita. Ou seja, a forma como escrevemos o crioulo não é a sua essência, mas uma ferramenta para o registar.

O problema surge quando se tenta forçar um único alfabeto como sendo a única forma legítima de representar a língua, ignorando que um sistema de escrita não pode ser imposto sem consenso. Há línguas no mundo que convivem com mais de um alfabeto.

Misturar alfabeto com língua é uma estratégia perigosa porque transforma um debate técnico numa batalha ideológica. Definir um código de escrita é uma escolha política, mas isso não pode significar que uma variante da língua prevaleça sobre as outras.

O crioulo sempre foi uma questão identitária. A forma como falamos é um marcador cultural e a nossa herança. E quando um grupo sente que a sua forma de falar está a ser silenciada ou moldada para encaixar num modelo que não o representa, a resistência é natural.

A questão do ALUPEC toca num nervo exposto: o bairrismo cabo-verdiano. O ressentimento das ilhas periféricas contra Santiago (e particularmente contra Praia) não é novo. Está presente nas críticas ao centralismo político, na forma como se distribuem os investimentos públicos e agora, na maneira como se define a escrita do crioulo.

A oficialização do crioulo deveria ser um passo para a união nacional, mas o processo está a fazer exatamente o oposto: a reforçar a divisão. É visto por muitos como uma imposição do poder central sobre as periferias, uma tentativa de "santiaguizar" o crioulo e apagar as variantes regionais.

Por que motivo Cabo Verde deveria impor uma única norma em vez de adotar um modelo mais inclusivo?

A resistência ao ALUPEC não é só um capricho dos que falam variantes diferentes. É a recusa em aceitar que uma única visão de crioulo seja imposta como a oficial, ignorando a riqueza linguística e cultural do arquipélago.

Se a oficialização do crioulo continuar a ser conduzida desta forma, sem um verdadeiro consenso nacional, arriscamo-nos a transformar uma celebração da identidade num símbolo de divisão.

A questão não é se o crioulo deve ser oficializado…a resposta a isso é óbvia: SIM, DEVE!

A questão é como o faremos. Se for à base da imposição de um modelo específico, estaremos apenas a reforçar o velho padrão do poder centralizado na Praia, que decide pelo resto.

Talvez seja hora de abandonarmos a lógica do "vencedor leva tudo" e reconhecermos que Cabo Verde não é uma única voz, mas um coro de variações.

Se o objetivo é unir, então que a escrita do crioulo reflita essa pluralidade, em vez de servir como mais um campo de batalha do bairrismo.

Porque, no final do dia, atravessar esta questão é escolher-nos. Ou continuaremos à margem, reféns do medo de um Cabo Verde verdadeiramente inclusivo?

No meio deste debate, faço a minha escolha: escrevo o crioulo como o sinto e o português como o aprendi, sem concessões ao Alfabeto cabo-verdiano, e nem ao acordo ortográfico.

Sou uma purista, e é assim que me posiciono.

FORTE APLAUSO

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